Um dos atavismos da esquerda é se atribuir uma vocação natural de depositária da verdade, monopolizando as virtudes éticas e morais. Um esquerdista seria o pregoeiro da verdade e um modelo de excelência simplesmente por ser de esquerda. Essa patologia serviu de antolhos para muito intelectual diante do despotismo implantado nos países do ‘socialismo real’. À teoria conspirativa, da qual foi vítima, a esquerda reagiu com mais teoria conspirativa. Papai Stálin devia ser perdoado (como Fidel atualmente) porque seus erros derivavam do cerco opressor que sofria. No fim, as distorções seriam corrigidas pelo sentido natural da história, que, em progressão evolutiva e cumulativa, resultaria na sociedade sem classes, da qual o proletariado seria o parteiro.
Algumas dessas teorias conspirativas edulcoraram o presidente Luiz Inácio da Silva antes e depois da sua reeleição. Contra ele se voltou uma frente concertada de inimigos, dispostos a destruí-lo. Dessa ofensiva participaria a grande imprensa, os empresários, os políticos da direita e grupos estrangeiros, todos contrariados pelas sábias decisões do grande timoneiro. Paralelismos históricos foram traçados para conquistar adesões a essa construção intelectual em torno da figura do grande líder renovador. A mais comum comparando-o a Salvador Allende.
Havia poucas dúvidas na época – e hoje não resta mais nenhuma – de que os Estados Unidos de Nixon & Kissinger tudo fizeram para impedir a eleição do senador socialista como presidente. Depois, violaram a soberania do Chile e cobriram-se de vilanias para depô-lo, o que acabaram não conseguindo: o bravo presidente preferiu suicidar-se a perder, pela brutalidade de um golpe militar, o mandato eletivo que o povo lhe conferiu. Mas a semelhança entre os dois mandatários vai pouco além de sua atribuída aqui – ou assumida lá – condição esquerdista, a razão de ser da má vontade contra eles por parte do establishment, o chileno muito mais agressivo, violento e decidido.
Tudo mais dissocia os dois casos e frustra a associação. Allende fez sua campanha propondo uma ‘via pacífica’ para o socialismo, sem sofismas. Por isso, sua vitória foi por margem insuficiente de votos para garantir-lhe a confirmação automática pelo poder legislativo, que escolheria seu adversário se nesse momento não ocorresse o assassinato de um grande chefe militar legalista, vítima das tropelias de uma direita facínora.
Mesmo assim, a sociedade chilena estava dividida diante da proposta de chegar ao socialismo através do voto. Para a cúpula, porém, não havia a mais tênue dúvida: o inferno era melhor. Os meses finais de Allende no poder transcorreram sob inédito locaute patronal. Nada que dependia da elite funcionava. Enquanto isso, senhoras desfilavam pelas ruas batendo panelas dia após dia, numa organizava invejável, com fundos abastados. Quem se hospedava no Sheraton La Moneda (da ITT), vendo a movimentação daqueles americanos atléticos, não tinha dúvida: a CIA estava ali para ajudar a tornar impossível a vida da Unidade Popular.
Distância grande
Depois de três tentativas fracassadas, Lula se tornou presidente seguindo o catecismo do marketing de Duda Mendonça. O glacê era esquerdista, mas o conteúdo do programa era uma variação populista do decálogo do tucanato. O máximo que Lula protagonizou foi uma versão atualizada de getulismo combinado com certo janismo antiparlamentar, que já se evidenciara na famosa frase sobre os 300 picaretas da Câmara Federal (legião que Lula, no poder, ampliou).
Poucos segmentos da elite podem reclamar com fundamento do primeiro mandato de Luiz Inácio, o venturoso. O mais comum nas reclamações é a desconfiança de que, uma vez confirmado na presidência por mais quatro anos, ele deixe de lado as simulações e revele sua outra face, de esquerdista para valer. Esse receio se sustenta mais nos companheiros de viagem do presidente do que nele próprio.
Se o ‘Lulinha paz e amor’ de Duda era uma máscara, ela grudou no rosto e virou pele, como no personagem do famoso poema de Fernando Pessoa, ‘A Tabacaria’ (citar Pessoa voltou a ficar na moda na província). O presidente se encantou com as serventias do poder e reage como autêntico membro da elite (mesmo que não se considere como tal nem assim seja considerado pelos tais) ao menor rumor de mudança drástica na política econômica patrulhada pelo doutor Meirelles a partir do promontório do Banco Central.
Há ‘forçação de barra’, como se diz no patoá assembleísta, quando se costura sentimentos distintos de reação a Lula, que vão da repulsa total à mera restrição parcial, com o fio invisível da unidade, criando uma conspiração que, até aqui, não se evidenciou. Há grupos de pressão que gostariam de apear Lula do Palácio do Planalto, aqui e agora. Há gente conspirando nesse sentido. Mas é fantasia dizer que todos se uniram sob um comando articulado, de forma direta ou indireta, para sabotar o governo do PT e depor Lula por seus mal-feitos.
Dias atrás a Companhia Vale do Rio Doce colocou para fora sua insatisfação com essa irreal política cambial do governo, que barateia itens importados de consumo e mina a rentabilidade dos exportadores. Mas, na boca da CVRD, o grito sai em falsete. De fato, a empresa ganha menos do que podia, mas o que ganha já é fantástico, graças aos elevados preços de suas commodities. Outros exportadores podem protestar com maior legitimidade. Até agora puderam compensar as perdas, mas quem garante que terão sobras daqui a pouco? Estão com receio de imitar aquela frase da piada erótica: vai ser bom, não foi?
Os militares também estão mal-acomodados em seus uniformes apertados. Se os militares falharam por subestimar os civis, estes têm dificuldades para entender os militares. Daí essas políticas mambembes do setor, variando entre medidas desajustadas, ora por excesso, ora por escassez. Daí a estarem preparando um novo golpe, vai uma distância considerável. Deve-se dizer que os tanques só vão para as ruas no Brasil quando são chamados por um apelo que poupa aos chefes desses movimentos anti-republicanos o risco de uma guerra civil. Se ela ocorre, como em 1932, é por um erro de cálculo generalizado.
A emoção e a razão
Quanto à imprensa, constitui outra falácia imaginar que as redações estejam se movimentando com um grito de insurreição. Excessos de suscetibilidades e mentes autoritárias querem expurgar da democracia o que lhe constitui o encanto: o choque das divergências, a manifestação dos opostos, o confronto e mesmo a guerra aberta em torno de idéias e argumentos (certo tom pessoal, quando não compromete a esgrima das idéias, faz bem à sadia fofoca). A justiça está certa ao punir os excessos, quando acionada. Mas está errada ao pretender uma assepsia burocrática, que acaba por desnaturar o vigor da democracia.
A campanha eleitoral deste ano foi mais limpa, mais civilizada, mais eficiente. Porém a espada de Dâmocles permaneceu irrealisticamente erguida sobre a cabeça dos contendores. Os candidatos foram intimidados a se comportar como concorrentes de grêmio escolar e os jornalistas tiveram que medir e pesar suas palavras para não ficar ao alcance de uma penalidade. Nivelada por essa regra confessional, a campanha eleitoral foi pobre de discurso, inodora, desmotivadora. Não pode ser assim. Não deve.
A Constituição tutela a liberdade de expressão e pensamento, mas a sombra dos direitos individuais está cobrindo o sol do interesse público. Qualquer ‘otoridade’ ou ‘tubarão’, acionando sua equipagem, cala o oponente. Basta suscitar em juízo qualquer mal-estar subjetivo para obter medidas acautelatórias e tutelas inibitórias, com direito a ressarcimento indenizatório.
Os eventuais Marats, defensores autênticos do povo, são expurgados no nascedouro por uma justiça sobre a qual, sete décadas atrás, Franz Neumann disse tudo em seu Behemoth. Aquela justiça que de vez em quando tira a venda para ver quem lhe requer os serviços, favorecendo a uns e constrangendo a outros.
Sensibilidades se manifestam à flor da pele graças a esse endosso, bloqueando o exercício da controvérsia, que esclarece e educa nas verdadeiras democracias, sólidas o bastante para resistir aos seus próprios exageros. É o caso, por exemplo, do contencioso entre o senador Jorge Bornhausen e o escritor Emir Sader. O presidente do PFL foi excessivo no seu ataque a ‘essa raça do PT’, destilando seu ódio. Já o professor manifestou oportunismo ao classificar a expressão como prática de racismo da parte de um descendente de alemães, numa associação muito óbvia para dispensar demonstração. Retribuiu ao golpe baixo com outro golpe baixo. Ao invés de treplicar, Bornhausen recorreu à justiça, que reagiu com uma sentença demasiada, através da qual Sader foi condenado à perda do seu emprego de professor. Diante do exagero, o emocional se sobrepôs ao racional e o que podia ser uma controvérsia descamba para geral de campo de futebol. A quem interessa?
Força da democracia
O Brasil é um país muito mais complexo e diversificado do que o Chile de Allende, Pinochet, Frei e Bachelet, que me perdoem os hispânicos dizê-lo – e apesar das aparências em contrário. Mais complicado até do que estão dispostos a admitir muitos brasileiros. Um jornalista que diz absurdos de Lula, como periodicamente o faz Diogo Mainardi nessa decadente Veja, não está ofendendo para derrubar. O pior que Mainardi pode dizer não é pior do que procurar calá-lo com uma mordaça.
Uma pessoa que respeita e cultua o ato de pensar livre, que é o traço mais marcante no gênero humano, há de querer adversários poderosos, de estilo fluente, de raciocínio rápido, de memória fantástica, de muitas leituras. Se o conseguir superar, provavelmente terá ultrapassado os limites da própria capacidade e se tornado melhor.
Hoje leio pouco Veja. Não por discordar do que diz, mas porque ela quase nada me acrescenta: é mal escrita, mal apurada, não respeita a inteligência do seu leitor nem a própria seriedade, que, no vai-da-valsa, desapareceu. Mas o Brasil se empobrecerá se a revista se for por contrariar os donos do poder. É melhor acreditar que seu destino estará selado quando o mundo contido nas suas páginas pouco tiver a ver com o mundo que gira lá fora (enquanto a Lusitana roda).
Como disse um líder americano, hoje ‘menos grande’ do que na época em que disse a frase, pode-se enganar todos durante algum tempo e alguns durante todo tempo, mas não todos o tempo todo. A força da democracia está em se acreditar nessa máxima. A realização da democracia está na confirmação dessa previsão. Que assim continue a ser, também no Brasil, para o bem de todos e a felicidade geral da nação (mas sem o cacófato).
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)