‘Há um espírito de Caras – ou Quem ou qualquer outro título – contaminando os mais diversos aspectos da sociedade e da mídia no Brasil.
Quase tudo é reduzido à dimensão da fofoca, do pessoal, do superficial, com grande prejuízo à seriedade e ao profissionalismo. É complicado aturar essa multidão crescente de famosos sem talento, de celebridades sem cérebro, de pseudo-ídolos que a mídia fabrica e pasteuriza da noite para o dia sem critério nenhum.
Uma conseqüência nefasta é ser obrigado a ver ‘notícias’ como a de um grupo de ‘socialites’ (essa palavra horrível) que sobe à Rocinha para supostamente prestar solidariedade. É só uma trupe de peruas querendo aparecer, a exemplo dessa Narcisa Tamborindeguy (um nome que nenhum ficcionista teria criatividade suficiente para bolar), à qual existe quem peça autógrafo na rua. E o que dizer desses atores e cantores que participam de campanhas pela paz, com musiquinha ao fundo e legenda ‘Fulano doou seu cachê’, e, como se sabe, passam várias noites cheirando a droga que financia toda essa criminalidade?
Isso para não falar da bobagem que são essas mulheres ricas, ou casadas com homens ricos, que dizem que ‘hoje qualquer pessoa pode ser bonita’, como se todo mundo tivesse tempo para ir todo dia à academia e pudesse gastar tanto dinheiro em lipo, silicone, botox, cirurgia plástica e bronzeamento artificial – e como se estas coisas muitas vezes não ficassem piores que a simples decadência, em especial essas bocas que parecem bicos de pato. São as mesmas mulheres as primeiras a dizer que ‘a beleza interior também é importante’.
Outra conseqüência é o desperdício de talentos vigente na cultura brasileira. Ver determinados atores em papéis tolos nas novelas, por exemplo, é lamentável. Há exceções, como Claudia Abreu em Celebridade, que soube usar o potencial do papel – dando-lhe humor e usando-o como feixe de tipos diversos – para roubar a cena. Agora, quem a viu em Três Irmãs, de Chekhov, sabe o que ela pode fazer. A novela, por sinal, serviria para debater este tema, mas só alimenta o culto à personalidade e trata com excessiva simpatia uma personagem como Darlene, cujo caráter é zero.
Gilberto Braga precisa acertar a mão.
Idolatria, como corrupção, tem em todo lugar. Mas, assim como a corrupção, pode ser atenuada e prevenida. Se pensamos em Maradona e na verdadeira vigília religiosa que está sendo feita por ele, podemos ver como o problema é complexo. Argentinos, porém, apesar do nível educacional e cultural superior ao da média dos brasileiros, estão compreensivelmente carentes de ídolos, de símbolos de excelência; e Maradona é um gênio do futebol, o segundo maior jogador de todos os tempos, digno de todas as honras esportivas. Mesmo assim, é ilustrativo ver a humanidade ainda tão irracional no século 21.
O pior é quando vemos no Brasil que até segmentos e veículos que deveriam resistir parecem ter aderido à lei do ‘vale tudo pela fama’, à idéia do reconhecimento como produto da sorte e da auto-estima, não da luta e do mérito. ‘Chegar lá’, hoje, é aparecer na TV Globo, não importa de onde você venha ou o que saiba fazer; sucesso se tornou um fim que dispensa o meio.
Num país onde ignorância e malandragem são motivos de orgulho, até sujeitos de grande talento e carreira, como Ronaldo e Ayrton Senna, são reduzidos à dimensão de sua vidinha amorosa e publicitária. Como uns caras quaisquer.
O bom leitor
O presidente Lula, na abertura da Bienal do Livro, comparou a atividade de ler um livro à de correr sobre uma esteira. A pessoa sente uma ‘preguiça desgramada’, disse ele. Nada como uma boa confissão.
Cadernos do cinema
A complacência da crítica com um filme como Onde Anda Você, de Sérgio Rezende, é de pasmar. Sempre contaminada por ideologia, mesmo sem saber, ela viu ali uma busca felliniana da inocência brasileira que merece elogio já por tal pretensão. Mas o fato é que o filme, mistura de Tieta e Central do Brasil, não passa de uma sucessão de clichês (com a cena final na praia) e piadas sem graça (até aquela do falso paralítico!), com atuações muito desiguais. Não teremos uma cultura sólida enquanto o padrão de exigência continuar tão baixo.
De la musique
Se você quer uma arte brasileira de alta qualidade, ao mesmo tempo afetiva e refinada, ingênua e engenhosa, use Dorival Caymmi, como diria Chico Buarque.
O CD Para Caymmi, de seus filhos Nana, Dori e Danilo, é uma bela homenagem aos 90 anos do pai. Momentos altos são O Samba da Minha Terra, Saudade da Bahia e Rosa Morena, embora eu tenha sentido falta de O Bem do Mar e É Doce Morrer no Mar, se bem que estas ficam insuperáveis na voz do patriarca. A combinação de melodia suave, harmonia rica e ritmo contagiante, afinal, é só dele.
O ludopédio
Me perguntam sobre os torneios nacionais. Assisti a alguns jogos dos estaduais, mas achei a média muito fraca. É bom ver Felipe reencontrando seu futebol, mais solto no ataque, mais objetivo depois do drible, alguns lances inteligentes de Alex no Cruzeiro e os gols contundentes de Luís Fabiano.
Curiosamente, esses três destaques estão no Brasil porque não fizeram boas transferências para o futebol europeu. Não podem, porém, ser titulares na seleção, ainda que tantos comentaristas queiram, exagerando nas comparações e esquecendo que os zagueiros daqui são babas. E de resto os times são compostos na maior parte de jovens medíocres e de veteranos que já deveriam estar aposentados. Sempre vão surgir revelações, mas o Campeonato Brasileiro será de novo prejudicado pela debandada do meio do ano, o que veta qualquer previsão. Enquanto os clubes não descobrirem a modernidade, esse será o cenário.
Por que não me ufano (1)
‘Os bárbaros estão vencendo’, alguém me diz. Não todas as batalhas, é verdade. Mas quando sabemos de histórias como a do Parque Nacional da Serra da Capivara, no sul do Piauí, a sensação é essa mesma. Niéde Guidon já cansou de pedir ajuda, gastar o próprio dinheiro, enfrentar bandidos e demagogos, etc. Faltam dinheiro, vigilância e civilidade. Como resultado, aquele magnífico patrimônio de pinturas rupestres corre o risco de, afora não ser estudado, acabar pichado por vândalos – o que por sinal já acontece em outro sítio arqueológico, o de Monte Alegre, no Baixo Amazonas, Pará.
Por que não me ufano (2)
É engraçado verificar que os poucos e insuficientes resultados bons da economia brasileira se devem à porção ‘bendita’ da herança do governo anterior, como as exportações que, com a produtividade do agronegócio (beneficiada pelas pesquisas da Embrapa e pela estabilização da moeda) e de empresas como a Embraer (que ajudam a ter uma pauta de manufaturados maior), continuam crescendo, diversificando mercados, etc. Mas as burrices na negociação da Alca, a competição de países como a China em setores como o de automóveis, os problemas na safra da soja, a falta de dinheiro para a pesquisa e o estrago de gente como Roberto Requião no serviço portuário estão aí, impedindo o deslanche. Como o mercado interno está desaquecido, com fluxo zero de investimentos, o crescimento dificilmente chegará a patamares razoáveis.
Aforismos sem juízo Só cobra quem ainda confia.’
Roberta Salomone
‘Quanto custa um escândalo’, copyright Veja, 28/04/04
‘A enrascada em que Marcello Antony se meteu na madrugada do último dia 17 não é exatamente uma novidade no mundo dos famosos. Flagrado comprando maconha, o ator de 39 anos passou uma noite na cadeia, em Porto Alegre. Antony desceu à calçada de seu hotel com um cheque de valor suficiente para pagar por 200 gramas, virou-se para trocá-lo quando soube que o pacote continha metade da quantidade presumida e, nesse momento, foi preso pelos policiais que havia horas grampeavam o traficante. O Ministério Público agora vai decidir se denuncia o ator por posse ou por tráfico. Um dos mais belos rostos masculinos da televisão, Antony vivia uma fase de elogios no campo profissional e de felicidade na vida doméstica com a chegada de Francisco, adotado no final do ano passado por ele e pela mulher, a atriz Mônica Torres. Abalado, tentando esconder-se atrás do boné na pose clássica de tantos detidos, ele fechou-se em copas. Na mesma madrugada, em Londres, onde declaradamente ‘passeava com o cachorro’, o ator americano Kevin Spacey, com o rosto machucado, primeiro deu queixa de roubo e agressão numa delegacia, depois recuou com uma história mal contada – disse que caiu no golpe de emprestar o celular a um desconhecido, o sujeito fugiu, ele foi atrás, tropeçou e, pimba, rachou a cabeça. Eternamente empenhado em exercer o direito de não assumir a homossexualidade, Spacey, que atualmente dirige o teatro londrino Old Vic, ainda reclamou: ‘Levar o cachorro para passear no parque é uma coisa perfeitamente normal, mas agora ficam perguntando ‘o que ele estava fazendo lá às 4 da manhã’. A semana das celebridades em apuros com a lei se completou com mais uma etapa da novela Michael Jackson: cinco meses depois de ser preso e fichado numa delegacia da Califórnia, ele foi indiciado por abuso sexual de menor. A acusação contra o cantor – induzir um menino de 12 anos que sofre de câncer terminal a praticar modalidades sexuais – é incomparavelmente mais grave do que as outras encrencas. Em comum, no entanto, os três casos têm o fato de que profissionais experientes, com anos de vida pública, bons assessores e ótimos advogados, se enrolam todos quando pegos em situações complicadas – e, além das contas com a Justiça, podem terminar pagando um preço em prestígio e rendimentos.
O tamanho do estrago depende muito da atitude imediata do artista. Ao optar pelo silêncio e depois admitir em depoimento à polícia ser usuário de maconha, Antony contrariou um dos mais consagrados mandamentos nessa situação. ‘Fugir do problema é um erro grave. Uma pessoa pública deve se explicar sobre seus atos’, afirma o consultor de imagem Mário Rosa, autor dos livros A Síndrome de Aquiles – Como Lidar com as Crises de Imagem e A Era do Escândalo. Especialista no tema, o consultor americano James Lukaszewski, da Universidade de Nova York, desenvolveu um roteiro de comportamento em casos do gênero. Em primeiro lugar, é vital assumir o erro e dispor-se a reparar algum prejuízo. Explicar-se e pedir desculpas também são atitudes importantes. Ao contrário dos políticos, artistas têm a seu favor uma enorme predisposição do público para desculpá-los. A atriz Vera Fischer teve um casamento conturbadíssimo com Felipe Camargo, brigou publicamente com uma babá, passou por várias internações para tratar de dependência química, perdeu a guarda do filho Gabriel e foi afastada das gravações da novela Pátria Minha por causa dos atrasos. Em cada situação difícil, o público, num primeiro momento, torceu o nariz para tanta encrenca; num segundo, admirou-se de vê-la ressurgir, eternamente bela, e, no seu caso, sem nunca, jamais pedir desculpas. Assumir a escorregada, com uma resignada e britânica dose de humor autodepreciativo, também ajudou a salvar da eterna execração pública o ator Hugh Grant, preso em flagrante em 1995, na Califórnia, por contratar uma prostituta para fazer sexo oral. Na Inglaterra, o episódio foi tratado na galhofa, mais como uma excentricidade da legislação americana do que como prova de perversão do ator. Famosos que se envolvem com bebidas, drogas e sexo não convencional não chegam a surpreender o público. Em determinadas situações socioculturais, podem até reforçar a aura de libertários, como aconteceu com os Beatles e o hoje ministro da Cultura Gilberto Gil, presos por posse de maconha numa época em que isso era visto como desafio ao establishment.
Em quaisquer circunstâncias, silêncio e mentira só prejudicam os envolvidos. ‘O fã não acredita de imediato na história que ouve, e fica esperando uma satisfação’, diz Rosa. ‘Um tropeço nessa hora pode provocar um estrago irreversível.’ O cantor Belo, nome artístico de Marcelo Pires, 29 anos, há dois anos teve uma conversa comprometedora com um traficante gravada pela polícia. Apesar do flagrante, tentou negar a história e ficou foragido por mais de um mês. Sua carreira ruiu. Belo está proibido de sair do Rio de Janeiro, foi dispensado pela gravadora e não faz mais de cinco apresentações por mês – no auge do sucesso, eram vinte. Fora do Brasil, Robert Downey Jr., que chegou a ser indicado ao Oscar de melhor ator pela atuação no filme Chaplin, perdeu inúmeros trabalhos depois das três prisões consecutivas por uso e porte de drogas. Winona Ryder, flagrada furtando roupas numa loja de departamentos, tentou negar, alegou perseguição e, mesmo tendo ajustado as contas com a Justiça, não conseguiu ainda outro papel importante. Nada, porém, se compara à alegação apresentada por Dominique Ambiel, assessor do primeiro-ministro francês, Jean-Pierre Raffarin. Preso na segunda-feira passada no Bois de Boulogne, em Paris, com uma prostituta romena de 17 anos, disse que a garota tinha se enfiado à força no carro dele, parado num sinal – e ainda insultou os policiais. Detalhe: Ambiel, que renunciou três dias depois, era assessor de comunicação.’
GREVE DE 79 / MEMÓRIAS
‘A greve dos jornalistas’, copyright Folha de S. Paulo, 25/04/04
‘Outro dia o presidente Lula se lembrou da greve dos jornalistas de 1979. Mas, se conhece algo, é só a história oficial, porque a verdadeira se manteve em sigilo nesses anos todos, por um pacto de sangue de todos nós que participamos dela, pelo justo receio de que os pósteros desmoralizassem nosso ardor cívico.
Aquele ano começou quente. Lula havia aberto o caminho libertário comandando as greves do ABC. Depois do início, cada categoria que tivesse hombridade teria que fazer a sua grevinha, senão passava por pusilânime.
Em 1978 houve um pré-ensaio com a greve da Abril. Tive minha participaçãozinha no episódio, mas juro por Deus que, na greve dos jornalistas, no ano seguinte, fui conduzido.
Tinha acabado de sair da ‘Veja’ por uma proposta no ‘Jornal da Tarde’. Aproveitei o intervalo entre um emprego e outro para convidar o velho Dagô, pandeirista e dono do bar do Alemão, para irmos a Belo Horizonte tocar choro com meu primo Oscar. Quando voltei, o movimento já estava embalado. Não tinha mais do que duas semanas de ‘JT’ quando a greve estourou.
Foi uma greve meio estranha desde os primeiros dias. No segundo dia, a greve esquentou. Fizemos piquete na Folha e lembro até hoje estar de braços dados com Ângela Ziroldo e Maria do Carmo Mayrink na primeira fila, pegando no pé do Lalau, agente do Dops. Na última fila, um amigo revolucionário cantava o Hino Nacional e empurrava os colegas. E a gente lá na frente, de nariz enfiado na barriga de um policial gigantesco que afastava a aglomeração e berrava: ‘Cuidado com as moças, cuidado com as moças’. Para mim sobrou um spray nos olhos que ardeu pra burro.
Não podíamos enfrentar a repressão sem planejamento. Da nossa turma, quem mais tinha prática de guerrilha era o Antonio Carlos Fon, o Fonzito, que assumiu o comando das operações.
Calejado em missões perigosas, ele juntou um grupo de voluntários, combinou um local secreto para nos encontrarmos. Entramos em um carro com ele carregando um saco misterioso. Foi dando ordens para o colega que dirigia e, de ordem em ordem, fomos parar em uma rua, no trajeto por onde passariam os caminhões do ‘Estadão’. Fonzito era imbatível no planejamento.
Quando o primeiro caminhão apontou na esquina, Fon ordenou que o motorista começasse a andar na frente, abriu o saco e… apareceram batatas. Nos entreolhamos, com a ignorância de quem nunca tinha sido guerrilheiro. Eram batatas-minas, explicou ele. Em cada uma havia um prego de três pontas enfiado. Jogando a batata, alguma lei dialética da física manteria o prego para cima e furaria pneu até de carroceria Trivelatto.
Olhamos com admiração para o nosso estrategista. Sentado no banco de trás, Fon ia afinando a mira, mandando o motorista ir um pouco mais para a esquerda, um pouco mais para a direita, até que, quando achou que o caminhão estava na mira, ordenou ao nosso lança-batata-mina, o Zuba, que arremessasse o primeiro petardo. Zuba abriu a porta do banco da frente e deixou a batata-mina rolar para o asfalto.
Tivemos que interromper a batalha por trinta minutos até conseguir trocar o pneu de trás do carro, que passou por cima da batata-mina antes do caminhão do ‘Estadão’.
Nessa troca, perdemos o comboio de vista, e Fon decidiu montar uma reunião de emergência na praça do estádio do Pacaembu. Nem me lembro do meio de comunicação utilizado porque, naqueles tempos, não existia o celular. Mas era eficiente porque, pouco antes da meia-noite, a praça tinha uns 20 voluntários aguardando as novas instruções.
Aí começaram a aparecer uns fuscas envenenados, com umas antenas enormes, de uns taxistas que estavam começando a trabalhar com serviços de rádio e, de noite, se divertiam trocando mensagens e marcando encontros. Mas quem ia lá saber que essas modernidades já estavam disponíveis para civis e, além do mais, taxistas? Fonzito deu o alarme: ‘É a repressão! Vamos disfarçar!’.
Não sei de onde, apareceu uma bola de futebol, e ficamos lá, os 20 marmanjos fazendo embaixada até que os boys do táxi se mandassem.
Ainda vou escrever uma trilogia sobre o tema.’