Capa raffinée, ilustrações idem, ao todo cinco páginas com textos de alto quilate. Tudo superlativo, comme il faut, no novo suplemento literário da Folha de S.Paulo (domingo, 5/9).
Mulato, pobre, morador de subúrbio carioca, funcionário público de terceira categoria, jornalista, escritor, bêbado, psicótico, solitário, amargo, intenso, inconformado, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) está de volta.
Em grande estilo: O Triste Fim de Policarpo Quaresma tem agora versão teatral, os contos serão republicados na íntegra, devidamente reavaliados e contextualizados. E a sua exemplar biografia, paradigma do gênero, agora em 8ª edição (as sete anteriores minuciosamente atualizadas pelo autor) está disponível nas livrarias. Assim como seu diário e as memórias do hospício.
Ao vivo
Marginalizado, banido e embargado a partir da sua estréia em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto não é apenas um dos símbolos dos preconceitos que dominavam nossa sociedade e os salões literários. É talvez a primeira vítima daquilo que ele próprio designou como ‘ditadura do silêncio’.
Graças a esta ditadura o escritor foi levado à condição de freqüentador assíduo tanto da história literária do século 20 como da história do nosso jornalismo. Num caso como gênio incompreendido, no outro como o primeiro sacrificado por uma das mais abomináveis e duradouras práticas das nossas redações: a ‘lista negra’, o Index dos Nomes Proibidos, repertório dos não-existentes, vivos ou mortos.
O nome de Lima Barreto ficou quase 50 anos banido das páginas do liberalíssimo Correio da Manhã porque Isaías Caminha passava-se na redação de um poderoso matutino facilmente identificável e o seu fundador, Edmundo Bittencourt, era um dos protagonistas, embora disfarçado por um pseudônimo. O destemido Paulo Bittencourt que enfrentou tantas ditaduras manteve o embargo contra o literato que denegriu o pai.
Por coterie, reciprocidade corporativa, espírito de panelinha, o resto da imprensa aliou-se ao Correio e ignorou a obra que o editor ingenuamente apresentara como ‘livro de intriga jornalística fluminense’.
‘Os demais jornais também receberam de pé atrás o livro inconveniente e atrevido onde tantas figuras respeitáveis – algumas delas, diga-se de passagem, falsamente ilustres e falsamente respeitáveis – eram retratadas ao vivo, quase sem nenhum disfarce’, constatou o magistral biógrafo, Francisco de Assis Barbosa (pág.194)
Nome aos bois
Lima Barreto poderia ter escolhido outro livro para estrear, tinha pelo menos outros dois na gaveta. Preferiu algo novo, agressivo, um romance diferente dos cânones, capaz de abrir-lhe as portas da fama.
Fecharam-se na mesma hora. Ficou com fama de maldito, raivoso, que o preconceito racial tornou irremediável. Conseguiu publicar outros três romances, contos, sátiras. Não foi longe: a ditadura do silêncio acabou com ele, levou-o ao álcool e este aos delírios.
Nos inspirados textos do caderno ‘Ilustríssima’ (5/9) menciona-se o castigo imposto, mas não os motivos da punição. O triste fim de Lima Barreto fica parecendo obra de deuses vingativos, do perverso destino e não de seus humaníssimos contemporâneos, companheiros de profissão. A Folha tem o dom de contar histórias sem dar nome aos bois. É uma arte. Mãe extremada, transmite sua expertise a todos os rebentos.
O leitor que se dane.
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A Vida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa (José Olympio, 2002); Policarpo Quaresma, direção de Antunes Filho (SESC Consolação, até 31/10); Contos Completos de Lima Barreto (Companhia das Letras), Diário do Hospício e O Cemitério dos Vivos, prefácio de Alfredo Bosi (Cosac Naify).
O caso de Lima Barreto é fartamente mencionado na História da Imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré, e na biografia Santos Dumont, do jornalista Gondin da Fonseca (Editora Vecchi, 1940), outro maldito que ousou revelar que o Pai da Aviação cometeu suicídio.
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