Enfim, as eleições acabaram. E me parece que saiu um peso enorme das costas. Não preciso mais conviver diariamente com as baixarias nos horários eleitorais e, creio, aquelas absurdas mensagens de e-mail desaparecerão.
Como as eleições deste ano foram um ‘escândalo’ (incluindo as acusações mútuas e os escândalos políticos revelados), tomo a liberdade de visualizá-la à luz do já clássico O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia, de John B. Thompson, o qual expõe quatro partes de um escândalo: a fase pré-escândalo (das transgressões e investigações pela mídia); a fase do escândalo (concentração no indivíduo acusado e surgimento de novos fatos e pessoas); o clímax (demissões, renúncias, instauração de processos etc. Isto é, o verdadeiro evento de mídia); e as consequências (fase de reflexões mais abrangentes, com revisões dos fatos e suas implicações) [interpretação dada por mim à obra de Thompson, que consta de artigo publicado neste Observatório da Imprensa].
Vivendo de quebras de sigilo, Erenice, Paulo Preto e irregularidades em licitações do governo paulista, ora e outra temperada com opiniões religiosas, manifestos e distorção da história nacional, os meses de campanha eleitoral passaram lentamente e podem se encaixar nas partes acima descritas, sobretudo a de clímax. Diga-se: para a grande mídia.
Ah, claro, falaram de propostas. Mas isso foi o que menos se ouviu. Seguindo esse raciocínio, estamos agora no fechamento do escândalo, com os fatos já consumados e as paixões deixadas de lado, momento no qual surgem as análises mais frias, racionais.
‘Entramos num marquetismo perigoso’
Centrando minha atenção na eleição à Presidência, começo pelo primeiro pronunciamento da candidata eleita, Dilma Rousseff, assim como sua primeira entrevista, concedida ao Jornal Nacional, da Rede Globo.
Dilma fez um discurso reafirmando alguns pontos colocados durante a campanha, sobretudo no que se refere à continuidade dos programas sociais e de infraestrutura. Além disso, desfez (ao menos no discurso) a guerra com a oposição, e falou também de outro aspecto não menos importante, mas que não foi abordado durante a campanha, por ser de ‘ordem técnica’, se assim posso dizer (ou porque se perdeu muito tempo com acusações), relativa a permanência do câmbio flutuante. Este assunto, que foi melhor explorado no Jornal Nacional (e que não me cabe aqui comentar, já que não sou economista e certamente seria incompetente para tanto), repercutiu em jornais de todo o mundo no início desta semana, pois é do interesse dos investidores e especuladores estrangeiros, assim como das empresas brasileiras, sobretudo as exportadoras.
Passo agora à oposição, não com o discurso do candidato derrotado, mas com uma entrevista bastante interessante do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à Folha de S.Paulo, na segunda-feira (1/11). Embora sem deixar de fazer as críticas costumeiras ao presidente Lula, FHC expõe uma sincera opinião sobre o processo eleitoral deste ano, fazendo também sérias críticas ao seu partido. Chamo atenção especial para a pergunta (e resposta) a seguir.
Folha: A dose dos chamados marqueteiros nas campanhas tucanas está exagerada?
FHC: Sim, em todas as campanhas. Nós entramos num marquetismo perigoso, que despolitiza. Hoje a campanha faz pesquisas e vê o que a população quer naquele momento. A população sempre quer educação, saúde e segurança e então você organiza tudo em termos de educação, saúde e segurança. Sem perceber que a verdadeira questão é como você transforma em problema uma coisa que a população não percebeu ainda como problema. Liderar é isso. Aí você abre um caminho. A pesquisa é útil não para você repetir o que ela disse, mas para você tentar influenciar no comportamento, a partir de seus valores.
Suponha uma pesquisa sobre privatização em que a maioria é contra. A posição do líder político é tentar convencer a população [do contrário]. O que nós temos na campanha é a reafirmação dos clichês colhidos nas pesquisas. Onde é que está a liderança política, que é justamente você propor valor novo. O líder muda, não segue.
As reformas em pauta
Concordo com o raciocínio, e creio que isso se aplique a todos os candidatos. O PT (e seus aliados), pelo índice de aprovação de Lula, era o que tinha a campanha mais tranquila, ficando na defensiva e dando ênfase aos programas sociais e ao aumento médio de renda (os pobres que passaram a ser médios). O PSDB (e seus aliados), como disse FHC, ‘não defendeu a própria história’, entrou em contradição e, para não ser facilmente vencido, recorreu a questões que devem ficar fora da discussão política. O PV, que dizem ter sido a sensação das eleições, não apresenta uma base sólida. Ao que me parece, seus eleitores votaram nos candidatos (pelos vínculos com o partido anterior e/ou por não acreditarem nos dois principais candidatos), e não no partido. O PSOL teve um discurso mais contundente, mais realista. Porém fica ainda a impressão de estar fazendo, nos dias atuais, o papel do PT da década de 1980. Outros partidos de esquerda (PCB, PCO E PSTU), continuam com um discurso de manifestação e não conseguem traduzi-lo de forma simples e prática para a população, que em geral se encanta com as facilidades para o aumento do consumo.
Sendo assim, o que podemos esperar?
Como já afirmei aqui, observo como essencial a reforma política, entendida num sentido abrangente, que vá desde a composição das casas legislativas, passando pelo financiamento de campanha e tempo nos meios de comunicação, até a democratização dos meios de comunicação. Outras reformas também estão na pauta, como a fiscal e a tributária. Todas ainda bastante opacas para a maioria da população (e estas duas últimas ainda são para mim), embora todos os candidatos defendam a urgência destas reformas.
Nas águas da grande mídia
Destaco, neste ponto, a entrevista de Chico de Oliveira, publicada no Le Monde Diplomatique Brasil, em setembro deste ano. O sociólogo fala com pessimismo das reformas e profundas mudanças pelas quais o país precisa passar, dando uma resposta (antecipada) ao que FHC observou em sua entrevista como falta de liderança, de aproximação com as massas. Perguntado sobre a importância da reforma política para democratizar o país, ele diz:
‘Sabe qual é o defeito principal do sistema político brasileiro? É a perda de representatividade, e isso atinge todos os sistemas políticos em todo o mundo. O sistema político ficou inalcançável pela maioria da população. (…) A democracia política no Brasil através da representação veio só depois de 1945, e durou até 1964, quando os militares deram o golpe de Estado, para retornar com nova chance em 1984. Naquele momento, criaram-se vários partidos, mas apenas o PT tinha mais representatividade na classe social da qual surgiu. Porém, com o tempo, o próprio PT sucumbiu às suas transformações internas e da sociedade, de modo que nem ele é representativo atualmente. Assim, a maior crítica que se pode fazer ao sistema político é a perda de sua representatividade com os partidos como mediação entre a sociedade e o Estado. Mas essa crítica é irremediável, não há o que fazer.’
Fatos: os partidos estão muito distantes da massa, não conseguem, não sabem ou não querem dialogar permanentemente e, em época de eleição, apelam para o poder do marketing, conseguindo suas vitórias, embora à custa de negar o verdadeiro sentido de suas existências. Os demais partidos, sem terem condições financeiras de usar deste artifício, e mesmo sem aceitá-lo, não conseguem transmitir suas mensagens, pois o que impera são os recursos financeiros para divulgação em qualquer mídia.
Assim, o chamado quarto poder continua formando opiniões com todos os seus vícios. De forma direta ou indireta, todos acabam navegando (com sérios riscos de naufrágio) pelas águas da grande mídia, sempre com fortíssimas tempestades.
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Sociólogo, São Paulo, SP