Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Dando um trato em idéias alheias

O editor de Opinião do New York Times, David Shipley, publicou no domingo (31/7), no mesmo espaço que administra, um artigo sobre um problema que cresceu na mesma proporção em que aumentou, ao longo do tempo, a freqüência com que jornais e revistas publicam textos de autores convidados (ou selecionados entre os que se convidaram).

O problema é o do grau de interferência dos periódicos nesses comentários. Ou, no título do artigo de Shipley, ‘Do que estamos falando quando falamos em editar’.

O senso comum parte do princípio de que esses textos, por exprimirem opiniões de terceiros, são de responsabilidade exclusiva dos signatários, devendo, portanto, ser ‘imexíveis’.

Por esse critério, se o autor escreveu que a Segunda Guerra Mundial começou em 1949, em vez de 1939, ele que pague pelo deslize. Claro que se ele escrever um palavrão, e o jornal tiver por norma não publicar palavrões, o termo será expelido (ou substituído pela inicial seguida de reticências).

Mais claro ainda, se o texto contiver o que puder ser interpretado como calunioso ou difamatório de terceiros, pelo qual o jornal poderá ser co-responsabilizado na Justiça, nem o mais libertário dos jornalistas defenderá que saia como veio.

Mas – e esse é o ponto que embasa a atitude do NYT exposta por Shipley – também o que sai na página de Opinião (a Op-Ed, no jargão americano) não pode destoar do padrão que o jornal ou a revista se impõe. Por isso, está sujeito aos mesmos controles de qualidade que se aplicam a tudo o que o próprio periódico produz.

O adiantado da hora e o estilo do autor

Começa pela escolha dos articulistas e dos assuntos e termina no pente-fino por que passam as colaborações. Não consta a este leitor que a imprensa brasileira aplique esse crivo aos autores convidados ou colaboradores fixos.

Muitas vezes eles entregam os seus escritos tão perto do deadline que o máximo que dá para fazer com os textos é acomodá-los no espaço disponível e corrigir os erros gramaticais mais ofensivos. É como se valesse não apenas para reportagens e outros ‘produtos internos’ a regra do ‘dado o adiantado da hora, respeite-se o estilo do autor’.

Mesmo quando o material chega com a devida antecedência, o fato é que o jornal não investe em seu aprimoramento. Decerto, nada nem remotamente comparável ao que fazem o Times e outras publicações da mesma liga.

O artigo de Shipley conta como é que é. Aprovada uma colaboração, que poderá sair daí a dias, semanas, ‘ou até meses’, um dos editores da seção ‘se porá a trabalhar nele’. A expressão dá idéia do que se seguirá – nem sempre para o conforto do colaborador.

Porque, além de corrigir erros gramaticais e de digitação, adequar o artigo ao manual de estilo da casa e fazer caber o texto, quando o autor tiver agido como se as suas idéias merecessem mais do que o tamanho previsto, o jornal se põe a checar os fatos – e as alegações – do artigo.

Fatos. Se um articulista brasileiro escrever ‘como dizia Napoleão, à noite todos os cavalos são pardos’, dificilmente o fechador do artigo irá pesquisar se a frase e o frasista são esses mesmos. No NYT, nomes, datas, lugares e citações são conferidos.

Alegações. Aí é que são elas. Porque se os fatos checáveis não correspondem à realidade, cai por terra todo o argumento que neles o autor tiver se baseado para justificar um ponto de vista. Quantos de nós já não encontramos em artigos, editoriais e colunas raciocínios sustentados em premissas factualmente erradas e facilmente identificáveis como tais? Às vezes, a falha é cometida de boa fé. Outras, por desonestidade mesmo.

Fatos próprios, não

Nesse caso, alguém jogou no lixo um dos mandamentos essenciais da profissão: ‘Todos temos direito às próprias opiniões. Ninguém tem direito a fatos próprios’. Um quadro com esses dizeres devia estar afixado nas baias dos editorialistas de qualquer jornal.

No exemplo do editor do Times, um autor critica a polícia de uma cidade por ter passado a agir de forma injustificadamente agressiva. Aqui, salvo engano, a crítica e o que é criticado passariam batido. Na Velha Dama Cinzenta, quem estiver administrando o texto deve pesquisar se o ‘injustificadamente’ se justifica. Se a pesquisa mostrar que a criminalidade deu um salto naquela cidade, o autor será convidado a arranjar outra rationale para a sua crítica – ou tirar o time.

‘Discutimos o assunto com o articulista’, informa Shipley, ‘para achar uma solução que preserve o seu argumento, ao mesmo tempo em que adira aos fatos.’ Para alguns isso pode soar surpreendente, continua o editor, como se estivéssemos pondo palavras em bocas alheias. ‘Mas’ – e não há como discordar disso – ‘existe uma distinção crucial entre mudar o argumento de um articulista e sugerir uma linguagem que o ajude a apresentar o seu ponto de vista de forma mais convincente.’

Por linguagem ele entende não apenas uma argumentação mais apropriada do que a original, como ainda a legibilidade: ‘Nossos editores tentam abordar os artigos recebidos como leitores médios que não sabem nada do assunto’.

Ainda bem que Shipley escreveu ‘tentam’ porque isso exige do jornalista, que em qualquer lugar do mundo acha que entende de tudo ou quase, uma atitude de franciscana e improvável humildade.

Em nome da legibilidade – a tentação era de escrever governabilidade, mas não cabe no contexto –, os editores se permitem mudar palavras e palavras (ou frases inteiras) de lugar. E a acrescentar o que Shipley chama ‘linguagem transicional’ – as boas e velhas ‘pontes’ entre uma passagem e outra de um texto – para não deixar idéias penduradas, fora da compreensão do leitor.

‘Editar não é intimidar’

Checado e menos ou mais mexido, o original segue de volta para o autor dar o seu ok. (E pensar a trabalheira que isso dava antes do fax e do e-mail.) ‘Toda mudança é uma sugestão, não uma exigência’, garante Shipley, quem sabe com umas gotas de exagero. ‘Se uma solução oferecida por um editor não funciona para o autor, os dois trabalham juntos para achar uma resposta ao problema. Editar não é intimidar.’

Pena que ele não conte o que acontece quando as partes não chegam a acordo. De qualquer maneira, a este leitor parece da máxima importância o ponto que insiste em ressaltar: ‘Nós iremos ajudá-lo a sustentar o seu pensamento da melhor forma possível’.

Isso em conseqüência da própria razão de ser da seção de Opinião. Ele a concebe como ‘um ponto de encontro de pessoas com um amplo leque de perspectivas, experiências e talentos’. Daí que, ‘se publicássemos apenas autores que não precisam ser editados, acabaríamos dependendo de um grupo muito limitado de redatores profissionais’, o que empobreceria a página.

Em suma, e essa talvez seja a lição jornalística mais importante do artigo, não basta a um jornal ou revista oferecer diversidade de opiniões. É essencial que as opiniões oferecidas, quaisquer que sejam, tenham os melhores fundamentos em que se possam basear, além de serem atraentes – pelo mérito, sim, mas igualmente pela legibilidade.

É o que velho Sartre dizia: romances não se escrevem com idéias, mas com palavras.

E as que Shipley encontrou para o fecho do seu artigo vale a pena reproduzir: ‘E só para vocês saberem, este artigo foi editado. Mudanças foram sugeridas – e agradecidamente aceitas. Bem, a maioria delas’.

[Texto fechado às 15h45 de 1/8]