Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Contradição na defesa de um Estado intervencionista

A crise que assola as economias do mundo inteiro – desencadeada, dentre outras coisas, pela despencada no setor imobiliário dos Estados Unidos e pela má gestão dos negócios de Wall Street –, responsável pela queda de bancos e empresas de grande porte, tem levado os governantes, os grandes executivos do mundo e a mídia a defenderem a intervenção do Estado na economia, o que era duramente criticado não faz muito tempo.

O filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau afirmou, na obra Contrato Social, em referência ao ‘direito do mais forte’, que ‘o mais forte nunca é assaz forte para ser sempre o senhor, se não transforma essa força em direito e a obediência em dever’. Assim parece funcionar o capitalismo, que transformou sua força em direito, a ponto de ‘convencer’ uma maioria significativa que o que antes era inadmissível agora se converte em algo imprescindível à sobrevivência das nações.

A atual crise, que se arrasta há algum tempo, tem demonstrado a fragilidade do sistema capitalista e, no entanto, nada disso vem sendo devidamente analisado pelas inúmeras redes de comunicação do mundo inteiro. Para quem conhece um pouco acerca do sistema corporativo que controla a mídia mundial, esse silêncio não é de se estranhar, visto que a dita comunicação social está imersa no mundo capitalista há muito, e cada vez mais – sobretudo a partir da segunda metade do século 20, quando inúmeras fusões fizeram com que poucos grupos se tornassem proprietários dos maiores conglomerados de comunicação do planeta, a exemplo da AOL Time Warner Inc., iniciada com a primeira fusão entre a Time Inc. e a Warner Communications, em 1990 e, por último, em 2002, quando a America Online foi incorporada pela Time Warner.

Privatização e não-intervencionismo

Neste cenário, considerando a crise que ora afeta as economias mundiais, a mídia jornalística de todo o mundo se limita a noticiar as medidas adotadas pelos países capitalistas – principalmente os Estados Unidos – que visam a diminuir os prejuízos das grandes corporações. Isto posto, há uma pergunta que não quer calar: por que, quando havia o bloco comunista, liderado pela antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), se ventilava tanto a necessidade de liberdade de mercado, a não-intervenção do Estado na economia, e agora – quando o capitalismo dá sinais muito fortes de debilidade – se defende justamente o contrário? Por que a sociedade de um modo geral – e a mídia em particular – não criticam essa ação intervencionista dos Estados?

O liberalismo econômico seria a melhor maneira de se chegar a uma ordem econômica otimizada, deixando as atividades produtivas completamente livres, submetidas ao ‘movimento natural’ da lei da oferta e da procura. O Estado seria o resultado do ‘pacto’ que aparece entre indivíduos igualmente livres. Este Estado seria apenas uma espécie de ‘controlador’ dessa ordem pactuada, devendo intervir o mínimo possível.

Os postulados neoliberais consolidados na segunda metade do século 20 tiveram como prioridade o afastamento do Estado de todas as atividades produtivas e, mais do que isso, defendiam o processo de privatização (inclusive, em setores considerados mais essenciais, como educação e saúde), bem como a interrupção de toda e qualquer ação intervencionista.

Mais um ‘tentáculo’

Os defensores desse liberalismo apregoam, com muita ênfase, a supremacia da economia sobre a política, entendendo com isso que, para realmente haver liberdade, é necessário o afastamento de qualquer ação do Estado na regulação da economia.

Os discursos e ações que apregoam a ineficácia do Estado no comando da economia ecoaram nos diversos cantos do mundo, inclusive conseguindo se fortalecer em regiões que haviam sido fortemente influenciadas pelo pensamento socialista fortalecido com a Revolução Russa de 1917. A queda do muro de Berlim, em 1989, significou, junto a outros fatores, uma importante e imponente vitória do pensamento neoliberal.

O sistema capitalista contou (e continua contando) com a crucial ajuda dos meios de comunicação de massa, ‘componentes’ imprescindíveis à engrenagem corporativa burguesa, que conta também com a subserviência do Estado, o qual atua principalmente como ‘salvador’ econômico do liberalismo e cuja atuação se dá visando unicamente a evitar e/ou diminuir as conseqüências de suas crises cíclicas e suas eventuais perdas de lucratividade.

Inúmeras são as ações levadas a cabo por esse Estado nesta perspectiva, a exemplo da criação de planos econômicos com o intuito de aumentar o poder de consumo da população, bem como a concessão de empréstimos e subsídios, entre outros.

A crise que ora afeta as economias mundiais tem revelado isso de maneira muito clara: os esforços do recém-empossado presidente dos Estados Unidos para aprovar no Congresso daquele país um pacote bilionário de ajuda às empresas é a confirmação desta assertiva. Aliado a isso, o apoio da mídia mundial à iniciativa parece ser unânime, o que demonstra a a força do capitalismo, mesmo sendo visível sua fragilidade, remetendo a uma questão extremamente importante do ponto de vista da importância da comunicação no processo de convencimento e/ou de reforço de idéias, ideologias e, neste caso particular, a imprescindível contribuição dada pela comunicação ao capitalismo a partir do momento em que esta se converte em mais um dos ‘tentáculos’ do sistema.

Perverso e ineficiente

Dowbor (2002) afirma que ‘a veiculação das mensagens pertence a um grupo muito restrito de mega-empresas transnacionais […]. A articulação destas com emissoras de TV, jornais e outros meios, com as empresas que controlam as telecomunicações e a nova infraestrutura da comunicação, vai gradualmente compondo uma rede de poder […]. O espaço da mais-valia virtual constitui um clube com acesso limitado […]. A dinâmica de poder atinge diretamente a nossa visão de mundo[…]’.

Partindo desta perspectiva, ‘é fácil compreender’ por que os discursos em torno da crise veiculados pela grande maioria dos meios de comunicação do mundo são praticamente uníssonos: trata-se de salvaguardar os interesses desse pequeno e poderoso ‘clube com acesso limitado’.

Portanto, o questionamento das intervenções financeiras do Estado – com o dinheiro do cidadão, diga-se de passagem – para salvar grandes corporações não está na pauta de discussões dos mass media; igualmente, está fora de cogitação sugerir, por exemplo, que em vez de aplicar dinheiro do contribuinte para salvaguardar as montadoras e tantas outras corporações, os Estados poderiam investir em infra-estrutura pública em várias áreas, como saúde, educação, transporte de massa, habitação etc., pois não seria interessante a sobrevivência de um sistema que ciclicamente tem dado sinais de debilidade e, pior, tem aumentado a pobreza em inúmeras regiões do globo.

Conforme o economista britânico, de origem indiana, Raj Patel, há quatro anos (2005) 35,1 milhões de pessoas nos Estados Unidos não sabiam se iriam poder pagar a refeição seguinte, demonstração do quão perverso e ineficiente é o capitalismo. No entanto, este conta com uma inexorável defesa, sobretudo da mídia mundial.

Referências

DOWBOR, Ladislau. A economia política das tecnologias da comunicação e informação, 2002. Disponível em: http://dowbor.org/02ecocomunic.doc

PATEL, Raj. Obesos y famélicos. Buenos Aires: Marea, 2008.

ROUSSEAU, J.J. O Contrato Social. Pontes, 2003.

******

Doutora em História e Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid – Espanha, professora da rede estadual de ensino da Bahia e dos cursos de Comunicação Social e Pedagogia da Faculdade 2 de Julho – Salvador, BA