Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Da selva das cidades às ilusões do paraíso

O que pode associar a notícia de um flagrante de violência urbana ao seu contrário – um programa especial sobre a decisão de ser feliz, em geral fora da cidade grande? A resposta imediata poderia apontar uma associação automática: a vida na cidade está insuportável, o negócio é cair fora. Uma resposta mais elaborada diria que esta associação é verdadeira, porém o principal não está no que se vê, mas no que se oculta: o contexto e, principalmente, o vínculo entre as situações apresentadas e o funcionamento do sistema, na cidade e fora dela.

No feriado de 1º de Maio, sexta-feira, o Jornal Nacional exibiu reportagem que mostra um homem de meia idade sendo atacado por três pivetes num ponto de ônibus, no início da noite, no Centro do Rio. Um deles desfere três facadas sobre o homem, que só depois sente o golpe, é amparado por duas pessoas e fica deitado aguardando atendimento. Por sorte se recupera bem: os golpes poderiam ter sido fatais, se tivessem atingido o pulmão ou o pescoço.

Na mesma sexta-feira, o Globo Repórter tratou do tema “trabalhar com prazer”, com exemplos de pessoas que, apesar de suas carreiras de sucesso, decidiram apostar numa vida melhor: o casal que largou um bom emprego para investir num sítio e produzir alimentos sem agrotóxicos, o advogado paulista que conheceu o amor de sua vida num paraíso turístico da Bahia e lá abriu uma pousada, o funcionário público que também trabalhava como taxista e acabou virando doceiro, a especialista em tecnologia da informação que resolveu seguir sua vocação de mecânica de automóveis para recuperar modelos antigos – incluindo um Maverick que é seu sonho de infância –, o francês que ganhava em euros mas decidiu comprar uma casa no meio do mato para realizar seu desejo de virar mágico.

A história de sempre

Exibir cenas chocantes é recurso corriqueiro quando a audiência está em queda, mas o texto de abertura do Jornal Nacional, que mostrará o esfaqueamento, é mais sutil. Ao anunciar a reportagem (ver aqui), de quase sete minutos, William Bonner ao mesmo tempo presta uma espécie de homenagem aos trabalhadores naquela data tão significativa e lamenta a água mole impotente diante da dureza da pedra:

“O assunto que abre esta edição vai provocar espanto, mas não porque seja uma surpresa. A gente vai mostrar cidadãos brasileiros sendo atacados por delinquentes na rua. E você já viu isso outras vezes. O que espanta é que as cenas de violência contra trabalhadores foram registradas no mesmo lugar que o Jornal Nacional já mostrou muitas e muitas vezes: o Centro do Rio de Janeiro”.

Não, o que espanta não são as cenas corriqueiras de assaltos ou a repetição de denúncias que esbarram sempre no discurso monocórdio e protocolar da autoridade policial, mas o flagrante do ataque a facadas, que está longe de ser banal.

No entanto, a cena só é mostrada depois do retrospecto de reportagem feita em janeiro do ano passado, flagrando em três horas três roubos isolados a pedestres e “um arrastão que terminou em pancadaria”, próximo ao local onde o homem foi esfaqueado. Antes de exibir a cena que realmente importa, um trecho de reportagem também do ano passado em que uma mulher dá entrevista em local bem mais distante – a região próxima à Central do Brasil – quando alguém tenta lhe roubar o cordão, e o repórter sai correndo atrás do ladrão. Logo depois de mostrar o homem ensanguentado após as facadas, uma entrevista com uma mulher que tem o rosto preservado e diz, nervosa: “Eu não aguento mais ver assalto nesse Rio de Janeiro, tem que acabar isso, isso é uma gangue…”

Se a Globo posicionou sua câmera para aquele ponto de ônibus, é porque sabia que algo poderia ocorrer ali. A polícia, com certeza, tampouco desconhece essa possibilidade. Por que não age para inibir a ação daqueles meninos que perambulam pelos pontos mais movimentados da cidade, aguardando a oportunidade de roubar um cordão de ouro ou um celular?

Ligar as pontas

Porém, o mais interessante é observar o que essa reportagem oculta. Pois também já vimos muitas e muitas vezes – menos no noticiário do que na nossa própria experiência ao andar pelas ruas – esses meninos dormindo nas calçadas, largados sobre a grama das praças, dopando-se com todo tipo de droga. Onde fica esse “outro lado” da reportagem que os exibe em ações violentas e oculta a violência que eles sofrem desde que nasceram?

Entretanto, se esse “outro lado” aparecesse, a resposta previsível do público tenderia a ser o escárnio insultuoso da sugestão que virou moda – “Tá com pena? Leva pra casa” – e todo o monótono repertório sobre o pessoal dos “direitos dos manos”. Por isso é tão difícil fazer jornalismo: porque é preciso mostrar às pessoas o que elas não querem ver. E aqui não falo, naturalmente, do enfoque privilegiado pelo JN, que todos sabemos qual é. Falo da dificuldade de enfrentar o senso comum.

Diante da reportagem sobre os meninos delinquentes – que nem precisa aludir à recém-aprovada proposta de redução da maioridade penal, porque isto já está implícito nos discursos prevalecentes sobre o tema –, a consequência é tão óbvia quanto inútil: pode haver uma dessas “operações limpeza” típicas das políticas de “choque de ordem” – expressão, aliás, que sumiu do noticiário –, mas, sem uma política de assistência, os meninos acabam voltando. Não esses especificamente, que podem ser recolhidos para cumprir as tais “medidas socioeducativas”, quando não são simplesmente eliminados. Mas outros iguais a eles, produto da mesma situação de marginalidade social. E, com eles, mais reportagens indignadas, que não rompem o círculo vicioso porque não ligam as pontas que permitiriam apresentar a situação na sua complexidade. Porque não interessa ou, talvez, também, porque haja repórteres e editores convencidos de que basta reprimir os pivetes para acabar com o problema.

Chutar o balde?

Da mesma forma, o Globo Repórter que enaltece o “trabalho feliz” justamente no 1º de Maio repete várias outras edições que, ao longo dos anos, tentaram demonstrar que basta ter coragem de chutar o balde para mudar de vida e adotar um estilo próximo do ideal do bom selvagem – cuidando, entretanto, de não esquecer a luz elétrica.

Os cenários são sempre os mesmos: sítios verdejantes, praias paradisíacas, o cotidiano de paz e tranquilidade em comunhão com a natureza. E o sol: sempre faz sol, jamais chove nesses cenários deslumbrantes. Pode eventualmente fazer frio, mas aí estaremos todos num ambiente aconchegante de uma sala com lareira, em torno de um bom vinho e comidinhas fumegantes.

É claro que alguns indivíduos conseguem dar outro rumo às suas vidas. Especialmente se têm o chamado capital inicial: alguma herança ou os recursos que amealharam durante o tempo de trabalhos forçados. O problema é sugerir que esta é, de fato, uma opção para qualquer um. Como se força de vontade e iniciativa bastassem.

Isso para não mencionar a ausência de preocupação com os nativos desses paraísos: como vivem?, o que comem?, como se reproduzem?, são também tão felizes quanto seus novos vizinhos?

Cultivando ilusões

Há, entretanto, algo que difere esta edição de tantas outras do mesmo programa: o contexto. Exatamente no momento em que o Congresso Nacional está para aprovar o projeto de terceirização que amplia a precarização do trabalho, aparece um programa que nos diz que dinheiro e carreira estável não trazem felicidade e nos convida a mudar de vida. Desde que, claro, sejamos “empreendedores”, isto é, desde que sejamos capazes de reproduzir, no microcosmo, as relações desse mesmo sistema que nos oprime e explora.

(Bem a propósito, reportagem do G1 na segunda-feira, 4/5, enaltece a educação das criancinhas para o “empreendedorismo”, que só fica feio quando o tal “empreendimento” envereda pelos caminhos “proibidinhos” do funk.)

Estamos todos infelizes e acuados na selva das cidades, onde perambulam meninos maltrapilhos e ameaçadores. Não é difícil concluir que, se todos pudéssemos cair fora, só restariam nas cidades os prédios inabitados e os ansiados paraísos se transformariam num novo inferno. Mas enquanto estivermos convencidos de que o sistema em que vivemos é o único possível – e não é preciso ressaltar o papel da mídia hegemônica nesse convencimento –, vamos continuar nos alimentando de ilusões.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)