Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Das vantagens de tomar um furo

Outra vez uma invasão promovida por um grupo de agricultores sem-terra vira notícia na mídia nacional. Na madrugada da quarta-feira (8/3), por volta das 4h30, cerca de 1.500 integrantes do movimento Via Campesina e do MST do Rio Grande do Sul invadiram e destruíram um laboratório da empresa Aracruz Celulose em Barra do Ribeiro, cidade a 50 quilômetros de Porto Alegre. Após terem rendido os seguranças, os agricultores quebraram estufas e experimentos científicos que tinham registros de mais de 20 anos, além de cerca de 3 milhões de mudas de eucaliptos pertencentes à Fazenda Barba Negra, também de propriedade da Aracruz. O ato de protesto durou uma hora.


O diferencial neste caso foi a repercussão da cobertura realizada pelas emissoras de televisão gaúchas, sendo a notável exceção a afiliada da Rede Globo, RBS TV. Imagens do fato foram ao ar pelo SBT, a Bandeirantes e a Record. Fazendo uso do jargão jornalístico, a RBS ‘tomou um furo’ ao deixar de noticiar a invasão, que acabou gerando repercussão nacional. O motivo é que a emissora global não teria sido alertada a respeito da movimentação dos agricultores da mesma forma que as concorrentes o foram. O assunto acabou motivando uma troca de argumentos inflamados entre diretores das emissoras.


No dia seguinte ao da manifestação, o diretor de jornalismo da RBS TV, Raul Costa Junior, distribuiu um memorando via correio eletrônico interno aos funcionários da sua redação tratando sobre o ‘furo’ que a emissora levou. O texto foi intitulado ‘O orgulho de não dar o furo’. Numa atitude considerada pelo menos incomum em se tratando de um jornalista, Costa Junior comemorou o fato de não ter noticiado um fato jornalístico relevante, por entender tratar-se de atividade criminosa.


Trechos do comunicado foram reproduzidos pelo site Coletiva.Net, e nele o diretor da RBS TV desdenha o fato de ter ficado fora da cobertura, aprovando o fato de a emissora não ter sido interpretada pelos agricultores sem-terra como um canal para propagar ações que constituam violação à lei. ‘O movimento não reconhece a empresa para esse tipo de ação. Ainda bem. Não somos confiáveis para fazer propaganda de um crime’, escreveu. O jornalista afirmou ainda que pela primeira vez teria ficado satisfeito por não ter divulgado antes uma notícia.


‘Sempre atentos’


Em resposta à RBS, o diretor de jornalismo da TV Bandeirantes de Porto Alegre, Leonardo Meneghetti, alegou que a emissora da Rede Globo, ao ter ficado de fora da cobertura, tentou descaracterizar o sucesso do trabalho realizado por suas concorrentes. Em entrevista a este Observatório, Meneghetti diz ter faltado agilidade jornalística à RBS TV e, por isso, a emissora não registrou nem noticiou a destruição do laboratório da empresa Aracruz.


Comenta-se que o teor da resposta emitida por Raul Costa Junior tenha sido oriundo do desprazer por ter sido ‘furado’. Você concorda?


Leonardo Meneghetti – Talvez sim. Talvez tenha sido uma tentativa furada e distorcida de justificar o furo. Mas não posso afirmar com certeza isso, até porque não diz respeito à Bandeirantes. Só não aceito que, por terem sido furados, eles ataquem nossa emissora que é padrão nacional de ética, credibilidade e isenção editorial. E isso não se conquista de um dia para o outro; nem se compra em farmácia meio quilo de jornalismo isento. Está no DNA da Bandeirantes. Nós não brigamos com a notícia. Nós registramos aquele fato porque é de interesse público e de nossos telespectadores e ouvintes – até para que não se repita. Imaginemos que ninguém estivesse estado lá, quantas versões equivocadas nós poderíamos ter daquela invasão? E isto também é papel de veículo de comunicação. Vamos deixar claro que a Bandeirantes é contra qualquer tipo de invasão de propriedade rural, empresa privada ou órgão público. E também por isso cabe a nós registrar o fato e mostrá-lo à sociedade.


A RBS TV alega não ter sido alertada sobre o fato. Você acha que isso se passou mesmo ou houve desatenção?


L.M. – Alertada? Eles queriam o quê? Um convite impresso e anúncio no jornal? Mas não sei exatamente porque tomaram o furo; é problema deles. O clima começava a ficar tenso aqui no estado e era necessário estar atento. Ainda mais em ano eleitoral e justamente na semana em que Porto Alegre recebia a Conferência Internacional sobre Reforma Agrária. As lideranças do MST estavam publicamente se manifestando sobre a possibilidade de um evento como este. Era fundamental estar ligado, checando informações.


Como a Bandeirantes tomou conhecimento da possibilidade da invasão?


L.M. –Tomamos conhecimento através de um informante e ponto final. No mesmo dia, um repórter do jornal Zero Hora [do grupo RBS] me fez esta pergunta. Eu nunca liguei para a Zero Hora a fim de saber como eles fizeram esta ou aquela matéria ou como tiveram acesso a determinada informação. As invasões do MST geram polêmica e invariavelmente têm conseqüências graves. Por isso, estamos sempre atentos, buscando informação. É para isso que uma emissora de TV e rádio têm seu time de repórteres.


‘Persistência e dedicação’ 


‘Foi mais um golaço.’ Desta forma entusiasmada, a editora regional do SBT em Porto Alegre, Cristiane Finger, caracterizou a notícia dada em primeira mão no telejornal local SBT Rio Grande. Cristiane explica que a equipe do SBT estava acompanhando a Segunda Conferência Internacional da Reforma Agrária na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e logo após seguiu o ônibus dos manifestantes do grupo Via Campesina sem saber seu destino, apesar de a emissora estar a par de que ‘algo aconteceria’. A jornalista alfineta Raul Costa Júnior alegando que ‘um ato de protesto não é como um baile para qual recebemos convites’. Em mensagem enviada a este Observatório, Cristiane ressaltou que faz parte da filosofia da emissora noticiar atos como o acontecido na empresa Aracruz, até para que não se repitam.




‘O furo é apenas conseqüência de um trabalho sério e competente. Até porque é relativo, quem decide onde ver primeiro uma notícia é o telespectador, ao escolher um telejornal que lhe agrada. O furo faz parte da saudável competição e de uma certa vaidade profissional, que por fim nos impulsiona a melhorar sempre. Nós sempre nos preocupamos com questões éticas, e assim que nos deparamos com o cenário em Barra do Ribeiro procuramos as autoridades da área de segurança pública e a própria empresa Aracruz. Não compactuamos com crimes ou atos de violência, mas não podemos deixar de mostrá-los, até para que não mais aconteçam. Nós contamos, opinamos e orientamos o nosso telespectador, que é o juiz final das suas posições.


‘Como conseguimos a informação? Como sempre é feito no jornalismo – com
fontes, com investigação, com persistência e dedicação. Pessoalmente, recebi a informação de que algo aconteceria paralelo à Segunda Conferência Internacional da Reforma Agrária, que acontece na PUC-RS. E então fizemos nosso trabalho de apuração. Nossa equipe seguiu os manifestantes da Via Campesina, sem saber para onde e o que aconteceria. E a repórter Caroline Mello e o cinegrafista Emerson Santos realizaram o seu trabalho com brilhantismo. A isenção, a credibilidade e a ética conquistam tanto fontes como o público.’


Ato de banditismo


Após as reações da Bandeirantes e do SBT, Raul Costa Junior encaminhou ao site Coletiva. net nota para detalhar melhor sua posição e procurando encerrar o assunto. Com um tom mais ponderado, o jornalista admitiu que o memorando que enviou à redação da RBS TV não deveria ter vazado para o público. Costa Junior alega que apenas tentou estimular um debate interno sobre como o veículo deve se comportar face a uma situação deste nível.




‘O debate que propus internamente foi ético, de postura. Não estou aqui para dizer se outras emissoras agiram certo ou errado. O que estou propondo é que a RBS TV e a TV COM [emissora UHF do grupo] discutam como agir neste caso. As opções éticas de cada veículo devem ser julgadas pela sociedade’.


Para o diretor de jornalismo da RBS não houve inércia da parte de sua emissora no que diz respeito à não-apuração do fato. ‘Colocações de que tomamos um ‘furo’, cometemos um erro e etc. partem de um pressuposto errado de que teríamos avaliado não cobrir e nos arrependemos (no caso do erro) e de que um outro veículo produziu investigação exclusiva (no caso do furo). Nem um nem outro é verdade. Esta foi a primeira vez que vi imagens exclusivas em três emissoras diferentes’, argumentou.


Por fim, Raul Costa Junior conta que acha apropriado que a RBS TV tenha deixado de noticiar um evento jornalístico marcante por considerá-lo como ato de banditismo. Ao mesmo tempo, diz que a RBS não toma parte em ações criminosas, colocando indiretamente que as demais emissoras não teriam tal critério. ‘Minha posição, já conhecida e que aqui reitero, é de que fazemos jornalismo e não somos participantes ativos de ações criminosas. Acredito que agimos corretamente e, com certeza, prestamos um grande serviço ao telespectador.’


Costa Junior foi procurado pelo Observatório mas optou por não responder à solicitação de entrevista.

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Jornalista