Também nestas semanas de Copa do Mundo a imprensa funciona como os poros psicológicos da população brasileira. Um processo na nossa personalidade coletiva extremamente dinâmico dá-se no interior desta e emerge pelos jornais, rádios e tvs. Ele é mais consistente e profundo nas matérias escritas, menos querendo agradar, despreocupadas de arregimentar platéias e agradar anunciantes como nas grandes torcidas da televisão.
O Brasil amadureceu nas últimas duas semanas. Na véspera do jogo contra a Croácia os palpites quanto ao placar eram ufanistas, comuns as apostas dos 3 x 0 a nosso favor. Afinal, não seria um time sem tradição, originário de um país ainda há poucos anos mero estado da federação enterrada no imenso território da Rússia, não seriam tais arrivistas obstáculo à seleção canarinho rumo ao hexacampeonato. Com tal estado de espírito, com uma inflação de expectativas ligamos a TV naquela terça-feira e encontramos um time engessado. Um jogador simbolizava nossa frustração, que se espalhou pelo time inteiro, pois o Fenômeno, de quem esperávamos ataques mortais, jogava como aquele que se esquecera de destravar o freio de mão.
Ao anoitecer 180 milhões de técnicos amadores tinham produzido diagnósticos e receitas infalíveis, ao entender de cada um deles melhores do que as táticas oficiais. Quem se lembrasse da Copa de 2002 veria a mesma condenação generalizada despejada sobre as diretivas de Felipão até bem próximo ao final. Paciência não é nosso forte.
‘Deu pro gasto’ foi talvez o que de mais generoso na mídia chegou ao ouvido de Parreira nos dias que se seguiram à primeira vitória por 1 a 0. Como a nação exigia espetáculo, os cronistas esportivos da Folha e do Estadão pareciam cobrar de Parreira a conta do sofrimento da opinião publica que vivera 90 minutos de terrível perigo, defendida apenas por aquela margem precária.
Mas nosso treinador soube agüentar a farta dose de solidão e seguiu ousado, não temendo a responsabilidade que chamava a si de escalar fora das convenções. No segundo jogo, contra a Austrália, o Brasil entrou em campo sem tanta hybris, aparada pelas sérias ameaças vividas na primeira partida. Ainda assim tendíamos a subestimar o adversário que afinal só tem tradição é de rúgbi. Deixamos o estádio vitoriosos, mas sem evitar nos telespectadores uma constante sensação de real ameaça, de um placar amarrado com barbante.
Visão genuína
Contra o Japão o time brasileiro jogou armado do conforto psicológico da classificação garantida, mas no fundo nossa auto-estima de pentacampeões queria mais. Afinal, no íntimo, não admitíamos que o apurado senso de Esparta conseguisse trazer os nipônicos ao ponto de superarem a malícia e a criatividade do futebol brasileiro. Nessa altura entra a coragem de Parreira para pescar no banco de reservas jogadores para posições-chave, sem inibir sua ousadia.
Quando de uma chuteira japonesa partiu o pontapé que ainda no início da terceira partida sapecou a bola na rede de Dida, o Brasil inteiro em estado de choque diante da telinha recebia uma punhalada. Seguiram-se muitos minutos em que pareciam pisar-nos sobre nossa identidade nacional. Foi um susto nacional. Aquele gol parecia cristalizar o medo latente com que a torcida brasileira vivera toda a Copa até ali. Por mais classificados que já estivéssemos o tento japonês encarnava a insegurança que trouxéramos à Alemanha e que havíamos conseguido esconder entre vitórias pouco convincentes.
O 4 a 1 conseguido nesta seqüência de suores e após sermos obrigados a podar nosso ego tem sabor especial. Tal merecido entusiasmo cobriu os cadernos especiais que os jornalões dedicam à Copa. A animação é redobrada, pois ela comemora o sucesso de um time que é viável também no banco de reservas. Comemorem-se os quilates de caráter de Parreira que soube enfrentar a grande maioria. Comemore-se o país que dispõe de colunistas esportivos com a visão sempre genuína como Juca Kfouri, a observação serena e preparada como a de Tostão.
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Dirigente de ONG, Bahia