Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Criticar é preciso

Algo de preocupante se manifesta na realidade brasileira. Há algum tempo, detenho-me em pesquisa em seções de cartas de leitores, comentários em site jornalístico, blogs e derivados. Em comum, constata-se nítida tendência à adesão da armadilha tramada pela lógica binária: quem ousa criticar o Brasil da atualidade é infalivelmente torpedeado pela ‘tropa de choque pró-governo’. Quem, por sua vez, expressa avaliações favoráveis ao estado atual, torna-se alvo dos ataques raivosos dos saudosistas do ‘cardosismo’. Infeliz daquele que, em nome da autonomia crítica, não tenha nenhum compromisso com ‘a’ ou com ‘b’. Este será desqualificado pelas ‘facções’, sob a suspeita de se tratar de alguém que pode estar a serviço de interesses antidemocráticos e, obviamente, associados a estratégias golpistas cujas raízes reportariam às hostes da direita militarizada. Numa primeira avaliação, há a possibilidade de o formato midiático brasileiro ser responsável, ao menos, por expressivo percentual, no tocante à proliferação da binaridade mencionada.

Não cabe aqui entrar em considerações mais profundas a respeito da limitação crítica, perceptível em boa parte dos ‘leitores comentaristas’. Todavia, é pertinente que, na exigüidade de um artigo, se fixem pontuações esclarecedoras no tocante ao restritivo campo de ‘leitura crítica’, presente na atualidade nacional. Quem será, na realidade atual, aquele que abomina o regime ditatorial, discorda do encaminhamento do qual se nutriu a ‘redemocratização’, não reconhece, nos oito anos de mandato de FHC, a expressão do modelo emancipador e, por fim, não identifica, no período ‘lulista’, uma política à altura das promessas históricas anunciadas ao longo de décadas?

Bem, a julgar a prevalência da ‘lógica binária’, é possível deduzir que o perfil desse ‘habitante da margem’ seja eleitor do PSOL (ou de outra agremiação). Em não sendo, como enquadrá-lo? Não é a favor dos militares. Não é ‘cardosista’. Não é ‘lulista’. Não é ‘psolista’. Menos ainda é aliado dos atuais ‘democratas’ (antigos pefelistas). Então, quem será? A mídia, pelo seu recorte dominante – num Brasil pouco afeito aos princípios da ‘teoria crítica’ –, igualmente, não reconhece. E, como tal, comportam-se leitores. Por que é estimulante colaborar com o OI? É simples a resposta: em seus quadros, estão contempladas todas as vertentes. Poder-se-á afirmar o mesmo em relação à maioria dos similares? Sem procuração de seus idealizadores, posso afirmar que, no OI, respeitados os princípios éticos que asseguram a defesa intransigente da liberdade, todos os matizes ideológicos têm lugar assegurado.

Entre a crítica e o carisma

A alegação de que o crítico do presente é o saudoso do passado beira a percepção infantil. Por que não imaginar que o crítico do presente é o cobrador do futuro? Em sendo verdadeira a segunda proposição, a crítica objetiva o aprimoramento crescente da vida. A ‘armadura’ da binaridade só é justificável em situações extremas. Não é esse, porém, o que oferece a beleza da experiência democrática. Na democracia, além do dever de todo cidadão defendê-la, está a obrigação da luta por seu aprimoramento. É aí que a ‘cegueira’ do adepto da ‘lógica binária’, robustecida pela ‘grande imprensa’, se submete à dependência da ‘crença messiânica’, fermento para a solidificação das figuras carismáticas.

Como se sabe, ‘carisma’ (do grego charisma) foi um conceito introduzido por Max Weber, ao tratar da sociologia da religião. Vale, a qualquer interessado na questão, consultar o verbete ‘carisma’ no primeiro volume do Dicionário de ciências sociais (Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1987, pp. 152-154). Na obra mencionada, encontra-se a citação extraída de Max Weber:

‘O carisma é um poder situado em princípio fora do habitual e, por conseguinte, necessariamente fora do econômico, comprometido em sua virulência logo que os interesses de caráter econômico vêm a preponderar, como aliás parece ocorrer por toda parte’ (op. cit., p.153)

Igualmente não é desprezível o texto referente ao sentido de ‘carisma’ que precede a citação de Weber:

‘O portador do carisma rejeita todo lucro, toda organização e, portanto, é o avesso da racionalidade. O chefe ou herói carismático tem de provar a todo momento que sua própria legitimidade não decorre de nenhum condicionamento externo. Seu poder, por tudo isso, é extremamente instável e precário. Assim surgiram, quase por toda parte, as realezas, fundamentadas num direito divino e, do mesmo modo, a liderança exercida por caudilhos, profetas, magos e feiticeiros’ (ib. p. 152).

A reprodução das citações não pretende insinuar que o imaginário social brasileiro esteja sob efeito de ‘encantamento de inspiração carismática’. Todavia, não escapa à percepção a existência de ‘focos’. O ideal para a saúde da democracia é que tais ‘focos’ não proliferem. O perigo maior exercido pelo modelo carismático na condução da política reside na incapacidade de se enxergar o futuro sem a imagem do líder. Sob tal aspecto, há de se reconhecerem acentuadas diferenças a separarem a experiência brasileira em relação às da Venezuela e Bolívia. Chávez e Morales não se igualam a Lula. A explicação para a diferença pode ser colhida na publicação assinada por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino (Dicionário de política – v. 1 / UnB, 1993), a propósito do mesmo verbete (‘carisma’):

‘Toda a expressão do processo carismático, as novas regras, a força, as provas que demonstram a legitimidade do Carisma e da missão se colocam, de modo revolucionário em relação à situação institucionalizada, [grifo nosso] mediante uma experiência social que exige ‘conversão’ (metanóia) nas atitudes e comportamento dos sequazes, como do próprio chefe’ (p. 149).

Mensagem subliminar

Com base na citação anterior, deduz-se facilmente que, na experiência brasileira, não há o menor sinal sequer de regras ou atos revolucionários contra qualquer ‘situação institucionalizada’, condição diferente do que tem ocorrido nos outros países mencionados. Sob tal aspecto, a experiência brasileira caminha na contramão das políticas implementadas nos países vizinhos. No Brasil, sobretudo para os setores do capital financeiro, as regras nunca foram tão generosas e apetitosas. As elites tradicionais da sociedade brasileira não foram (e não são), em nada, afetadas por qualquer medida. À classe média, continua sendo imposto igual padrão de contenção salarial. A precariedade nos setores vitais está inalterada e, em alguns outros, agravada. Então, de onde provém a onda carismática? Terá raiz num difuso ‘ânimo de orfandade’?

É indispensável reconhecer-se que alguma conquista a sociedade ocidental contemporânea (inclusa a experiência da América Latina) obteve. Por isso mesmo, é desejável que ela avance. Ninguém se iluda: o perfil dominante da mídia brasileira só alterará seu formato, inspirado ainda na ‘lógica binária’, quando lhe for perceptível a existência de massa crítica cuja identidade é traduzida pela ‘insubmissão’, própria da ‘razão cética’. Enquanto essa configuração não for reconhecível pelos codificadores do sistema midiático, predominará o presente modelo jornalístico, refém das tentações redutoras, sempre empenhado em alimentar cotejo entre a ‘verdade’ de ‘a’ e a ‘verdade’ de ‘b’, deixando para o leitor a escolha. Esse expediente apenas interessa a forças conservadoras, longe das expectativas renovadoras. Enfim, será que, com tantos descaminhos da corrupção, levando de roldão dezenas de políticos, inclusive assessores e familiares ligados à Presidência, sem que nada, efetivamente, atinja a figura central, não tem servido para deixar a mensagem subliminar de que o único ser ‘puro’, na política brasileira, é o presidente da República? Se a hipótese for viável, entende-se melhor como pode funcionar a ‘narrativa’ do ‘carisma’. Fica a questão para análise.

‘É a mesma dança, meu boi’

À parte qualquer traição da memória, não me recordo, no episódio de Brasília, de algum pai dos implicados ter dado depoimento aviltante, exposto por todos os principais jornais, sem, no entanto, a menor contra-argumentação, seja da parte do repórter, condutor da entrevista, seja pelo redator da matéria, afora as exibições da entrevista nos telejornais: ‘Eles cometeram erro? [grifo nosso]. Cometeram. Mas não vai ser justo manter crianças que estão na faculdade [grifo nosso] (…) Foi uma coisa feia [grifo nosso] que eles fizeram? Foi. (…). Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses? [grifo nosso] /…/’.

Que prática jornalística é essa? Absolutamente incapaz de, no ato de um depoimento dessa natureza, replicar à altura. As partes grifadas tinham a obrigação de réplica, em nome da ética. O modelo jornalístico brasileiro, porém, se acomodou à burocratização da informação. Igualmente procedem os profissionais de comunicação quando entrevistam políticos. ‘A’ pergunta o que nem sempre quer e ‘B’ responde o que bem entende. É dever do jornalista ser também intérprete da indignação do público. A redemocratização brasileira, entretanto, ainda não ensinou essa lição. Nem tudo, porém, está perdido, a julgar pelo modo íntegro e sábio com que o pai da vítima fez o contraponto. Na simplicidade de seu depoimento, o pai do ser vitimado pôs o ‘dedo na ferida’. Recuperando parte da declaração (‘Globo on line – 27/06 – ‘Opinião do leitor’ – 16h14m.), disse o pai vitimado: ‘Os pais estão dando muita mordomia e procurando saber pouco da vida que o filho leva fora de casa, por isso o país está assim.’ É uma pena que o jornalismo impresso tenha dado pouca relevância à sabedoria de um pai que, a despeito de sua condição econômico-social limitada, tanto de saber contém. O confronto entre os dois discursos dá a medida das distorções da vida brasileira. É hora de a mídia repensar seus focos temáticos e, principalmente, o modo como seleciona pautas.

Será uma atitude política ‘avançada’ silenciar sobre a atuação degradante com a qual a maior parte da classe política tem ocupado o noticiário? Até quando teremos de ouvir a redundante afirmação que, com ênfase, é proclamada como a mais suprema das reflexões: ‘Os acusados devem ser punidos e os inocentes devem ser absolvidos’? Até quando teremos de suportar as tramas no Senado no qual discursos patéticos clamam pela ‘honorabilidade da vida pública’? Por quanto tempo haveremos de ouvir que as sucessivas denúncias não passam de ‘estratégias conspiratórias’ contra a ‘democracia’?

Até quando a paciência suportará a retórica salvacionista que professa a sentença purificadora de que ‘nunca, na história do Brasil, se apurou tanto’? É admissível a afrontosa ‘blindagem’ em torno da figura da presidência do Senado, com a anuência das hostes governamentais. Em nome de quê? Assegurar, por acaso, a base de sustentação que tem no PMDB o segmento partidário mais expressivo? A mídia, efetivamente, está descarnando o acontecimento como deveria? E a cratera do metrô de São Paulo, a mídia esqueceu?

É curioso ouvirem-se frases proclamadoras de que o Brasil está mudando. Enquanto isso, a mídia noticia que jovens de classe média e universitários, em plena área nobre do Rio de Janeiro, espancam e saqueiam mulher pelo fato de a julgarem ‘prostituta’. Dez anos antes, em Brasília, jovens universitários, incluindo filho de juiz, ateavam fogo no índio Galdino, por considerarem que se tratava de um ‘mendigo’. Haverá quem julgue que isso é mero fato isolado. Haverá também quem considere que tudo se perpetua. Certa diferença, entretanto, separa os dois episódios.

Creio que, na letra de Torquato Neto, em parceria com a música de Gilberto Gil, em 1968, no refrão de ‘Geléia Geral’ algo estava intuído, mesmo sem a previsão dos ‘bois’ de um senador e da ‘novilha’ de outro, personagens integradas à história da política atual:‘Ê bumba-yê-yê-boi / Ano que vem, mês que foi / Ê, bumba-yê-yê-yê / É a mesma dança, meu boi’. A mesma história que, em tempos outros, teve como protagonista o Fiat Elba. Agora, resta declarar, para sossego dos leitores, que me ausentarei até agosto. ‘É a mesma dança, meu boi.’ Cabe ao cidadão de bem decidir por quanto tempo a ‘dança’ será a mesma…

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA – Rio de Janeiro)