Depois que Galvão Bueno se deixou contagiar pela ‘dança do siri’ na transmissão dos Jogos Pan-Americanos, um fantasma que já vinha assombrando a Globo ganhou ainda mais evidência, como apontou a revista Veja em sua primeira edição de agosto. A cúpula global não está feliz com a dança inventada pela turma do Pânico na TV, da Rede TV!. Muitos famosos já aderiram ao ritmo – até Silvio Santos, ou mesmo Faustão e outras estrelas da Globo. Mas o momento em que a dança mais incomoda é nas transmissões com entradas ao vivo nos telejornais. Para desespero dos câmeras e repórteres, a qualquer momento uma ou mais pessoas pode começar a mexer as perninhas e os braços e a tirar toda a atenção da notícia causando risos do público de casa.
Os adeptos da ‘dança do siri’ são incentivados pela turma do Pânico a ultrapassar os limites e, a qualquer lugar e hora, se manifestarem, lembrando às emissoras poderosas que na pequena Rede TV! existe um programa que sozinho é capaz de mobilizar milhões de pessoas com o seu humor e irreverência, incomodando até a Globo. Contudo, o que parece ser quase natural, e mesmo uma crítica ao modelo televisivo ‘sério’, pode não passar de mais uma reprodução e repetição da nossa televisão. Será mesmo o Pânico na TV tão rebelde e crítico quanto parece?
Desde 2003, o programa líder de audiência e de maior rentabilidade da Rede TV! é o Pânico. Surgido na rádio Jovem Pan, onde vai ao ar para o todo o Brasil há mais de 10 anos, foi introduzido na TV repetindo aquilo que faz no rádio: provocar as pessoas. Na Jovem Pan, o público pertence ao perfil A e B, o mesmo que migrou para a televisão. Com o recurso da imagem, Pânico criou dezenas de quadros, com destaque para ‘Sandálias da Humildade’, e gerou diversas imitações, sátiras e paródias. Extrapolando o limite legal, o programa foi processado por pessoas que se sentiram ofendidas. Pânico na TV é um daqueles casos em que o amor e o ódio do público e da crítica especializada andam juntos.
Riso cínico e indiferente
Emílio Surita, um dos criadores do Pânico e seu âncora, acredita que o programa é subversivo e alternativo, uma crítica ao que se faz na televisão brasileira e ao mundo das celebridades. Contudo, além de fazer rir, Pânico possuiria alguma outra finalidade e um discurso realmente subversivo e anárquico? Não estaria o programa desempenhando um papel ideológico que banaliza o cidadão e a sociedade, apelando apenas para a catarse, camuflando uma estrutura constituída por elementos que, ao invés de criticar e acenar para a realidade, reproduzem relações distorcidas e alienantes?
Com ironia, o programa fez algumas tentativas de rompimento com o imaginário televisivo. As intervenções de Vesgo e Sílvio e as entrevistas da ‘Semana em Pânico’, por exemplo, esboçaram uma tentativa de desmistificação do ‘mundo fashion televisivo’, de forma que existem algumas fendas na estrutura do Pânico na TV por onde algo diferente consegue florescer. Todavia, aquilo que floresce e não é cultivado não chega a dar frutos.
O espaço aberto à crítica é pequeno, pois, quando o programa faz da auto-referência a si mesmo e à televisão o seu ganha-pão, vai para o nível do cinismo, deixando de acreditar no próprio discurso como paradoxal. Dependente da estrutura que criou para si, a sobrevivência do Pânico passa pelo discurso imaginário, da repetição e do poder, de modo que o programa é ao mesmo tempo mestre e escravo, pois seu pretenso modelo alternativo virou moda, objeto de consumo que não mais transgride, mas busca garantir a estabilidade. Desejoso por romper, mas ao mesmo tempo refém, Pânico na TV encontrou no riso cínico e indiferente uma forma de apelo.
Do prazer à fruição
Contudo, existem fissuras na estrutura, de modo que devemos buscar a revolução da linguagem dentro da língua, trapaceando, jogando. É esse jogo, embora mal jogado, que também observamos no Pânico, visto que ele pode combater a televisão estando dentro dela. Pânico repete, mas ao repetir, deslocando a linguagem, pode recriar e dramatizar, conquistando um saber através de uma mistura de má-fé com boa consciência. O sabor da TV, onde reside seu poder, não poderia gerar um saber?
Pânico na TV, assim como outras produções televisivas, se assim verdadeiramente desejarem, pode teimar, ou seja, ir ao revés, deslocar-se para onde não se é esperado. Todavia, o poder gregário presente na audiência e nas relações econômicas pode bloquear essa trajetória ou mesmo ratificar e reproduzir o próprio deslocamento, de modo que aquilo que seria capaz de gerar uma ruptura acaba, pela repetição, voltando-se contra a própria intenção original. Essa insistência repetitiva leva à saturação, como ocorre nas telenovelas, programas de humor e reality shows.
Quando o deslocamento acontece, temos um bom programa de TV, assim como o texto de fruição, que nos faz levantar a cabeça, olhar, ouvir e pensar em outras coisas, tomar atitudes. Precisamos passar do estágio do prazer para o de fruição, do mostrar as imagens para o pensar sobre o que vemos. Nessa perspectiva, a ‘dança do siri’, tirando a atenção de uma notícia importante sendo transmitida ao vivo, não ajuda a melhorar a qualidade de nossa televisão, embora nos faça rir.
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Jornalista, doutor em Comunicação, Porto Alegre, RS