Acossado por uma saraivada de acusações disparadas por uma parte da imprensa contra membros da sua equipe econômica, o governo fez a opção mais desastrada: enviou ao Congresso um antiquado e controverso projeto para a criação do Conselho Federal de Jornalismo.
Na justificativa, o ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini declara candidamente que a nova entidade deverá ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’ o exercício da profissão e a atividade jornalística. Diz ainda que ‘atualmente não há nenhuma instituição com competência legal para normalizar, fiscalizar e punir as condutas inadequadas dos jornalistas’.
A iniciativa é a mais inábil e atarantada já produzida na esfera da imprensa por algum governo desde a redemocratização em 1985. Tanto no espírito como na forma é rigorosamente autoritária e corporativa. A oportunidade, a justificativa e o conteúdo não poderiam ser mais funestos e inconvenientes. Parece homenagem ao onipotente Estado Novo com toques de Mussolini, George W. Bush e Hugo Chávez.
Confunde alhos com bugalhos, desconfia que há um problema na mídia brasileira, não consegue identificá-lo e, obviamente, parte na direção oposta da solução correta.
O problema do nosso jornalismo não está nos jornalistas, está na concentração dos veículos de comunicação, na propriedade cruzada e está, sobretudo, em algumas empresas jornalísticas que desprezam suas responsabilidades e ignoram as contrapartidas sociais pelos privilégios oferecidos na Constituição do país.
O atual surto denuncista leva a assinatura de profissionais, todos respeitáveis, mas é insuflado por algumas empresas de comunicação tomadas de assalto por predadores comprometidos em servir aos interesses contrariados e abiscoitar migalhas de poder. Os vazamentos de processos sigilosos revelam ilícitos mas revela, sobretudo, a espessa ferrugem que entope nosso modelo de transparência.
O denuncismo que tira o sono do governo federal poucos anos atrás era saudado e estimulado pela oposição ao governo anterior, que o considerava fruto legítimo do ‘jornalismo investigativo’. Os profissionais que se especializaram em transcrever grampos de origem suspeita jamais foram forçados a fazê-lo – entregaram-se à tentação de serem glorificados por empresas que confundem independência jornalística com dependência a fontes escusas de recursos.
O ministro Ricardo Berzoini – ou aqueles que o induziram a assinar aquele besteirol – está sendo no mínimo ingênuo ao imaginar que o exercício da engenharia, da química ou da arquitetura assemelha-se ao exercício da atividade jornalística. Embarcou na canoa furada do simplismo, acha que um Conselho Nacional de Engenharia é igual a um Conselho Federal de Jornalismo. Inspirado talvez por Lourival Fontes resolveu ressuscitar os fantasmas do peleguismo e apadrinhar o velho projeto corporativista.
Espasmos e malabarismos
Jornalistas não precisam ser protegidos pelo Executivo, ao contrário, precisam libertar-se das amarras do poder político. O exercício do jornalismo deve ser livre de constrangimentos e filiações suspeitas. Jornalistas precisam de proteção, sim, mas da proteção do Judiciário. Esta é a equação politicamente correta e moralmente defensável. E se há magistrados que não subordinam seus interesses pessoais à cláusula pétrea da supremacia do direito de expressão sobre os demais direitos, estes magistrados precisam ser publicamente denunciados.
A formulação original sobre o equilíbrio entre os poderes foi concebida por Montesquieu e, mais tarde, quando adotada pelos patriarcas da república americana, a imprensa converteu-se no Quarto Poder, contrapoder efetivo e autônomo. Com os jornalistas patrocinados por uma entidade criada pelo governo federal, e cujas contas serão fiscalizadas pelo Tribunal de Contas da União, que tipo de jornalismo será oferecido à sociedade?
Se o governo preocupa-se com a lei da selva que impera nos rincões obscuros da nossa mídia deveria imediatamente acionar o debate para a instituição de uma agência reguladora nos moldes da americana FCC (Federal Communications Comission), criada por Franklin Delano Roosevelt, ou sua equivalente inglesa, a IBA (Independent Broadcasting Authority). Esta é a conduta correta, democrática, liberal e libertária, efetivamente progressista.
Por coincidência, na mesma hora em que o governo mandava publicar no Diário Oficial a esdrúxula medida discricionária, o candidato John Kerry prometia num comício em Washington resistir à concentração da mídia americana justamente através da FCC.
Ao invés de buscar as simpatias de uma parcela dos jornalistas, sobretudo os hospedados nas assessorias de comunicação dos órgãos públicos, o governo deveria buscar as simpatias dos leitores. São eles os principais interessados numa imprensa sadia, livre dos malabarismos do marketing e dos espasmos sensacionalistas.
[Também publicado no Último Segundo (http://ultimosegundo.ig.com.br), em 6/8]