A revista Veja, à época de José Roberto Guzzo e Elio Gaspari (edição 932 de 16/07/1986, pág. 27), publicou uma charge do genial Luis Fernando Verissimo, sob o título ‘Crepúsculo’, que guardo comigo até hoje. Um casal está diante de um deslumbrante pôr do sol. O homem, que aponta uma filmadora portátil para o lindo horizonte, diz para a mulher: ‘Mal posso esperar pra chegar em casa e ver isto’.
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Durante muitos anos usei essa charge, em aulas de comunicação, para dramatizar o incrível papel de mediadoras entre o homem e sua realidade exercido pelas novas tecnologias de informação e comunicação (TIC). Não bastava mais estar presente e testemunhar a beleza do crepúsculo. Mais importante do que a própria experiência direta, era ver depois a imagem dela através das lentes e cores de uma filmadora.
Os turistas japoneses são exemplos emblemáticos do largo uso de máquinas fotográficas e filmadoras. Em alguns países da Europa, eles são jocosamente referidos como aqueles que ‘descobrem’ os lugares visitados somente depois que retornam às suas casas e vêem/assistem às fotos/filmes que fizeram.
Processo semelhante ocorre quando a realidade é ‘experimentada’ através das câmeras de TV e cinema ou das fotos de jornais e revistas. Com uma diferença fundamental: a mediação da grande mídia retira do espectador/leitor o controle da imagem a ser mostrada e vista. E, boa parte do que é realidade no mundo contemporâneo, chega até nós exatamente dessa forma. Daí o enorme poder de definição do real que a mídia tem.
Acesso e fascínio
Os anos se passaram. As TIC e seu fascínio avançaram. Os preços se tornaram acessíveis. E o fenômeno se espraiou por todo o tecido social. Fotografar, filmar, registrar se transformaram em epidemia social.
Casamentos e cerimônias como formaturas – do jardim de infância à pós-graduação – se transformaram em eventos filmados e fotografados por dezenas de fotógrafos e cinegrafistas, profissionais e amadores. Telefones celulares – mais de 148 milhões no país (Anatel, 17/12/2008) – que são também máquinas fotográficas e filmadoras digitais, potencializaram exponencialmente o número de fotógrafos e cinegrafistas. Não é incomum que se forme uma barreira humana entre a cerimônia e familiares/convidados que a presenciam ‘ao vivo’, a ponto destes serem impedidos de ter alguma visão do palco do próprio evento. Aos poucos, fotografar e filmar esses eventos passou a fazer parte deles; ou melhor, a busca da representação da realidade se tornou constitutiva dela mesma.
Tudo isso é feito dentro da lógica de que em momento futuro, em casa, se poderá ‘ver’ o que de fato aconteceu, incorporando a antiga mediação tecnológica à realidade.
Mais recentemente o fenômeno alcançou também as festas de família.
São tantos os fotógrafos e cinegrafistas que se chega à bizarra situação de um evento estar sendo fotografado e filmado simultaneamente pela maioria de seus participantes. As festinhas familiares estão se transformando prioritariamente em ocasiões das quais se deve ter imagens para se ver depois. E com isso o evento se transforma numa interminável sessão de fotografia e filmagem, cujas fotos e vídeos são editados e vistos e refeitos ao longo do próprio evento. E por aí vai…
TIC e sociabilidade
Não há dúvida de que as TIC, amplamente disponíveis a preço acessível, democratizaram a possibilidade de registro de fatos e a preservação da memória de pessoas e de situações. Não se trata, portanto, de eventual nostalgia da suposta pureza de uma época passada. A questão é outra.
A incorporação das representações possibilitadas pelas TIC, evidentemente, altera a definição de realidade. E isso vale para fenômenos naturais – como o crepúsculo – e também para o registro de fatos e a preservação da memória de pessoas e situações. Altera também o comportamento das pessoas.
Ao nível das relações e da sociabilidade humanas, não se correria o risco, em situações específicas, de transformá-las em meros objetos de registro imagético? Quem sobrevive impune a dezenas de máquinas fotográficas, celulares e filmadoras apontadas em sua direção ao longo de toda uma festinha familiar? E as intermináveis sessões posteriores onde se vê e se revê as fotos e os filmes e os vídeos?
Vinte e dois anos depois, a charge do Verissimo está mais atual do que nunca. Só que agora não é só o ‘crepúsculo’ que passa a incorporar a imagem dele feita para se ver depois ‘em casa’. Até que a epidemia passe – será que passa? – as festinhas de dentro de casa, elas mesmas, passaram a existir no resultado imagético de uma incontrolável legião de máquinas fotográficas, filmadoras e celulares. E se prolongarem nas imagens que se faz delas, vistas e revistas interminavelmente.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)