Na edição anterior do Observatório da Imprensa, o jornalista Mauricio Tuffani aborda em artigo o por ele denominado tema espinhoso da morte cerebral, em retranca interessantemente denominada ‘Ciência&Religião’ [ver ‘O tema espinhoso da morte cerebral‘]. Eu me senti compelido a escrever o presente texto, que não é exatamente uma réplica, mas considerações que julgo da maior importância até para complementar o original.
Muitas vezes escrevi artigos como resposta a outros nesse mesmo OI, mas esse não é exatamente o caso aqui. As razões principais que me motivaram são o fato de ser neurologista há quase 30 anos, com especial interesse pela área de coma e demais distúrbios da consciência, aonde acaba por se inserir, talvez de modo não totalmente adequado, o assunto morte cerebral; por ter sido o coordenador da Comissão Técnica de Critérios de Morte Encefálica do CRM e membro da Câmara Técnica Permanente de Morte Encefálica do Conselho Federal de Medicina, por possuir trabalhos científicos e de revisão publicados internacionalmente e no Brasil sobre tal assunto e, de modo muito importante, por nutrir especial respeito por Mauricio Tuffani, um dos poucos e competentes jornalistas dedicados a área da ciência e que alguns anos atrás me entrevistou justamente sobre o assunto aqui iluminado.
Saúde baseada em evidências
Tuffani informa que órgãos do Vaticano, especialmente, passaram a criticar os critérios de diagnóstico dessa entidade, talvez motivados pela efeméride dos 40 anos de instalação dos trabalhos do chamado Comitê ad hoc da Harvard Medical School, que se debruçou sobre o tema. Uma pequena pausa informativa: o termo morte cerebral está abandonado; ainda é utilizado naquelas situações de tradução direta do inglês, quando se usa, sem outra alternativa, brain death. O correto, em nosso vernáculo, é denominar essa condição de morte encefálica, que aqui abrevio para ME – a morte tanatológica clássica, por parada cardiorrespiratória, é mais adequadamente denominada morte sistêmica, que denominarei quando necessário de MS. Essa proposta de terminologia de fato foi proposta por David Lamb, citado por Tuffani, e Christopher Pallis, no Reino Unido, ainda na década de 1970.
O artigo remete a uma série de textos publicados principalmente em publicações da Igreja católica, ligados ao Vaticano, e escritos não por médicos, em especial neurologistas ou intensivistas, mas por pessoas ligadas não apenas à religião, mas também a outras áreas do conhecimento, como história, filosofia e demais ciências humanas. Cabe aqui um comentário importante: não estou criticando o fato de não-médicos opinarem sobre o assunto, muito ao contrário – instado a escrever ou dar conferências sobre ME, sempre digo que a análise puramente médico-científica do tema não basta, pois ele se imiscui com dados filosóficos, culturais, sociais e religiosos – essa, inclusive, é uma dificuldade para se fazer uma revisão eminentemente técnica e com base nos princípios das revisões sistemáticas com ou sem metanálise, a base da medicina ou saúde baseada em evidências, que sempre defendo aqui nesse mesmo espaço, mas que metodologicamente torna quase impossível ser analisada por tais ferramentas, dada a imensa quantidade de variáveis, muitas das quais sem qualquer chance de estudo matemático.
Comissões de bioética
Naturalmente, isso não invalida tais critérios de ME – não se pode ser fundamentalista em relação à medicina baseada em evidências; a propósito, ausência de evidências não é certeza da não utilidade de um método. Basta citar novamente David Lamb – filósofo e bioeticista de Cambridge, depois de Birmigham, inconteste autoridade no assunto –, que tive o privilégio de conhecer (e ler sua obra, claro), e que trabalhou intimamente com o também nomeado C. Pallis, grande neurologista de Londres, que estabeleceu os critérios de ME no Reino Unido.
Já que citamos a bioética, se faz necessário dar à mesma toda a importância: curiosamente, costuma-se indicar como pedra fundamental dessa área o papel de uma jornalista norte-americana, nos idos de 1970, quando a mesma observou que havia um comitê formado apenas por médicos em um dos principais hospitais de Seattle, no estado de Washington, e que eles decidiam entre a vida e a morte dos portadores de doenças renais, deliberando terminativamente e de modo sigiloso a quem seriam destinados os rins para transplante renal. Isso gerou um amplo movimento que deu as bases para o que hoje denominamos bioética, cujos princípios basilares são fazer o bem ao paciente, não contribuir para agravar seu estado de saúde (isso já constava dos princípios hipocráticos, há mais de 2.000 anos) e se dá um importante papel à chamada autonomia do paciente – a ele cabe, em última instância, decidir o que é importante para sua saúde, escolhendo métodos diagnósticos ou terapêuticos indicados por seus médicos, ou mesmo recusando-se a se submeter aos mesmos. E mais: as comissões de bioética são formadas não apenas por médicos, mas por demais pessoas representativas das mais diversas áreas de atividade ou conhecimento.
Quando o corpo se desliga
A crítica aos critérios de ME provinda especialmente do Vaticano, ou de pessoas ligados ao catolicismo, já que a Santa Sé em nota desautorizou oficialmente tais opiniões mais contundentes, possui também um lado interessante: foi o próprio papa Pio 12 quem, em uma reunião médica pontifícia com anestesistas, afirmou categoricamente que o diagnóstico da morte, qualquer que seja, cabe aos médicos, e não à Igreja. Isso foi publicado no Pope Spokes, veículo oficial de divulgação das bulas papais, por exemplo, além de sua reprodução pela imprensa. Também esse fato constitui-se na única referência bibliográfica ao famoso trabalho do Comitê ad hoc para critérios diagnósticos em ME, publicado em uma das mais prestigiadas revistas médicas de todo o mundo, o Journal of American Medical Association, o JAMA.
Mauricio Tuffani passa a citar vários casos publicados, especialmente na imprensa em geral, de casos isolados de ME que, digamos, retornaram à vida. Sem polemizar em demasia, volta e meia são publicados em revistas médicas e/ou apresentados em congressos casos semelhantes. Algumas armadilhas estão presentes: muitas vezes tais pacientes, considerados em ME, em uma análise mais aprofundada, não preenchem os critérios internacionalmente adotados. Mesmo que se tratassem de verdadeiros casos de ME – o que até o momento nunca apareceu na literatura médica séria –, seriam relatos isolados que não podem balizar o todo, a maioria. Como exemplo, usemos o da vacinação: várias vacinas são extremamente úteis e previnem doenças graves em milhões de pessoas, como poliomielite, febre amarela e tantas outras.
Vez por outra ocorre alguma reação vacinal mais séria, até levando ao óbito, ou mesmo a vacina, ao invés de proteger o indivíduo, acaba por causar a doença no mesmo. Mas são casos raríssimos: no cômputo geral, deveríamos abolir a vacinação por causa de raros casos isolados? Não é assim que a comunidade médica e a sociedade pensam. Embora casos reais de ME que voltaram à vida não sejam conhecidos, caso em tese isso pudesse ocorrer, seria justo abandonar esse diagnóstico por conta de casos estatisticamente sem valor na avaliação geral? Claro, alguns dirão, até com relativa razão, que um único caso de ME que retorne à vida seria suficiente para abolir os testes necessários.
Mas isso não ocorreu na realidade até o momento: à guisa de exemplo, dois médicos seminais na neurologia e no estudo de comas e ME, Fred Plum e Jerome Posner, da Universidade Cornell e do Sloan Kettering Memorial Cancer Hospital, respectivamente, em Nova York, que também pude conhecer pessoalmente e que escreveram o livro-texto que é a bíblia de quem quer entender e examinar pacientes em coma, em uma das últimas edições desse mesmo livro analisaram na literatura médica mais de 800 pacientes com o diagnóstico correto de ME, mas que não preenchiam nenhum critério para doação de órgãos; conseqüentemente, mesmo após o diagnóstico da morte encefálica, permaneceram internados em unidades de terapia intensiva sob todos os cuidados tecnológicos e medicamentosos imagináveis: nenhum sobreviveu! Após o diagnóstico de ME, caso o paciente não seja doador de órgãos e tecidos, o mesmo, apesar de todos os recursos hoje disponíveis, sobreviverá de horas a poucos dias, no máximo. E qual a razão? Se o cérebro e as estruturas a ele relacionadas não funcionam, o restante do organismo igualmente aos poucos vai deixando de funcionar até a MS ocorrer inexoravelmente, ou como dizem os americanos, o corpo entra em shutdown, se desliga.
Primeiro transplante de coração
Um dos erros mais comumente associados ao assunto ME é pensar que o diagnóstico da mesma se destina única e exclusivamente a transplantes. Não há dúvida, é claro, que esse diagnóstico é fundamental para doadores cadáveres, mas as coisas não começaram assim. No início da década de 1950, coincidindo com o advento das unidades de terapia intensiva e dos respiradores artificiais, médicos franceses passaram a se preocupar com uma condição por eles denominada coma depasse, ou seja, pacientes com graves lesões cerebrais que, mantidos sob respiração artificial, não recobravam a consciência mas também não evoluíam para a MS. Nessa ocasião não se faziam transplantes e o interesse desses profissionais nada tinha a ver, portanto, com esse assunto. Provavelmente, eles estavam frente a graves lesões neurológicas, mas que não se tratavam de ME; provavelmente, casos dos assim denominados atualmente estados vegetativos, síndrome do cativeiro ou patologias semelhantes.
Uma das questões bastante problemáticas que permeiam o assunto e certamente contribui até hoje para acaloradas discussões, foi o primeiro transplante cardíaco. Na ocasião, em meados dos anos 1960, foi celebrado como um dos maiores avanços da medicina em todos os tempos e os irmãos Barnard, que o realizaram, especialmente Christiaan, tornaram-se figuras imensamente populares. Christiaan Barnard tornou-se figura de proa no assim chamado jet set internacional e até esteve no Brasil, comparecendo como herói bem apessoado em programas de televisão populares, como o de Hebe Camargo. Já há alguns anos, houve uma revisão completa do que foi feito na Cidade do Cabo, na África do Sul, e os Barnard passaram a ser considerados exemplos de má prática e violação dos princípios éticos mais elementares.Vale a pena recordar alguma coisa desse primeiro transplante de coração.
Bases do diagnóstico
Desde o início dos anos 1960, já se tinha, em vários centros, condições técnicas, obtidas através de experimentação especialmente em cães, para a técnica operatória destinada a realizar um transplante cardíaco. Interessantemente, o primeiro transplante, após pesquisas, não teria sido realizado por Barnard, mas sim, por um belga chamado Guy Alexandre – foi um escândalo à época, e seus colegas europeus rechaçaram o procedimento, razão pela qual deve ter caído no esquecimento. Um dos mais importantes cirurgiões cardíacos de todo o mundo, Norman Shumway, da Universidade de Stanford, nos EUA, apesar de se sentir em condições técnicas para realizar um transplante em humanos, não o fez por estar com importantes dúvidas éticas e também por ainda não existirem protocolos de ME.
Pois bem: na racista África do Sul, em pleno regime de apartheid, Christiaan Barnard tinha um paciente com todas as indicações para um transplante cardíaco – a opção do mesmo seria a morte. Esse paciente, um médico das relações de Barnard, teria sido o primeiro a permanecer internado em uma espécie de fila de espera inexistente. Eis que ocorre um grave acidente de ônibus e uma jovem, não por acaso negra, sofre gravíssimas lesões cerebrais. O irmão de Barnard vai avaliar a moça e, mesmo não havendo ainda nenhum protocolo de ME, inventa de fazer um eletroencefalograma (EEG) na mesma, que não demonstrou atividade cerebral. Sem pestanejar, removeu o coração da mesma, que foi levado à sala de operações para ser implantado no médico – paciente de Christiaan.
Esse médico viveu pouco, não pela técnica operatória e os cuidados cardiológicos terem sido tomados adequadamente, mas pela absoluta falta de medicamentos imunossupressores adequados, que levaram à rejeição e, conseqüentemente, à MS do mesmo. Com esse feito, criou-se gravíssimo problema prático e ético: várias equipes ao redor do mundo, inclusive entre nós, queriam também realizar seus transplantes. Reuniu-se então as pressas um comitê na mais renomada escola médica do mundo à época (e mesmo em nossos dias), Harvard, para elaborar critérios com valor cientifico. A comissão foi formada majoritariamente por alguns dos mais importantes e sábios neurologistas de Harvard e de todo o mundo, como Denny-Brown, Adams, Sweet e Schwab, além de psiquiatras, juristas, teólogos e eticistas, que acabaram por formar as bases do diagnóstico de ME, publicas no JAMA, como já vimos, com imenso impacto em todo o mundo.
Revisão do protocolo
É verdade que, de certa forma, essa comissão atuou de maneira um pouco açodada, e motivada por aquele transplante sul-africano. Mas os ilustres membros da mesma também eram pessoas de conduta ética irrepreensível e já se dedicavam ao assunto havia tempos, com estudos validados e importantes. Mas tiveram que correr e sistematizar um protocolo de exames e critérios de ME em decorrência dos fatos da Cidade do Cabo.
Tuffani cita também o interessante trabalho crítico de Giacomini, que estudou as transcrições das reuniões do Comitê de Harvard. Uma das críticas feitas é que um cirurgião fez parte do mesmo. Na realidade, foram dois:William Sweet, neurocirurgião, que obviamente não realiza transplantes, e Joseph Murray. Este último foi um cirurgião especialmente dedicado a cirurgia plástica reconstrutiva e seus trabalhos foram tão importantes que há alguns anos a escola médica de Harvard criou uma cátedra de cirurgia reconstrutiva com seu nome, uma das maiores homenagens que aquela importante instituição poderia fazer a alguém. Além disso, Murray foi laureado com o Prêmio Nobel de Medicina por ter realizado o primeiro transplante de rim bem sucedido em todo o mundo…
Naturalmente que a participação de um cirurgião transplantista no comitê de ME no mínimo gera conflito de interesses. Analisando-se as atas das reuniões da comissão, Murray foi comedido e não influiu nas decisões como transplantador, mas certamente foi um erro ele participar da comissão: transplantadores e neurologistas ou intensivistas que fazem o diagnóstico de ME não podem trabalhar em conjunto.
Mesmo com toda a importância de Harvard e dos ilustres membros do comitê, na década de 1980 o assunto foi revisado por uma Comissão Presidencial especialmente dedicada ao tema, que sistematizou de maneira mais adequada o protocolo de ME sem, contudo, alterar em nada a base do que foi publicado em 1968.
A polêmica é necessária
Em 1995, a Academia Americana de Neurologia constitui nova comissão de parâmetros de qualidade para diagnosticar ME, sob a coordenação de Eelco Widjics, da Clínica Mayo, de Rochester, a quem também conheço e admiro, para que estabelecesse normas de muito melhor aplicabilidade prática e normatizou o por alguns considerado polêmico teste da apnéia. Mauricio Tuffani cita um estudo publicado por Widjics em que ele supostamente passa a ter dúvidas em relação ao diagnóstico de ME: não é verdade; seu trabalho tratou de analisar como em diferentes países e culturas a questão da ME era abordada e diagnosticada e observou que em certas regiões esse tipo de diagnóstico não era aceito, mas não abalou suas convicções.
Daí vem a questão do Japão: aparentemente, dado o grande desenvolvimento científico do país, a impressão de que o primeiro transplante ali realizado, apenas em 1999, deveu-se a dúvidas de ordem médico-científica não é verdadeira. Os princípios religiosos orientais, mormente nipônicos, consideram o órgão mais importante do corpo não o cérebro, mas os intestinos. Não é por outra razão que o suicídio ritual, o haraquiri, consiste em atingir profundamente com um punhal a região abdominal, para lesar o intestino. Apenas com muito trabalho de demonstração de evidências médicas e da separação da religião dos atos civis, em especial médicos e que poderiam salvar vidas, é que se chegou ao consenso que permitiu o início tardio dos transplantes no Japão.
Mauricio Tuffani ainda cita alguém de minhas relações e por quem tenho o maior respeito, o editorialista e colunista da Folha de S.Paulo Hélio Schwartzman. Hélio, no momento, está fazendo um merecido fellow na Universidade de Michigan, em Ann Arbor, EUA, mas há anos, várias vezes por semana trocamos e-mails e, felizmente, concordamos em quase tudo. Em muito esse competente jornalista auxiliou a aumentar meus conhecimentos, inclusive me enviando artigos de revistas científicas que eu ainda não havia lido, sobre os mais diferentes assuntos. É casado com uma médica, intensivista, e o assunto ME está longe de lhe ser estranho. Como bom profissional de imprensa, categoria na qual incluo Tuffani, volta e meia ele escreve algum contraponto, alguma polêmica, e isso é necessário para não haver um pensamento único, seja em política, em relações sociais e econômicas ou na área médico-científica. Não tenho procuração do Hélio, mas tenho a firme convicção de que ele concorda com minha argumentação.
O teste da apnéia
De qualquer maneira, vale entrar na questão semântica dos critérios de ME serem um diagnóstico ou um prognóstico. Analisando-se de modo mais superficial a questão, e pensando naturalmente em transplantes, parece que tais critérios foram encomendados para fins específicos, como dizem alguns, de interesses comerciais e transplantistas… Pode-se pensar que se faz o diagnóstico de ME quando o paciente é provável doador de órgãos e parte-se daí para os procedimentos de retirada dos mesmos (importante notar, sempre com anuência da família; ao contrário da Espanha, por exemplo, um indivíduo em ME não pertence ao Estado, como até se pretendeu na primeira edição da Lei dos Transplantes, mas sim, há o devido respeito à decisão familiar pelas equipes de captação de órgãos, por mais que os desejem devido às conhecidas filas de espera).
Se o paciente não se encaixa nos critérios de doador, imagina-se que os critérios de ME são prognósticos, para dizer aos familiares que o paciente está muito grave e logo evoluirá para a MS. Qual e o erro que aí ocorre? Como, por muito tempo, o coração foi a base para se considerar alguém vivo, para muitos ainda é inconcebível que o mesmo seja substituído pelo encéfalo. Na verdade, quando se diagnostica ME, esse deveria ser o momento da morte a ser colocado em um atestado de óbito. Não é razoável conviverem dois critérios para a morte, ME e MS – como há uma pletora de evidências de que ME é morte mesmo, essas duas denominações deveriam ser unidas em uma só, morte, e questões como essa de diagnóstico e prognóstico deixariam de existir.
O artigo de Tuffani também reproduz as críticas ao teste da apnéia. Desde o comitê de Harvard, já se falava que o paciente em ME não poderia respirar espontaneamente. Posteriormente, foi desenvolvido um teste para melhor avaliar esse quesito. Como não basta haver a parada de funcionamento apenas dos hemisférios cerebrais para caracterizar ME, é fundamental que uma estrutura que fica entre o cérebro e a medula espinal, denominada tronco encefálico, esteja seriamente lesada para se fazer o diagnóstico. Afinal, é no tronco que estão os centros reguladores centrais da respiração, dos batimentos cardíacos, da manutenção da pressão arterial, dentre outros.
Conclusão óbvia: sem o funcionamento do tronco, o paciente está morto. Há vários métodos de exame clínico do tronco cerebral e os mesmos são realizados antes do teste da apnéia. Com os mesmos mostrando serias lesões do mesmo, inclusive, caso seja disponível, por métodos de neuroimagem, como a ressonância magnética, faz-se o teste da apnéia para levar ao extremo uma das mais importantes funções do tronco, que é a respiração. O teste deve ser feito com alguns cuidados básicos: estabilidade hemodinâmica do paciente, dependência do respirador artificial e ausência de lesões pulmonares são alguns deles. O doente é pré-oxigenado e desliga-se o respirador por 10 minutos. Caso nesse período não apareçam movimentos respiratórios, reconecta-se o respirador e se declara a ME.
Pressão intracraniana
A explicação do que se pretende com o teste da apnéia é simples: quando há excesso de gás carbônico em nosso organismo, a pCO2, isso se constitui em estímulo para que o tronco ative com vigor os nossos mecanismos respiratórios para aumentar a oferta de oxigênio, a pO2. Caso o tronco não funcione, será inútil fazer subir a pCO2, pois o paciente não respirará – daí, poder se concluir fundamentalmente que o tronco encefálico está definitivamente lesado e a vida é incompatível sem o funcionamento do mesmo.
Ocorre que esse teste gera polêmica e assusta algumas pessoas: ora, se um paciente já está com o cérebro lesado, e esse depende da pO2 para funcionar (assim como a glicose), ao se impedir que o paciente respire sem auxílio de um respirador, na verdade estaria se asfixiando o paciente-vítima e o teste que seria diagnóstico, na verdade, está matando o paciente, já que após alguns minutos sem oxigênio o tecido cerebral morre! Mas será isso verdade? Os médicos que aplicam o protocolo de ME e, naturalmente, o teste da apnéia, seriam homicidas sem coração, verdadeiros criminosos que só pensam nos órgãos a serem doados? É evidente que não: quem assim pensa, ignora completamente os inúmeros estudos realizados a respeito. Vamos tentar resumi-los, tornando-os compreensíveis.
Há vários anos se conhece uma condição anatomopatológica, ou seja, encontrada nas necropsias, denominada cérebro de respirador. Um paciente que fique conectado a um ventilador artificial, caso preencha os critérios de ME, muito cedo, precocemente, portanto, desenvolve uma quebra da parede das células nervosas, que deixam de funcionar adequadamente muito antes da realização de qualquer teste de apnéia ou assemelhado. E mais: pacientes que fiquem em respiradores mas não estejam em ME, mesmo que submetidos ao teste da apnéia, não exibirão tal quadro.
Da mesma maneira, os pacientes em morte encefálica, muito antes do teste da apnéia, apresentam lesões sinápticas, ou seja, de comunicação entre os neurônios, e uma perda completa da capacidade de irrigação do cérebro. Também se costuma dizer que o teste da apnéia aumenta a pressão intracraniana, agravando o quadro clínico de pacientes que já estão em regime de pressão elevada. Não é verdade: é relativamente fácil monitorizar a pressão intracraniana e há tempos se sabe que durante o teste da apnéia a pressão intracraniana ou não se modifica ou sobe muito ligeiramente, muito pouco mesmo para agravar ou causar qualquer nova lesão.
Dream team da neurologia
Um fato que nem sempre é lembrado como se deve é que a principal causa de ME é o traumatismo craniano, seguido, com variações de acordo com todos os países, por ferimentos por armas de fogo e doenças vasculares cerebrais, os populares derrames. Há gente que pensa que um grave traumatizado de crânio, ao dar entrada em um pronto-socorro, causa alegria e regozijo às equipes de captação de órgãos, que rapidamente pedem que se faça o protocolo de ME para retirar o que precisam. Engano primário de quem não tem vivência em emergências: todo e qualquer paciente que adentre um pronto-socorro com algum quadro neurológico, como em nosso exemplo, por mais grave que esteja fará com que as equipes de socorristas, cirurgiões de trauma, neurocirurgiões, ortopedistas etc. trabalhem com o máximo de zelo e a devida rapidez que o quadro clínico anuncia, para salvar a vida do paciente.
Apenas após todas as tentativas possíveis e imagináveis, que podem incluir ressuscitação cardiorrespiratória, manutenção por drogas da pressão arterial, ventilação mecânica, realização de exames complementares, procedimentos cirúrgicos e o que mais for necessário, não havendo resposta do paciente no sentido de retornar a uma condição melhor, mas permanecendo em respirador, é que se pode pensar em diagnosticar ME, com ou sem a finalidade de realização de transplantes.
Devem ser ainda ressaltados alguns absurdos: recentemente, uma associação de portadores de doenças hepáticas entrou na Justiça contra a lei seca, pois com a diminuição do número de vítimas de acidentes automobilísticos fartamente comprovada com cuidados com o álcool adotados pelos motoristas ante a severidade da lei, diminui a oferta de fígados para transplante! E, claro, sempre se deve lembrar do eticista australiano Peter Singer, atualmente professor na Universidade de Princeton, EUA, que defende a posição por ele denominada utilitarista há vários anos: caso um paciente esteja muito grave, que não se realize protocolo algum de ME e já se retirem os órgãos para transplante, para beneficiar quem tem mais chances de viver! Sem comentários…
Também foi citado Calixto Machado, de Cuba: ele é uma das maiores autoridades mundiais em ME, mas também entende de neurologia geral como poucos. Realiza de tempos em tempos em Havana o único congresso mundial destinado exclusivamente ao diagnóstico de morte e mantém a Rede Internacional de Diagnóstico de Morte. É pessoa aberta e sensível, além de muito bem preparada. Já esteve várias vezes no Brasil e tenho o prazer de manter com Calixto excelentes relações.
Outros importantes neurologistas não citados são os membros do departamento de neurociências clínicas da Universidade de Western Ontario, no Canadá – essa instituição possui há tempos uma espécie de dream team da neurologia, com nomes como John Barnett, o introdutor da aspirina para prevenção de doenças vasculares, Charles Drake, um dos mais importantes neurocirurgiões de aneurismas cerebrais de todos os tempos, Vladimir Hachinski, expoente da área de demências, especialmente as vasculares e as devidas ao mal de Alzheimer e, em nosso caso, Bryan Young e Michael Bolton, altamente preparados em terapia intensiva neurológica, neurologia e medicina interna e neurofisiologia clínica. Mantenho um relacionamento quase constante com Young (viva o e-mail!), que sempre me auxilia em minhas dúvidas, inclusive discutindo casos dificílimos. Há anos tentamos trazer Bryan Young para o Brasil, para algum simpósio ou congresso, mas sempre aparece um contratempo.
Tema importante
Uma palavra sobre os médicos que se sentem desconfortáveis com apenas o diagnóstico clínico de ME e realizam exames complementares inicialmente: todos os autores importantes na área, inclusive os aqui citados, são unânimes em considerar que o diagnóstico de ME e clínico, e os exames, como o próprio nome diz, são complementares, muitas vezes para fins de documentação ou mesmo proteção jurídica. O que acontece? Como a maioria dos transplantes realizados no Brasil se faz através do SUS, o Tribunal de Contas da União realizou, há poucos anos, uma extensa e extraordinariamente bem feita auditoria no sistema, aprovada pelos ministros do TCU em plenário.
Em mais de 500 páginas, dissecou-se a questão de transplantes no país. Um dos achados, surpreendente, é que a maioria dos intensivistas não se considera apto para fazer o diagnóstico de ME. Com perguntas específicas, demonstraram, inclusive, graves deficiências no conhecimento do protocolo, do exame neurológico e assim por diante. Alguns neurologistas, por incrível que possa parecer, também exibiram tais dificuldades. Conclusão: há uma séria questão de formação profissional, de educação médica continuada, dentre outras coisas relacionadas.
As entidades relacionadas ao assunto estão procurando informar de maneira mais adequada tais profissionais para sanar esse grave descompasso – daí, a vontade de se sentir mais seguro com um exame, quando jamais, em lugar algum do mundo, alguém irá fazer o diagnóstico de ME baseado em exames complementares. Esses, naturalmente, podem ser realizados antes do protocolo de ME, mas com finalidades diagnósticas destinadas à terapêutica do paciente, e não à declaração de sua morte.
Finalizando, e antecipadamente me desculpando pela extensão do presente texto, gostaria de renovar meus cumprimentos a Mauricio Tuffani e me alinhar com ele no quesito da crítica à mídia – afinal, acredito que morte é um tema suficientemente importante para ser divulgado, mas qualquer notícia de estética ou coisa parecida aparece muito mais na imprensa.
Afinal, como disse Woody Allen, não tenho medo da morte, apenas não quero estar presente no momento em que ela se apresentar…
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Médico, mestre em neurologia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), ex-conselheiro, ex-diretor e ex-coordenador da Comissão Técnica de Critérios de Morte Encefálica do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CRM), ex-membro da Câmara Técnica de Critérios de Morte Encefálica do Conselho Federal de Medicina (CFM)