Na sexta-feira, 29 de janeiro, os principais jornais europeus destacavam na primeira página o lançamento do iPad – a nova engenhoca criada pelo incansável Steve Jobs – e a morte do escritor J.D. Salinger, autor de A Catcher in the Rye , (‘Apanhador em Campo de Centeio’, na versão brasileira), o mais reservado e retraído dos gênios literários da segunda metade do século 20.
Aos 55 anos, Jobs é considerado o mais inventivo dos inventores das tecnologias digitais. Criou empresas milionárias, sistemas digitais, plataformas, programas, equipamentos e, sobretudo, tirou os computadores da esfera das calculadoras para convertê-los em peças-chave da revolução midiática ora em curso.
Dez dias depois, no último fim de semana, a imprensa internacional esquecera Steve Jobs e o seu fascinante iPad. Mas os cadernos literários e culturais ainda estavam envolvidos com Salinger que morreu aos 91 anos, 59 depois do lançamento do seu romance mais importante. Jamais parou de escrever, escrevia pelo prazer de escrever, não lhe interessava editar.
Mistério e revelações
Comparação irrelevante? Mas fascinante: Salinger passou dois terços da sua existência fugindo dos holofotes, da mídia, dos entrevistadores, fotógrafos, biógrafos e estúdios de cinema. Vendia 250 mil exemplares/ano sem qualquer esforço. Foi capa das mais importantes revistas do mundo e autor de meia dúzia de ações judiciais para preservar a sua privacidade. Mesmo encafifado e ensimesmado, tornou-se ícone de algumas gerações de jovens enrustidos e rebeldes.
Jobs fez dos ícones a base do seu sistema operacional. Tornou as máquinas amigáveis, receptivas ao toque dos dedos, tem todas as condições pessoais, intelectuais e existenciais para produzir novos e utilíssimos iQualquer Coisa. Todos condenados à descartabilidade.
Será certamente mais festejado do que o magnata Bill Gates (que chupou o seu conceito de PC com um sistema operacional despótico, o Windows). Abriu caminho para outros Jobs, todos condenados à fortuna e ao esquecimento. Tal como o vendedor ambulante King Gillete inventor da lâmina de barbear descartável que, pelo menos, eternizou-se como substantivo comum, genérico.
Salinger criou histórias, recheou-as de valores e percepções. Podem ser lidas no Kindle, em Braile, em papel, ou ouvidas por deficientes visuais. Dentro de 70 anos, quando caírem em domínio público, poderão ser transformadas em quadrinhos, peças de teatro ou mesmo filmes (apesar do seu horror à adaptação de uma das primeiras histórias). Seu mistério vale mais do que suas revelações, o que deixa entrever faz mais sentido do que as evidências.
O que acontecerá com os gadgets de Jobs em 2080?
A resposta é, sim, irrelevante.
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