Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

De que happy few falamos aqui?

‘A tale told by a fool…’, agora, pelo professor Deonísio… De um lado, é verdade que a mídia, como sempre faz e fez no mundo do capital, inventou alguma coisa, no Brasil-2005, e pôs-se a repeti-la, até converter a coisa em idéia, primeiro; em assunto, depois; e, por fim, em verdade. Dessa vez, a coisa teria sido, para o professor Deonísio, que os intelectuais brasileiros estariam calados; nessa oposição, para o professor Deonísio, os intelectuais brasileiros não estariam calados.

Bom… não é por alguns (e sempre os mesmos) professores-doutores brasileiros falarem pelos seus-deles cotovelos que, ipso facto, passaria a ser verdade indiscutível que todos os intelectuais brasileiros estejam falando muito, hoje. É verdade auto-evidente que, no Brasil 2005, alguns intelectuais têm sempre muita facilidade para falar a muitos brasileiros; e que outros intelectuais jamais conseguem falar a muitos brasileiros, pelos meios de comunicação de massa.

Por exemplo: FHC fala praticamente todos os dias; e, não bastasse, esse ex-sociólogo, e atual rei da palestragem & michê, ainda assina uma coluna fixa, mensal, religiosamente publicada em espaço nobre de praticamente todos os jornais brasileiros, desde o primeiro dia do governo do presidente Lula. Parei de contar quando cheguei à espantosa cifra de 72 jornais, de capitais e grandes cidades, que republicam a palestragem & michê de FHC, no primeiro domingo de cada mês.

Há dois meses, FHC falou sobre ‘crise moral’. Naquele mês, todos os colunistas dos jornais paulistas falaram de ‘ética’… como se fosse tudo a mesma coisa: (i) alguma crise moral fajuta, inventada (com autor, data e hora determinadas, da invenção e da primeira publicação) e (ii) a exigência absoluta de que haja jornalismo & política & jornalismo político & cientistas sociais & eternos candidatos, todos, ético-democratizatórios, no Brasil, e sempre.

Resolveram e pronto

O intelectual professô-dotô partidário inventou & escreveu; a mídia ‘repercutiu’. Para agosto, foi o conversê segundo o qual ‘Lula não governa’. E dê-lhe, a partir daí, colunas jornalísticas sobre o ‘imobilismo do governo’. Agora, é esperar o que virá, de palestragens & michê de FHC, no próximo domingo, primeiro domingo de setembro.

Se era para FHC falar sozinho, ok. Ele reina, sim, discursando sem contra-discurso. Mas se era para haver alguma discussão social de democratização da sociedade brasileira, faltaram, nesse eterno conversê intra-tucanaria uspeana que se chama ‘jornalismo’ no Brasil-2005, os discursos dos intelectuais, por exemplo, marxistas.

Onde, aliás, publicam, os brilhantes intelectuais marxistas que o Brasil sempre teve e tem? Cadê o discurso didático-democratizatório, por exemplo, de Roberto Schwarz (para ficarmos só nesse)? Onde, aliás, se travam as discussões políticas entre as várias correntes do marxismo brasileiro? Sabe-se lá! Essas discussões nunca se travam, no Brasil, pelos órgãos da chamada grande mídia.

Um Fernando Rodrigues qualquer resolve que o marxismo acabou no planeta… e o marxismo fica dado por oficialmente morto?! Um Clóvis Rossi qualquer ‘exige’ cadafalso, fuzilamento sem julgamento, linchamento e fogaréu, feito um neoprefeito da sempre mesma Salém… e pronto?!

Onde se podem ler respostas sociais a esses discursos pervertidos e desdemocratizatórios?

Cadê o contraditório?

Onde estão publicados os argumentos que ajudem os grandes públicos-leitores a interpretar, com algum equilíbrio, a situação de brabíssima disputa política em que o Brasil se debate hoje?! Que ‘grande mídia’, aliás, ‘noticiou’ essa disputa política, brabíssima, de fundo, histórica, de raiz, no Brasil, há séculos, que explode hoje, como jamais antes explodiu, em 500 anos?

Não basta, portanto, para escrever sobre intelectuais e mídia comercial, no Brasil 2005, aferir a milimetragem do que publiquem os Olavos de Carvalho ou os FHCs, de um lado; e, sabe-se lá de que lado, os Franciscos de Oliveira.

Os brasileiros leitores de jornal não sabem ler e interpretar e criticar discursos políticos, por pelo menos duas razões, qualquer uma das quais basta, sozinha, para explicar quase toda a nossa tragédia nacional brasileira, hoje, de já não termos nenhuma opinião pública democrática.

Primeiro, não temos opinião pública democrática porque nenhum dos chamados ‘meios de comunicação de massa’ ocupa-se em dar voz, nas discussões pelos jornais, por exemplo, a intelectuais como João Pedro Stédile (para ficarmos só nesse). ‘Economista’, para a mídia comercial brasileira, em 2005, ainda é o Mendonça de Barros; ‘sociólogo’ é o professor Bolívar Lamounier; ‘filósofo’, o José Arthur Gianotti; ‘historiador’, o Bóris Fausto; ‘cientista política’, a Lucia Hippolito; ‘jornalista’, a Eliane Cantanhêde ou a Lillian Witte Fibe ou o William Waack. Ora bolas! Esses são propagandistas tucano-paulista-uspeanos!

Cadê, nesse diálogo ‘midiático’, o contraditório? Quero dizer: cadê as manchetes que implantem o contraditório também nas discussões sociais? Que ensinem que, sem contraditório, não há discussão social democrática e pró-democratização? Cadê ‘o outro lado’, além de um falso ‘outro lado’ de pé de página, escondido, ocultado, mascarado, mais fraco e falsificado que nota de 3 dólares?

E assim tem sido

A segunda razão pela qual não temos opinião pública democrática talvez se explique pela primeira; ou, talvez, seja, ela, a explicação para a primeira: assim como não temos imprensa de democratização, tampouco temos universidade democrática, democratizatória, para a democratização e a redemocratização da opinião pública, no Brasil pós-golpe de 64.

O que temos, no Brasil, ainda é uma universidade autista, autocentrada, auto-referente. Uma universidade na qual o importante instituto da autonomia da universidade existe, apenas, para permitir e legalizar e legitimar que os bodes continuem, para sempre, a tomar conta da horta. Com mais de 500 anos de história oficial, o Brasil ainda não conseguiu impor a nação à universidade.

Ainda vivemos aqui como se a universidade tivesse algum direito divino de ignorar a nação real e de inventar outra nação, fictícia, forjada, uma outra nação… que lhe pareça, à universidade que temos, mais… correta? Mais certinha? Mais ‘natural’? Mais ‘facinha’ de explicar ou de fingir que explica?

Com essas duas desgraças, nenhuma nação precisa de inimigos: a própria nação destrói-se, mutila-se, cala-se a si mesma, amordaça-se, esteriliza-se… e elege candidatos que se apresentem como ‘professô-dotô’. Qualquer candidato. Profissional da palestragem & michê, que seja. Se é bacharel, o salafrário é o candidato da mídia brasileira, contra qualquer candidato não-bacharel. E assim tem sido, há séculos. Bom… Jesus Cristo, que foi quem foi, ‘nunca teve biblioteca’ (só pra mostrar que, querendo, acham-se e se podem construir todas as manchetes, a favor de qualquer coisa).

Por que o desprezo?

Eu, esperneio sempre. Por exemplo: é besteira o professor Deonísio assestar contra o Brasil que temos – e apenas porque não somos alguma Bélgica, alguma França ‘ilustrada’ –, o ‘argumento do happy few’; e sem explicar-se.

Assim como ‘a crise ética’ do Brasil-2005 é besteira inventada pela tucanaria uspeana, falcatrua assinada e datada, também é falcatrua esse negócio de falar de happy few sem nada explicar. Nenhuma isenção é inocente. Ninguém consegue escrever de fora do mundo político. E é sempre tolice tentar fazê-lo.

Pra falar de happy few, por exemplo, tem de se responsabilizar pelo que escreve, escolher um lado e explicar-se, nesse Brasil em que a universidade pós-64 – hoje travestida nos galardões acadêmicos da tucanaria – já analfabetizou, para as discussões políticas, todos os públicos-leitores (e eleitores).

Afinal, de que happy few fala, aqui, o professor Deonísio?

Fala, talvez, dos ‘We few, we happy few, we band of brothers’, do Henrique IV shakespeareano, no discurso em que aquele rei adolescente, apaixonado, convocou seu punhado de ingleses maltrapilhos para derrotarem o exército francês, e todos juntos eles venceram a guerra deles? Nesse caso… por que a ironia? Por que o desprezo por esses heróicos happy few?!

Não muda nada

Que ‘pecado’ haveria em alguns poucos, movidos pela coragem e pelo desejo histórico, não por algum falso democratismo de ocasião e de grupelhos, mobilizarem as massas, no gogó, para derrotarem os mais letrados, os mais ricos e os mais poderosos? Que espécie de direito divino, afinal, viria automaticamente, com o diploma de doutor?!

Em Henrique IV, de Shakespeare, o vencedor é o rei mais civilizacional, o menos bárbaro, o mais nacionalmente consciente e apaixonado, e um exército de happy few, que derrotam legiões de franceses imperiais, imperialistas, invasores. É teatro, ok. Mas é teatro pró-civilização de quem o assista, mesmo que sejam públicos analfabetos.

Em Henrique IV, os happy few bem podem ser identificados com os intelectuais que vão à luta, fazem discursos de convocação e mobilizam legiões para a luta por um mundo melhor para as maiorias. Qual é?! De onde o senhor tirou que todos os few são sempre ‘do mal’ ou, sabe-se lá, são sempre ‘do bem’?

E a coisa não muda nada, na leviandade das citações e referências metidas a ‘letradas’, se se supuser que são outros happy few, daqueles aos quais Stendhal, numa dedicatória-enigma, dedicou o romance Lucien Leuwen. Esses happy few de Stendhal, tampouco, são alguma espécie de elite salafrária, golpista, do mal, como são, hoje, nossas elites acadêmicas e ‘jornalísticas’, nesse Brasil pós-décadas malditas (várias, aliás, de 64 à tucanaria uspeana de hoje).

Do jeito que dê

Também aqui os happy few podem ter sido pensados como elites civilizacionais – os poucos felizes capazes de ver no romance de Stendhal o que o romance aspirou a ser: uma denúncia radical de todas as hipocrisias burguesas, que sempre condenaram à masmorra e à morte todos os sonhos e sonhadores não-burgueses de sonhos não-burgueses; todas as lutas e os lutadores de lutas não-burguesas.

Também aqui os happy few podem ser identificados aos intelectuais de esquerda, engajados, sim, na luta política; e ainda hoje, desgraçadamente para o Brasil, candidatos natos aos cadafalsos dos Clóvis Rossis e aos prendo-mato&arrebento dos Fernandos Rodrigues e à execração pública nos editoriais do Estadão e da Veja.

Hoje, portanto, cadê, entre os intelectuais brasileiros ‘de academia’, os intelectuais que ajudem os brasileiros a defender o próprio voto e o presidente Lula que nós – os brasileiros sem-jornal, sem-discurso, sem-voz, sem-microfone, sem-televisão e sem-universidade – elegemos em eleições democráticas? Esses são os intelectuais que, hoje, no Brasil, nos fazem muita falta, sim, aos brasileiros pobres.

É completamente despropositado tentar ‘demonstrar’ que nossos intelectuais estão satisfatoriamente ativos, são uótimos, e dão e sobram, hoje, para o Brasil. Nem nossos intelectuais estão satisfatoriamente ativos, nem são uótimos, nem dão e sobram, hoje, para o Brasil. Das duas uma: ou (i) os intelectuais de que o Brasil precisa para redemocratizar as discussões sociais não existem mesmo, mais; ou, então, (ii) eles estão na encolha.

Se não existem mesmo, mais, temos de reinventá-los; e, nesse caso, até lá, temos de substituí-los, ocupar-lhes o lugar, pôr a boca no mundo, nós mesmos, do jeito que dê; nós, os não-doutores, os brasileiros semi-analfabetizados nas escolas e universidades pós-64 e da tucanaria.

Difícil saber

Ou, então, esses intelectuais que fazem falta ao Brasil estão escondidos, acovardados, mortos de medo de perderem os empregos e os espaços nas panelas de nossas universidades acanalhadas (públicas e acanalhadas, e privadas e acanalhadas; os professores de uma, hoje, são os professores da outra; a privatização socializou o acanalhamento, no que diga respeito a universidades, no Brasil tucano). Nesse caso, é preciso denunciar todos os acanalhamentos de todos os nossos letrados.

Pra ver se acordamos o que ainda haja de politicamente consistente, nos letrados que sobraram, ao Brasil. Pra ver se reconstruímos nossos intelectuais públicos e nossos intelectuais democráticos. De intelectuais que se quiseram ‘isentos’, ‘neutros’, ‘superiores’ ao mundo real… o inferno está cheio.

Lá, provavelmente, dantescamente, aqueles letrados autistas continuam a ser ameaçados pelas massas que eles não ajudaram a civilizar; e lá continuam, condenados a sempre tremer de medo das mesmas massas. Tentando pôr grades nas janelas do inferno; pôr vidros pretos nos carros do inferno; prender os filhos nos porões do inferno… pra que não sejam seqüestrados… do inferno!

Quem pense que as universidades brasileiras públicas, hoje, sejam ‘ghetos petistas’, das três uma: escreve sobre ghetos sem saber nada de ghetos; escreve sobre petistas sem saber nada de petistas; ou escreve sobre universidades públicas brasileiras, em 2005, sem saber nada de universidades públicas brasileiras em 2005. Difícil, nesse caso, é saber por que alguém que não saiba nada dessas três coisas, a ponto de escrever tantas tolices sobre as três, ao mesmo tempo, no mesmo parágrafo, ainda tenha espaço tão nobre para escrever sempre.

A luta continua.

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Lingüista e especialista em Propaganda Política de Democratização