A imprensa não se deixou intimidar por algumas decisões controversas da Justiça Eleitoral. Depois de reagir timidamente à proibição de entrevistas de candidatos antes da homologação nas convenções partidárias, jornais e revistas tomam a direção correta: seguem praticando o jornalismo e deixam o debate para os juristas.
A imprensa enfim levanta a cabeça e enfrenta a mordaça judicial. Já era tempo. A capa da última Veja São Paulo, com a entrevista do pré-candidato a prefeito Geraldo Alckmin, é uma resposta cabal à censura imposta pelo juiz auxiliar Francisco Carlos Shintate, que considerou como propaganda a primeira entrevista da série (com Marta Suplicy).
Tanto a Vejinha como a Folha de S.Paulo até agora vinham reagindo à censura togada com protestos e contestações de juristas, entidades da sociedade civil, jornalistas e corporações profissionais. Fazer onda é pouco, quase nada. Jornais e revistas não são apenas mensageiros passivos, são também protagonistas, atores proativos. Faltava nesta história uma ação afirmativa.
A Vejinha deste fim de semana encarou o magistrado e o desafiou. Correu riscos de ser novamente multada e considerada reincidente fazendo aquilo que seus leitores e a sociedade brasileira esperavam: continuou a série de entrevistas com os pré-candidatos e cumpriu com o seu dever de informar. Em outras palavras, afrontou a injustiça.
A mídia eletrônica, porque depende de concessões do Estado, em geral se resigna mesmo quando está certa. Desta vez, o voluntarismo esbarrou na vontade firme de quem está com a razão.
Este é um dado novo, positivo. Quando os poderes da República se equilibram, ganha a democracia.
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A culpa é da imprensa
Publicado originalmente no Último Segundo, 20/6/2008
Os adjetivos são fortes e justificados: é absurda, maligna e estúpida, a decisão tomada por um juiz paulista ao multar dois veículos jornalísticos (Folha de S.Paulo e Veja São Paulo) pela publicação de entrevistas com a pré-candidata a prefeita Marta Suplicy (PT), antes de iniciada a temporada eleitoral. Mais discricionária ainda foi a multa aplicada à própria entrevistada. Ao que tudo indica o Estado de S.Paulo também será incluído no intempestivo furor punitivo por causa de uma entrevista com o atual prefeito paulistano e candidato à reeleição, Gilberto Kassab.
O procedimento adotado pelo juiz auxiliar Francisco Carlos Shintate e as promotoras do Ministério Público Eleitoral que prepararam as representações não pode ser visto como ato impensado, fruto de eventual incontinência. Ação estudada, isso é que lhe confere tanta periculosidade e deixa abismados juristas e magistrados das instâncias superiores.
Além de evidenciar o despreparo e a precariedade na formação de bacharéis, a medida revela uma falha estrutural no edifício republicano resultante do acúmulo de sucessivos trincamentos. O mais visível é o escancarado desrespeito pela imprensa como instituição.
Investigações e denúncias
A crítica ao desempenho dos meios de comunicação é legítima, necessária, representa um avanço democrático. Mas quando governo e governantes se fingem de vítimas – e, a pretexto de contestar tópicos do noticiário, distribuem ameaças –, cria-se um perigoso fosso de desconfiança no âmago da sociedade.
Hoje a primeira reação de qualquer corrupto preso em flagrante é culpar imprensa. Sem coragem para enfrentar a Polícia Federal que os investigou ou encarcera, preferem desancar a imprensa que noticia seus feitos e malfeitorias. O juiz auxiliar e as auxiliares que produziram as insólitas multas em São Paulo apenas reproduziram o generalizado clima de animosidade contra os mensageiros. A melhor prova da má vontade está no parecer enviado quinta-feira (19/6) pela Advocacia Geral da União ao Supremo Tribunal Federal defendendo a manutenção na Lei de Imprensa de punições mais duras para jornalistas. Isso no exato momento em que o próprio STF examina a extinção do estatuto herdado da ditadura para substitui-lo por algo mais moderno e compatível com o estado democrático.
O juiz Shintate revela-se um leitor relapso de jornais e revistas (deve preferir a TV), desconhece a tradição jornalística de publicar séries de entrevistas com todos os candidatos em eleições majoritárias, independente do início formal da temporada. Entrevistar candidatos não é fazer propaganda, é um serviço público obrigatório. Veículos impressos (ao contrário dos eletrônicos sujeitos a concessões e regulamentos), desde que não caluniem ou ofendam, só devem satisfações aos seus leitores.
O ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, numa série de depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho no portal Último Segundo teve a coragem de reconhecer que as relações governo-imprensa continuam a apresentar um alto grau de tensão. É possível que ao governo desagrade a cobertura da imprensa no caso da venda da Varig, mas a tensão é injustificada já que a imprensa apenas reproduz investigações ou denúncias. Se não o fizesse estaria traindo seus compromissos com o leitorado.
Jurisprudência moral
Na sexta-feira (20/6), agentes da Polícia Federal (órgão do Poder Executivo) invadiram os gabinetes de dois deputados (representantes do Legislativo) envolvidos em desvio de recursos destinados ao PAC. A repercussão é enorme. Culpa da Imprensa?
Em determinadas situações a própria imprensa contribui para agravar desconfianças sobre sua atuação. Caso do não menos surpreendente boicote às comemorações dos 200 anos da circulação do primeiro periódico no país, o Correio Braziliense, lembrados apenas por dois veículos (Folha de S.Paulo e o homônimo contemporâneo do Distrito Federal) e ostensivamente ignorados pelos demais. Pecado mortal ou venial, mas significante.
O sábio D. Pedro II dizia que os erros da imprensa devem ser corrigidos pela própria imprensa. Ávido leitor de publicações, o imperador estabeleceu uma jurisprudência moral que leitores bissextos e desatentos deveriam levar em conta antes reviver a triste imagem da mordaça.