Um dos temas subjacentes ao debate sobre o papel e as responsabilidades da grande mídia é a autonomia do jornalismo – como profissão e como prática – em relação aos conglomerados privados de comunicações, cada vez maiores, mais poderosos e em número mais reduzido em nível global.
Esta é, aliás, uma discussão que vem conquistando espaço, inclusive nos nossos cursos de pós-graduação em Comunicação, infelizmente quase sempre distantes da realidade concreta do setor. Desde pelo menos a década de 1970, o tema vem sendo pesquisado e debatido nos mais importantes centros de pesquisa da Comunicação. Mesmo entre nós, muito se tem publicado sobre a construção de uma teoria do jornalismo e uma Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo foi criada, em 2003.
Na verdade, a questão da autonomia implica outra absolutamente crítica para a sobrevivência das empresas que produzem notícias: a sua credibilidade. Embora alguns jornalistas em posição de comando e empresários ainda se utilizem da superada metáfora do jornalismo como simples mensageiro – condição que o exime de qualquer responsabilidade em relação ao conteúdo da mensagem que transmite –, não há dúvida de que é crescente a consciência da necessidade de se praticar um jornalismo que tenha como meta a correção, a isenção e a verdade.
Percepções distorcidas
O presidente das Organizações Globo, por exemplo, ao ser agraciado no XIX Congresso Brasileiro de Magistrados, recentemente realizado em Curitiba, reafirmou esses compromissos. E não se trata apenas de uma ‘virtude’. Ao contrário. Como salientou Roberto Irineu Marinho, ‘informar com qualidade é uma exigência dos [nossos] consumidores. Sem isso, nós seríamos abandonados e nossas empresas definhariam’.
A credibilidade é a nova questão de fundo que emergiu a partir da cobertura política oferecida pela grande mídia aos seus ‘consumidores’, não só durante a crise política que se iniciou em maio de 2005, mas, sobretudo, durante a campanha eleitoral deste ano. São várias as razões para essa emergência e algumas delas já foram tratadas em artigos anteriores. Retomo a questão teórica.
Os estudos sobre o ‘jornalismo sitiado’, a sociologia do jornalismo, as pesquisas sobre construção da notícia (newsmaking), enquadramento (framing) e agendamento (agenda setting), apesar de diferenças significativas, admitem a autonomia do jornalismo embora sujeita a uma série de constrangimentos. Na verdade, ela é praticada no contexto de uma subcultura própria; de rotinas produtivas que se transformam em normas; e de interferências – explícitas ou não – da posição editorial, vale dizer, das opções e interesses daqueles que são ou proprietários ou concessionários da grande mídia.
É nesse contexto que certas coberturas políticas podem provocar distorções importantes na percepção que grandes segmentos da população constroem sobre estratégias e ações de governo que afetam diretamente suas vidas.
Estrutura simbólica
Já pude tratar neste Observatório (‘Diversidade em risco: Rumo ao monopólio da TV paga‘) de um relatório do Programa Internacional de Comportamento Político da Universidade de Maryland, apoiado em pesquisas realizadas entre os meses de junho e setembro de 2003, que constatou que 48% dos americanos acreditavam que suas tropas haviam encontrado evidências de ligações entre o Iraque e a al-Qaeda; outros 22% acreditavam que as tropas encontraram Armas de Destruição em Massa (WMD) no Iraque; e 25% acreditavam que a opinião pública mundial apoiava a ação armada dos Estados Unidos.
Todas essas percepções estavam equivocadas. E por quê? As pesquisas identificaram – entre os quatro fatores principais – as fontes de informação sobre a invasão do Iraque. Entre os 80% que tinham a radiodifusão como fonte principal, 18% eram telespectadores da Fox News. Dentre eles, 80% tinham pelo menos uma das três percepções equivocadas e 45% acreditavam em todas as três.
Estes dados indicam que o jornalismo produzido pela Fox News sobre a invasão do Iraque recebe um ‘enquadramento’ que não só favorece o ponto de vista oficial do governo Bush como omite fatos importantes em relação ao próprio conflito. E para que isso aconteça não é necessária – embora possa existir – uma determinação de ordem superior para que os jornalistas cumpram. A estrutura simbólica de valores, orientações e expectativas, dentro da qual a prática jornalística da Fox News ocorre, é suficiente para produzir esses resultados distorcidos da realidade.
Pluralidade e diversidade
É falso, portanto, acreditar que o jornalismo, sobretudo o jornalismo político, possa ser julgado somente por critérios técnicos internos à profissão. As notícias são construções simbólicas e a autonomia do jornalismo sempre será relativa. O jornalista nunca será absolutamente neutro ou isento o que, todavia, não o exime de buscar a exatidão factual.
Assumir publicamente essa condição constitutiva do jornalismo – e abrir a discussão de seus critérios e práticas – talvez seja o único caminho para a grande mídia privada restaurar a credibilidade ameaçada junto aos seus ‘consumidores’.
Essa é a discussão que está posta entre nós. São a pluralidade e a diversidade na mídia e o interesse público que ganham com esse debate. E nunca é demais insistir – por mais que essa insistência desagrade a alguns: ganha, sobretudo, a democracia brasileira.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)