A edição de 11 de março da Folha de S.Paulo é talvez o exemplo mais contundente de uma orquestração em absoluto e inequívoco uníssono em torno a um tema. Este tema é Cuba, o que não surpreende, já que a ilha é tradicionalmente tomada pelos grandes veículos de mídia como uma ditadura cruel, sem direito ao menor contraditório. E esse tema é agora coadjuvado pelo presidente Lula, com o pano de fundo do processo eleitoral de 2010, cuja estrela maior até o momento é o operário-presidente – para o infortúnio do diário tão nitidamente inclinado pelas opções políticas e econômicas dos tucanos.
São vários os temas que têm sido eleitos pelo diário dos Frias para desconstruir a candidata apoiada por Lula, a exemplo da própria análise que a Folha tem feito sobre o suposto ‘neo-estatismo’ no governo. Trata-se de impressionar o público com a falsa idéia de que estaria sendo restaurada uma espécie de ‘período jurássico’ em nossa economia – esse foi o tema de discussão de artigo também publicado neste Correio, sob o título ‘Mídia falseia discussão sobre `estatismo´ do governo Lula‘. Nada tão oportuno agora quanto as falas de Lula sobre Cuba. Como podemos, afinal, ter um presidente que comete o acinte de defender um regime que ‘come criancinhas’?
A página 2 da citada edição de 11 de março beira à estridência em suas análises sobre a agora já emblemática fala de Lula de que ‘a greve de fome não pode ser utilizada como pretexto de direitos humanos para libertar as pessoas. Imagine se todos os bandidos presos em São Paulo entrarem em greve de fome e pedirem liberdade’. Um editorial e dois comentaristas, apenas na página 2, martelam para seu público uma mesma e insistente noção, a da conivência de Lula com a tirania cubana. Segundo o editorial, ‘Lula, este personagem satisfeito com as suas próprias precariedades, desta vez passou dos limites na agressão aos valores democráticos’.
Açodamento crítico
Artigo da página 3, assinado pelo renomado jurista José Carlos Dias, conhecido pela defesa que fez de vários perseguidos políticos na ditadura, foi também muito oportunamente, ou melhor, ‘oportunistamente’, aproveitado pelo jornal. Sem o tom ácido contra o presidente adotado pela totalidade dos artigos que circularam nesse dia, e fazendo alguma menção a pontos positivos da experiência cubana, Dias expressa seu ‘espanto’ com Lula, na medida em que ele ‘se solidariza com o governo cubano, não somente naquilo que historicamente representa de importante e positivo, mas também naquilo que tem de abjeto, que é o desrespeito aos direitos humanos daqueles que se opõem ao regime’.
Não por acaso tal artigo deve ter sido veiculado no dia em que, a partir de uma decisão de pauta da Redação, resolveram açodar na crítica ao ‘Lula, grande amigo de Cuba e de Fidel’. Afinal, trata-se de um ‘aliado’ a fazer comentários que não corroboram com o presidente.
O respeito aos direitos humanos, sejam eles de presos comuns ou políticos, está acima de qualquer discussão, podendo e devendo ser, inclusive, alvo de efetiva investigação em Cuba. Trata-se aqui de algo inquestionável. Mas não há sequer uma alusão, na referida edição do dia 11, e em nenhuma outra, às avaliações que têm circulado de que Zapata era um preso comum, cujos problemas com a Justiça remontam a 1988, e que nunca figurou na lista de prisioneiros políticos elaborada pela Anistia Internacional em 2003. Menção também não há alguma no que se refere às declarações de autoridades cubanas quanto à inexistência de centros de torturas, assim como de prisões e de execuções extrajudiciais.
Não há a menor dúvida quanto à existência de uma série de incongruências a serem averiguadas, especialmente considerando tratar-se de um tema que envolve extremismos e fanatismos de ambos os lados, da esquerda à direita do espectro político. Obviamente que não há também como não levar em conta que se está diante de um regime fechado, burocratizado, o que torna difícil o acesso a variadas informações. Mas como nem sequer mencionar uma hipótese que tem sido sugerida por órgãos da imprensa e estudiosos, e não necessariamente simpatizantes do regime cubano? Seriam estes todos ‘de quinta’ realmente? Há que se acreditar somente nos interlocutores mais afinados aos interesses norte-americanos, ou mais avessos ao regime cubano? Haveria o mesmo açodamento crítico, muitas vezes beirando o raivoso, caso as citadas transgressões aos direitos humanos estivessem vinculadas a quaisquer outros países, como a Colômbia de Uribe, com sua fossa de 2000 corpos, e os fortes indícios de responsabilidade do exército e dos paramilitares?
Ranço ideológico
Havendo total desconsideração por estas diferentes versões quanto à condição de Zapata, nenhuma das matérias sequer cogita de que a fala do presidente, tão histrionicamente divulgada, poderia estar fazendo referência, ainda que subliminar, ao fato de se estar diante de uma farsa. Isto na medida em que um fato envolvendo um criminoso comum, e não um criminoso político, teria sido indevidamente utilizado pelos interesses de dissidentes políticos do regime, muitas vezes associados aos interesses norte-americanos.
E nunca é demais ressaltar, como já fora feito no artigo supra-referido (‘Mídia falseia discussão sobre `estatismo´ do governo Lula’), que não está aqui em jogo qualquer tentativa de enaltecer o partido ou a candidata de Lula. Acusação que poderia ser levianamente dirigida a este texto, sempre tendo em vista a visão maniqueísta mais confortável aos grandes veículos. Também não está aqui em discussão o regime cubano, tema por demais complexo para ser examinado em tão poucos parágrafos, que têm como único objetivo lançar um pouco de luz à forma como a imprensa pode contribuir para criar um senso comum tão nefasto à formação da consciência dos seus leitores.
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PS: Antes de fechar esta matéria, esta escriba verificou que a edição da Folha de S.Paulo do dia 12 de março, em seu caderno ‘Mundo’, reservou um espaço para Aleida Guevara, que está em visita no Brasil, em uma nota de rodapé. Aleida desqualificou os protestos tanto de Zapata, como de Farinas, por considerá-los pessoas manipuladas pelos interesses anticubanos. Quando prevalece o ranço ideológico, não se aplica a orientação do Manual de Redação do diário de conceder o mesmo espaço ao famoso ‘outro lado’. [Colaborou Gabriel Brito]
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Economista, editora do Correio da Cidadania