Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Crítica ao modismo doentio

Voltando cerca de 20 anos no tempo, vamos encontrar uma afirmação da jornalista Ana Maria Bahiana que, tendo se mudado para Los Angeles, notava que os jornais brasileiros traziam opinião demais, enquanto que os seus pares estadunidenses ofereciam mais informação em estado bruto, a partir do rés-do-chão da reportagem. O tempo passou, o tempo voou, veio o 11 de setembro e com ele o fundamentalismo bushista. A mídia de Tio Sam, que já ostentou os louros de um Watergate, tem mantido uma postura genuflexória. Lá o cenário piorou. E por aqui, houve alguma mudança substancial para melhor? Ou tudo piorou? Devemos cravar no ferro ou na ferradura?

Decorridas duas décadas, um ex-repórter de velha cepa dá a sua opinião. Escrevendo para o site No Mínimo, do qual é colunista, Ricardo Kotscho escolheu um título eloqüente para o seu texto mais recente: ‘Abaixo o colunismo’. Nele, Kotscho conta que acabara de deixar uma reunião para definição dos finalistas do Prêmio Ayrton Senna, que seleciona reportagens cujo mote é o desenvolvimento humano. ‘Saí de lá muito animado com o que vi e ouvi’, escreveu. Na condição de jurado do prêmio, Kotscho deparou-se com um cenário bem distinto do que tem sido apregoado alhures sobre o baixo nível do nosso jornalismo. ‘Fiquei bastante impressionado não só com as reportagens e fotografias apresentadas, mostrando os dramas do Brasil na vida real, mas com as coisas boas que também estão acontecendo país afora’.

A constatação do ex-assessor da presidência da República não poderia ser mais motivadora. ‘O fato é que, apesar de tudo, a reportagem sobrevive. O que os finalistas, entre os mais de 1.500 trabalhos inscritos, demonstraram é que em cada redação ainda há profissionais motivados a sair à rua para descobrir histórias que não estão na internet e não podem ser produzidas por telefone, independentemente dos recursos oferecidos pelo veículo em que trabalham’.

Além do Sul Maravilha

Alvíssaras! Não padecemos de todo do mal do colunismo, do diz-que-diz, do gossip que retroalimenta o falatório da imprensa, das informações plantadas por assessores de plantão, com o intuito de deliberadamente confundir ou despistar a opinião pública. Há quem ainda se disponha a gastar sola de sapato e sentir apetite pelo Brasil real, exatamente o Brasil que a grande mídia corporativa ignora – ou, se dá, é de forma en passant, como uma mera estatística ou como detalhe exótico.

Segundo Kotscho, nessas reportagens examinadas pelo Prêmio Ayrton Senna, o Brasil é mostrado de uma forma recorrente – os problemas são os ‘de sempre’: trabalho infantil, prostituição, abandono, violência, mortes, doenças, falta de moradia. Mas tem novidade no ar. Trata-se da mobilização que a própria sociedade está fazendo para buscar ela mesma solução para seus problemas.

A outra observação de Kotscho é que a imprensa no Brasil não se restringe apenas ao Sul Maravilha. ‘Produz-se muita coisa boa fora do eixo São Paulo-Rio-Brasília. Essa foi a principal constatação feita pelos dez jurados, entre profissionais e acadêmicos, no longo debate que se travou, ao final do encontro, sobre o atual momento da mídia brasileira e as oportunidades abertas pelas novas tecnologias, agora com a chegada da TV digital’.

Recado aos futriqueiros

Um dos pontos altos do texto é quando Kotscho reflete sobre a sua condição atual, condição que é também, salvo honrosas exceções, de muitos outros jornalistas de sua geração, que tiveram de abandonar as trincheiras da reportagem: ‘No caminho de volta para casa, me dei conta de que tinha mais uma vez mudado de lado no balcão da vida, quer dizer, em lugar de estar concorrendo ao prêmio, pela primeira vez estava julgando os outros. Nem tinha como participar: há mais de quatro anos não escrevo uma reportagem. Pelas circunstâncias da vida, virei mais um colunista, justo eu que vivia praguejando contra este modismo doentio da imprensa brasileira’. E Kotscho não perde a chance de ironizar o modismo: ‘Qualquer zémané hoje quer ser dono de uma coluna’.

E como reverter tal situação? Para o ex-repórter – que confessa com saudosismo que saía para garimpar uma história sem noção do que toparia pela frente –, a solução é investir na reportagem. ‘Em compensação, os leitores, ouvintes e telespectadores seriam mais bem servidos de boas histórias. Teríamos mais Brasil real e menos Brasília oficial, maior diversidade de assuntos e menor índice de especulação por centímetro de coluna, mais novidades para contar e menos futricas de bastidores’.

A crítica, feita por quem esteve até recentemente nas entranhas do poder, é não somente abalizada pelo passado de quem a formula, mas também demolidora. A máxima de Maquiavel de que o poder absoluto corrompe absolutamente deve valer também para os jornalistas futriqueiros de plantão: de tão próximos das fontes do poder, acabam se considerando, eles próprios, poderosos, e perdem de vista o desafio de revelar o Brasil real, longe dos holofotes do comezinho diário da política de Brasília.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias