A Airbus, indústria européia de aviões, esteve nas manchetes da mídia do planeta inteiro nos últimos dias. No Brasil, por uma dupla razão. Tanto pelo lançamento do gigante A380, capaz de levar até 800 passageiros, como pela chegada do modelo ACJ, o ‘Aerolula’, novo avião para transporte do presidente desta República, também produzido pela empresa.
A cobertura da mídia, nos dois casos, refletiu deslumbramento e paroquialismo combinado com um partidarismo que, ao menos no segundo caso, não só dá vazão mas durabilidade ao discurso anacrônico da elite política inconformada com o fato de um metalúrgico, e não um representante dos sinhozinhos, ocupar a Presidência.
Claro que o governo Lula tem uma série de problemas. A resistência, desonesta mesmo, em repassar, sem discussão, as taxas de inflação para a correção da tabela do imposto de renda é uma delas. A manutenção de uma carga tributária impiedosa (concentrada sobre a classe média e os pobres), sem perspectiva consistente de reversão significativa e desacompanhada de uma contrapartida de serviços sociais de qualidade, é outra. Uma terceira é a péssima condição das estradas e por aí se pode seguir até muito longe.
Indiferença antiga
Algumas dessas questões têm atrás de si uma inércia, no sentido físico da expressão – resistência em alterar sua condição de repouso ou movimento – de praticamente 500 anos. É, de certa forma, o caso de estradas ruins, inseguras e sem policiamento mínimo necessário. Tudo isso espelho de uma indiferença de séculos quanto aos direitos elementares do cidadão, ou dos pagadores de impostos, em que fomos transformados.
O espaço, tempo e a quantidade de tinta gastos para bombardear o novo avião da Presidência, no entanto, denunciam um inconformismo senhorial mal disfarçado.
O ‘Sucatão’, a aeronave que servia ao presidente, por panes e especialmente veto operacional em muitos aeroportos de países desenvolvidos, sem dúvida deveria ser substituído. É, no mínimo, uma forma de tratar o complexo de inferioridade que trazemos da colônia.
Ah! Sim, mas o ‘AeroLula’ tem sistemas anti-mísseis. E por que não? Por que o avião da Presidência de um país como o Brasil, no contexto em que estamos vivendo, não deveria ter essa proteção? Talvez porque, com Lula voando no ‘Sucatão’, a elite senhorial arcaica sonhe com a possibilidade de se livrar mais cedo do presidente que não aprecia.
Gigantes voadores
Já em relação ao A380, o mastodonte de 800 passageiros, o paroquialismo é quase constrangedor. Deslumbramento completo. Até porque, repórteres de grandes jornais, viajaram à França para as comemorações do lançamento do A380 às expensas de companhias aéreas e da própria Airbus, um cala-boca eficiente.
Nessa condição, se tiver que dizer alguma coisa, o repórter-convidado certamente dirá o que seus anfitriões querem ouvir. E registrar ao pé do texto que o repórter viajou, por exemplo, a convite da Airbus e TAM, certamente não resolve esse problema operacional.
A verdade é que esses gigantes do ar trazem atrás de si uma série de problemas que deveriam ser minimamente refletidos pela mídia. Essa é uma obrigação em termos de prestação de serviço de qualidade. O que a mídia fez, no entanto, incluída aí Veja – sempre disposta a corrigir os rumos do mundo, eventualmente de todo o Universo – foi uma edição que se limitou ao press release.
O problema dos aviões fora dos padrões convencionais (os convencionais também produzem sua cota de complicações) apareceu com o supersônico anglo-francês Concorde, nos anos 1970.
Essa belíssima garça metálica, desativada em outubro de 2003 após um acidente fatal, três anos antes, trouxe uma preocupação de deterioração da atmosfera que envolveu gente séria. Especialmente se tivessem se proliferado, por cópia – como foi o caso do Tupolev 144 então soviético – ou mesmo superada por projetos ainda mais pretensiosos, caso do modelo batizado como 2707, da Boieng.
O temor de que esses aviões pudessem contribuir para uma grave deterioração da camada de ozônio atmosférico foi levantado inicialmente por James McDonald, da Universidade do Arizona, ainda nos anos 1960, com estudos feitos a pedido da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Ele era membro de uma comissão da academia para estudar mudanças climáticas.
Devoradores de ozônio
McDonald descobriu que turbinas – aspirando grande quantidade de ar e retirando daí oxigênio para queima de combustível em alta temperatura – produzem óxidos de nitrogênio como parte das descargas. Óxidos de nitrogênio são devoradores de ozônio, ainda que naturalmente presentes na atmosfera. Outro gás com este comportamento é a oxidrila ou hidroxila (HO).
Em 1970, quando algumas previsões falavam de até 800 desses supersônicos cruzando o Atlântico Norte entre 1985-90, McDonald ficou preocupadíssimo, como registra John Gribbin em The Hole in the Sky, um livro de 180 páginas atualizadísimas, que saiu em 1988.
Em 1971 houve um encontro em Boulder, Colorado, com participação de vários outros pesquisadores atmosféricos, como Joe Hirschfelder, da Universidade de Wisconsin, que convencera seus colegas da necessidade da reunião. Harold Johnston, da Universidade da Califórnia, foi outro dos participantes dos debates que tiveram uma exposição de McDonald, no primeiro dia. Ele foi ridicularizado e, não se sabe exatamente se devido a isso, suicidou-se algum tempo depois.
Ameaças desfeitas
De qualquer maneira, em agosto de 1971 saiu um artigo de Johnston na prestigiosa Science, a contrapartida norte-americana da Nature, inglesa, destacando a ameaça dos óxidos de nitrogênio como destruidores de ozônio. Três anos depois, um levantamento que reuniu mil pesquisadores de 10 países mostrou que uma frota de 500 Boieng 2707 voando sobre o Atlântico Norte – cada um liberando 18 gramas de óxido nítrico por quilo de combustível – provocaria uma redução de 15% na concentração do ozônio no hemisfério Norte; e até o hemisfério Sul sofreria esses efeitos, ainda que menores (8%).
Estudos posteriores, mais refinados, refutaram essas preocupações. E, além disso, a previsão de uma frota de supersônicos, no estilo Concorde, ou ainda mais sofisticados, não se concretizou. O próprio Concorde é, paradoxalmente, um caso do futuro confinado ao passado.
Mas esses gigantes do ar são tão inofensivos quando seus produtores querem fazer parecer?
A resposta deve ser procurada junto a especialistas, os únicos capazes de responder a essas questões com base em abordagens científicas. Que impacto esses gigantes irão produzir também em solo, exigindo ampliações de aeroportos e carregando, de uma só vez, populações superiores a um sem-número de povoados espalhados pela superfície do planeta?
Frango ou peixe?
Aparentemente, até agora, a única restrição feita ao A380 veio de um articulista do jornal inglês Guardian, o crítico de design Jonathan Glancey, com refinado humor britânico.
‘Chicken or fish’ (frango ou peixe), escreve Glancey na abertura de seu artigo, parafraseando os cacoetes dos comissários de bordo durante os serviços de almoço ou jantar. Ele prevê que todo o luxo anunciado pelas empresas (cassinos, salas de jogos e exercício e toda uma parafernália de necessidades criadas por uma faminta e sempre insatisfeita sociedade de consumo) será simplesmente substituída por poltronas convencionais e desconfortáveis com o crescimento do número de passageiros e a sede de lucro das empresas aéreas.
Como se vê, temos aqui ao menos duas pautas interessantes para discutir o impacto desses novos gigantes do ar. Mas a mídia toda se concentrou na solução preguiçosa e provinciana de puro deslumbramento. Ainda que se trate, claro, de um triunfo de engenho e arte.
E há, ainda, o impacto mais amplo do turismo, nem sequer sugerido nos textos.
A tendência ao longo deste século 21 é de um crescimento vertiginoso no turismo – o que, em princípio, deve ser comemorado. Mas há conseqüências complexas aqui, sobre os quais a mídia deveria estar produzindo alguma reflexão.
Com mais de 6 bilhões de pessoas no mundo – ainda que apenas uma pequena parcela seja beneficiada pelo prazer de conhecer lugares mais distantes que aquele em que nasceram – a tendência é de um crescimento brutal nos deslocamentos. Qual o impacto, na atmosfera, com o crescimento no número de aviões, especialmente mastodontes voadores como o A380, transportando multidões?
Na contra-mão da história
Reflexões como essa, oferecidas à sociedade, podem estimular iniciativas capazes de amenizar, até certo ponto, muitos desses impactos. Até porque o que não se pode fazer é reproduzir a postura estúpida tomada pelo Vaticano e transmitida aos católicos pelo bispo José Luis Redrado Marchite, secretário do Conselho Pontifício para a Saúde. O Vaticano, em pleno século 21 (repleto de denúncias de padres envolvidos com pedofilia e violência sexual contra crianças e adolescentes) repudia o uso de camisinhas (preservativos), mesmo como forma de proteção contra a Aids. Segundo o bispo Marchite ‘este é um método que a Igreja Católica condena’ por ser ‘imoral’.
Se os padres tivessem filhos, trabalhassem duro por mais de 8 horas diárias como fazem os pais comuns, talvez o Vaticano tivesse alguma chance de deixar a contra-mão da história e conhecer a realidade do mundo.
Entre outras conseqüências porque essa posição retrógrada e irresponsável contribui para a explosão da bomba populacional em escala planetária. Com reflexos no ambiente, na qualidade de vida e até mesmo na ocupação de gigantes como o A380. Embora, à primeira vista, esses fatos pareçam precariamente conectados.
E aqui há uma outra omissão. Católicos fervorosos, jornais como O Estado de S. Paulo, freqüentemente noticiando ‘milagres’, com repórteres especializados na cobertura da Igreja Católica, não deram um pio sobre a posição estúpida transmitida pelo bispo Marchite.
O Estadão publicou um texto indignado do escritor peruano Mario Vargas Llosa no domingo (23/1, pág. A 20). Mas foi uma manifestação externa à redação. E a única que tocou no assunto.