Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

De patas, pelegos, jornalismo e medicina

‘As patas do Estado, quando se trata de pisotear a opinião e a livre expressão do pensamento, têm a singularíssima capacidade de mudar suas impressões digitais de acordo com os ventos da hora. Nos anos de chumbo provavelmente utilizavam as dos primatas, dada a freqüência com que nos referíamos, à época, a gorilas fardados. Já na contemporaneidade, os arcos, verticílos e presilhas internas e/ou externas destas digitais remetem com certeza à safra de pelegos que ora viceja em Brasília.’

O texto acima é de autoria do signatário, um jornalista. Suponhamos que tenha emplacado as páginas de algum jornalão, em dia assim de distração ou, mais provável, de inusitada benevolência por parte do editor. Tratando-se de peça opinativa, ou o fez a bordo de um editorial (refletindo a opinião do veículo), ou surfou em coluna ou artigo assinado (caso em que os louros, ou a fatura, certamente recairiam mais sobre o autor).

De qualquer forma, façam-se as apostas. Seria coisa passível de ira, indignação, processos e afins? Da parte dos gorilas, é melhor esquecer. Ou trocaram a farda pelo pijama, ou se reciclaram, ou, ainda, já se foram. A última hipótese seria talvez a mais política e ambientalmente correta, por lembrar a triste sina dos seus parentes (metafóricos, com todo o respeito) africanos, ora em adiantado processo de extinção.

Quanto aos pelegos contemporâneos e brasilienses, provavelmente também optariam por estratégico silêncio. Afinal, não existe na capital federal algo como um Conselho Federal de Jornalismo. Mesmo na vigência de um troço desses (novamente com todo o respeito) é difícil imaginar que qualquer burocrata engajado e doutrinado pela cascata das tais contrapartidas sociais vestisse a carapuça e saísse a berrar sua condição de ‘pelego indignado e sedento de justiça’.

Camelô poliglota

Mas vá lá que, na última e pavorosa hipótese, tal instância sindical (ou probóscide do partido governista, por enquanto a liberdade de opinião ainda vige) quisesse mostrar serviço. Abrir-se-ia um processo, que poderia dar desde uma simples advertência até a cassação do exercício da profissão deste tão temerário digitador. Fiquemos no pito, em repúdio à truculência desmedida, ao menos simbolicamente.

Reservado ou público o pito, lá vai o atrevido jornalista purgar seus pecados. Seu castigo, óbvio que patrocinado pelas contrapartidas sociais, bem poderia ser um duríssimo e bíblico sermão, competentemente garimpado nos melhores textos do padre Antônio Vieira, e mais competentemente ainda copidescado, remasterizado e entoado pelo sacristão titular do Palácio do Planalto, um bom homem tão sinceramente motivado pela vitória final e definitiva dos pobres sobre os ricos.

Numa pena mais branda, o réu seria condenado a tantas e longas horas de escuta, em altos decibéis, das mais furibundas rezas de Mercedes Sosa. Ou, ainda, poderia ser submetido às magnas e principais lições do (hipotético) Conselho Federal de Jornalismo, que rugem a necessidade ‘orientar, disciplinar e fiscalizar’ o exercício do jornalismo. Mas esta é uma hipótese pra lá de radical, um delírio besta de quem só quer implicar. Essas coisas não constam de nenhum CFJ, mesmo que virtual. Na verdade é frase pinçada de um papiro constante da coleção dos Manuscritos do Mar Morto, em presente exibição num museu do Rio de Janeiro e traduzida por um camelô poliglota.

Rasgar a carteirinha

Agora – sempre ficcionalmente – o signatário abdica da sua condição de jornalista e assume seu outro ofício, o de médico. Cisma então de lavrar, em imaculada folha do seu receituário, devidamente chancelado pelo número de inscrição do seu CRM (Conselho Regional de Medicina), um texto intitulado ‘Laudo de Santo André’, não o santo, mas a cidade paulista.

Sapeca lá que bactérias de grande virulência, remanescentes de uma cepa causadora da meningite meningocócica que assolou a região nos tempos da ditadura, e que sobreviveu incubada sabe lá a OMS como (vai ver, escapou da censura), acabam de fazer numerosas vítimas em Santo André. Entre as toxinas secretadas pelos agressivos micróbios, destaca-se uma ainda totalmente desconhecida pela ciência infectológica. Age à guisa de poderoso e irreversível soro da verdade, fazendo com que os enfermos cantem feito um canário belga ou um Waldomiro Diniz no escurinho do cinema das maracutaias mil.

E aí é uma entregada só, os malditos meningococos não poupam nem as classes sociais mais favorecidas. O laudo segue então em seu jargão típico, relatando cabeludíssimas histórias de gente graúda do pedaço e da política locais, segundo as quais um ex-prefeito, gente boa pra caramba e do PT, foi despachado desta para melhor em razão de ter metido o bedelho em esquemas de arrecadação de dinheiro de empresas de transporte coletivo para campanhas eleitorais. O próprio homem da mala (ou do bornal, na ágil atualização de Elio Gaspari) seria importante figura da cúpula do poder, vejam só.

Na certa, o CRM ao qual deve obrigações este delirante médico não só o chamaria às falas como voaria sobre suas carótidas, rasgando-lhe a carteirinha e, de quebra, recomendando expressamente sua pronta internação num Pinel da vida.

‘Aspirantes a tiranetes’

A diferença entre as duas fictícias histórias reside exatamente em suas respectivas conseqüências. A do jornalista não daria absolutamente em nada, em termos punitivos; mesmo que desse, não passaria de um processo do tipo ao qual já estão acostumados os colegas mais calejados, com grandes chances de resultar em absolvição.

Já a do médico, sai de baixo.

E ainda tem gente em Brasília, sindicalizada e doutrinada pelo partido que dá as cartas na Corte, que ainda insiste em comparar um futuro CFJ com o CFM e suas singulares estaduais, os CRMs. Ou com o CREA e a OAB.

Bastaria que a segunda história fosse escrita em papel que não um receituário médico e assinada por um jornalista que passaria legal. Se despertaria interesse entre os leitores seria problema de quem escreveu e de quem lhe deu espaço para tanto.

Da mesma forma, as fogueiras da Inquisição ressuscitariam nas carnes de um médico que ousasse espalhar confidências, obtidas em consultório, de um seu cliente, altíssima patente do Ministério das Relações Exteriores, segundo a qual este ainda se dá ao uso do papel-carbono e do mata-borrão. Para completar, o homem passou a patrulhar os livros lidos pelos senhores embaixadores e a bolar uma Lei do Audiovisual nitidamente inspirada nas cartilhas de Josef Stálin. Nas horas de sono, sonha em ver um dia os Estados Unidos inteiros em cinzas, fumegando igual às torres gêmeas.

Seria quebra de sigilo profissional, daria um galho danado para o doutor. No entanto, coisas assim, ou muito parecidas, já foram impressas nos jornais, a atribuídas à mesma altíssima patente do Ministério das Relações Exteriores.

Gozado, não é? Ou confuso?

Prefiro assinar embaixo de João Ubaldo Ribeiro (um jornalista, para os caras-pálidas mais desavisados), que tascou no Globo de 15/8:

‘Eu não vou calar a boca, ainda mais diante de um Estado que não só toma essa iniciativa como preparou, quase à sorrelfa, um plano cultural solertemente dirigista e assustadoramente policialesco. Mas que não há de prosperar. Porque, como mostrou a imprensa, nesse e em tantos outros casos, temos mente, boca e voz livres, e não foram um presente do Estado. O direito a elas é parte de nossa essência e nenhum conjunto de aspirantes a tiranetes o vai cassar’.

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Médico e jornalista