Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Crime, castigo e pena capital

Poucas publicações que anunciaram a condenação à morte de Dzhokhar Tsarnaev deixaram de abordar a ambivalência e os sentimentos de angústia que envolveram a cidade de Boston depois de promulgada a sentença de morte para o jovem terrorista de 21 anos. Até a Reuters, que elogiou a condenação, não deixou de registrar a ambivalência da cidade, de forte tradição católica, quando o assunto é a futura execução de um dos bombardeadores da Maratona da cidade em 2013.

Veio do New York Times (16/5) a mais compreensiva abordagem dos sentimentos mistos que abalaram a cidade depois do anúncio da punição capital por injeção letal. A maior parte da população da cidade rejeitou a pena de morte para o jovem checheno, de acordo com a pesquisa do diário Boston Globe. Apenas 15% queriam a pena de morte para o jovem bombardeador. Em nível estadual, 19% aceitavam a punição capital. Mas no contexto nacional, 60 % dos americanos aprovaram a morte por injeção letal de Dzhokhar Tsarnaev, de acordo com pesquisa da CBS News. O atentado matou três pessoas, e feriu mais de 260, segundo autoridades americanas.

O jornal nova-iorquino não apresentou uma abordagem linear dos fatos, onde uma cronologia sinóptica, iniciada pela morte de Tamerlan até a condenação de seu irmão Dzhokhar este ano, encerra o assunto de uma vez por todas. Em vez disso, apresentou um panorama local de sentimentos confusos e a realidade de uma cidade que, em sua maioria, rejeitou a pena capital e não aceitou a pena imposta ao imigrante de origem chechena. Um comportamento coletivo impensável e até certo ponto incompatível com a realidade impiedosa de nossos cotidianos.

O diário revelou ao mundo uma cidade que convive mal com a aplicação da pena de morte a um terrorista condenado. E com a pena capital em geral. Desde 1984 o estado de Massachusetts aboliu este tipo de punição. E não executa ninguém desde 1947, adicionou o New York Times. Mas é obrigado a aceitá-la toda vez que a pena for estabelecida através de julgamento em uma corte federal. A reportagem do New York Times procurou gente nas ruas para comentar a condenação e formar um panorama geral onde o resultado final acabou sendo a condenação à pena capital.

Pais de vítima pediram prisão perpétua

O diário nova-iorquino não deixou de fora o testemunho de gente que fez o elogio da pena capital para o bombardeador, como Peggy Fahey, uma bostoniana de 78 anos. Ela acredita que o rapaz já foi bem tratado demais, que não quer vê-lo condenado à prisão perpétua para depois ser entrevistado pela grande mídia. A maioria, entretanto, concorda com Priscilla Winter, de 56 anos e professora para nível elementar. Seu argumento segue a pregação dos pais de Martin Richard, morto no atentado com apenas oito anos de idade. Eles pediram o fim do caso sem a aplicação da pena capital em carta aberta publicada no Boston Globe (14/4), acrescentou o Times.

O júri, escolhido entre gente favorável à pena capital, condenou Tsarnaev em 30 acusações e não se comoveu com a argumentação de sua defesa, que tentou mostrar a postura submissa de Dzhokhar a seu irmão mais velho Tamerlan, que tem o nome de um guerreiro medieval da Ásia Central. Tamerlão (Tamerlane, em inglês, ou Timur, em persa) foi um soberano turco-mongol da Idade Média e comandante de um grande império muçulmano que abrangia parte do centro da Ásia, do Oriente Médio e o sultanato de Dehli, na Índia. O Tamerlan envolvido no atentado de Boston morreu em um enfrentamento com a polícia norte-americana dois anos atrás.

A reportagem do New York Times teve o mérito de trazer de volta a discussão sobre a pena de morte. Vivemos em uma época que favorece sua aceitação pela população, cansada de tanta violência, terrorismo e impunidade. A sociedade quer vingança, e não misericórdia. Um dos grandes argumentos empregados pelos americanos que defendem a pena capital é o suposto “encerramento” da dor dos parentes das vítimas de crimes brutais.

A carta dos pais do menino Martin Richard, endereçada ao Departamento de Justiça, trouxe outro discurso: a morte de mais uma pessoa não vai encerrar a dor diária de seus pais e irmãos, obrigados a conviver com a tragédia todos os dias. A execução e o longo período que a antecede só vão trazer mais angústia para a família. Seus pais imploraram às autoridades do judiciário americano que poupassem a vida de quem causou a morte de seu filho. Nem tanto por oposição à pena de morte, mas para por um fim definitivo às apelações judiciais e à exploração da mídia a que são submetidos seus filhos todos os dias. Eles pediram prisão perpétua sem direito a recursos ou apelações para o condenado. Para sempre.

Injeção letal

O veredicto foi outro. Favoreceu a advogada da União para o estado de Massachusetts, Carmem Ortiz, a implacável defensora do governo para o estado. Que perseguiu o ativista da web Aaron Swartz até levá-lo ao suicídio. A execução do jovem muçulmano, ainda sem data marcada, poderá significar uma vitória de Pirro se acabar por transformar Dzhokhar Tsarnaev em herói. Sua história de mártir do islã poderá ser cooptada para uso o pessoal do Estado Islâmico e outros extremistas e usada no recrutamento de jovens de todo o mundo descontentes com o mundo ocidental e dispostos a morrer em um deserto do Oriente Médio.

Em 2014, o Guardian (27/3) informou que 22 países aplicaram a pena de morte em 2013. China, Irã, Iraque, Coreia do Norte, Arábia Saudita, Estados Unidos e Somália são os estados que mais aplicaram a pena capital naquele ano, segundo a Anistia Internacional. O Brasil é o único país de língua portuguesa que, em casos especiais, ainda pode condenar um cidadão à morte. Mas a realidade é muito mais complexa que os gráficos da mídia e muito mais dura que alguns pontos de vista benevolentes e humanistas da parte da população que é contra a pena de morte.

A sociedade moderna avançou em todos os campos em alguns países. Mas a geografia global mostra violência endêmica em muitas partes do globo e repetidos casos de ausência de punição para crimes muito graves. Tudo isso vêm alimentando em muitas populações desprotegidas o apoio à aplicação da pena de morte. Será que é solução? Ela diminui a criminalidade? Nos casos de terrorismo, ela parece impotente: muitos fanáticos estão prontos a dar a vida por suas causas, sejam elas ligadas ou não à religião. No caso do bombardeador de Boston, sua execução vai trazer vingança certa. Ninguém sabe de onde vai partir, ou quando virá. Mas é certo que a morte por injeção letal não vai ficar sem seu troco.

Além do ódio, existe vida

A pena de morte escamoteia um problema muito sério: gente inocente pode acabar morta sem culpa comprovada. Principalmente em países onde as instituições da sociedade ainda não atingiram padrões que garantem os direitos do cidadão. Como assinalou muito bem a Forbes em 2014 (29/4):

“Não há método sistemático para determinar quando uma condenação criminal é certa, o que preveniria as mortes de pessoas sentenciadas erradamente. Por causa disso, muito poucas falsas condenações são descobertas pelo sistema judiciário.”

O Guardian (13/8), no mesmo ano, explicou que o mito da pena de morte como elemento de dissuasão aos crimes de morte é muito difícil de ser desacreditado. Mesmo depois de vários estudos apontarem para sua inutilidade, muita gente ainda cogita o seu retorno. Ela não serve com arma de combate a criminalidade. O Texas é um exemplo da inutilidade da pena de morte. É o estado que mais executa prisioneiros nos Estados Unidos. As execuções continuam e a criminalidade não para de crescer, na terra de George Bush. Argumentos pró e contra a pena de morte continuam a manter presença na sociedade e na mídia. O debate continua.

O New York Times deu uma aula de jornalismo. Pondo de lado o viés moral e abrindo-se a uma abordagem que procurou sondar o imaginário e as emoções de uma comunidade confrontada com o terrorismo e sua ameaça cotidiana, o periódico mostrou ao mundo que além do ódio existe vida, que segue além de toda a barbaridade do mundo contemporâneo.

***

Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor