Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

De quem foi a culpa?

A morte da jovem Eloá foi uma morte anunciada. E de todos os culpados, o menor é o autor do tiro. O maior, no meu ver, é o da imprensa.

‘Nós poderíamos ter dado o tiro de comprometimento. Mas era um garoto de 22 anos, sem antecedentes criminais e uma crise amorosa. Se nos tivéssemos atingido com um tiro de comprometimento, fatalmente estariam questionando por que o Gate não negociou mais, por que deram um tiro em um jovem de 22 anos de idade em uma crise amorosa, fazendo algo em determinado momento de que se arrependeria para o resto da vida’, afirmou o coronel. Quem mais, senão a mídia, os articulistas, os formadores de opinião faria isto por anos a fio?

Criou-se na mídia, não de hoje, não de agora, mas por décadas, a pressão em cima da polícia para ter um comportamento inerme e vacilante frente a este tipo de situação. A preterição da vida das vítimas, colocadas como meros objetos no meio das negociações. O agressor, o assaltante, o malfeitor, o maluco, o louco varrido, seja lá qual situação ocorre em cada momento, passou a ser visto e vendido pela mídia como tendo igual valor e sentido, como vítima potencial da sociedade.

Soluções mágicas

Quem mais tem o poder de ‘formação de opinião’ do que a mídia? Que vende a religião, o horóscopo, o brazilian way of life, o desarmamento, a não reação, senão ela? Não como o que realmente é o caso trágico: uma pessoa que está colocando vidas inocentes em perigo real e imediato e em situações incontroláveis. Tese colocada em prática pelo ex-secretário de segurança do PT no Rio Grande do Sul, José Paulo Bisol, em que o policial frente a um meliante com arma em punho, deveria ‘avisar’ que ia atirar, depois atirar para cima, para só depois poder efetuar um disparo em legítima defesa, sua ou de terceiros. (Tudo ouvido pelos cidadãos estarrecidos pelas inversões de valores levados aos órgãos do poder.)

Se a negociação leva a maior sobrevivência, mas centrada na vida dos agressores, não faz o mínimo sentido tirar todos os direitos das vítimas, que devem ser a prioridade e todos os esforços exercidos para garantir-lhes o menor sofrimento e por tempo mínimo necessário. E ainda mais a preservação total da vida.

Vê-se claramente o medo que as autoridades, em todos os últimos casos, possuem da imprensa e da sua condenação sem perdão. Façam o que fizerem, serão sempre condenados por idéias fantasiosas, sempre possíveis de traçar na nossa mente por soluções mágicas. Mas a verdade é uma: a vida das vítimas passou a ser totalmente relativizada e desconsiderada num discurso midiático de que todos devem ser igualmente preservados. Coisa impossível de realizar.

‘Tudo’ foi em direção contrária

E que, antes de tudo, é dever do Estado preservar os direitos constitucionais totais das vítimas: ‘Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante’; ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária. São protegidas a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. A casa é abrigo inviolável do indivíduo; ninguém pode nela penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. O direito humano de ir e vir é inviolável, pois ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Jamais pode existir alguma mínima exceção para ser praticados por delinqüentes, agressores, maníacos ou perturbados.

‘A amiga contou que durante as brigas ele batia na ex-namorada’, contou o coronel Eduardo José Félix.

Em que pese o crime de seqüestro e ameaça a mão armada não ser um crime (como no Brasil nenhum será, por mais hediondo, enorme, dantesco, continuado) cuja pena seja a morte, é evidente que quem saca uma arma contra inocentes (um revólver e um saco de muita munição) coloca a sua vida em risco para ser detido por qualquer meio eficaz. E a negociação não é este meio.

‘Fizemos de tudo para preservar a vida dos três’, disse neste sábado o coronel Eduardo Félix, responsável pelo Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais). Ora, o resultado mostra que o ‘tudo’ sempre foi em direção contrária à proteção das vítimas.

Briga de namorados

‘Estamos aqui para apoiar a polícia e acompanhar a negociação. Nós queremos preservar a vida humana e por isso o procurador determinou a minha presença aqui’, afirmou promotor de Justiça Augusto Eduardo Rossini, que foi enviado pelo procurador-geral de Justiça. A vida humana a ser preservada, no caso, era apenas a do assassino.

‘Polícia diz que negociação foi longa porque rapaz queria matar a refém e cometer suicídio’, se desculpa o coronel Félix. Coisa que ele logrou total êxito com esta ajuda da autoridade. Afinal, não foi para isto que o Gate deveria estar lá, evitar que ele acabasse fazendo o que ele sempre almejou, prometeu, se propôs?

A professora Geísa Firmo Gonçalves, torturada por horas na frente da televisão e de autoridades e que morreu no seqüestro do ônibus da linha 174, no Jardim Botânico, no Rio, foi outra cidadã colocada, junto com os demais torturados no ônibus por horas, em segundo lugar para ser realizada negociações. Sandro do Nascimento, armado e supostamente drogado, só não matou mais porque não quis, pois não houve nenhuma ação programada para tentar impedi-lo.

De que adiantou a polícia ser chamada a não ser preservar a vida do agressor? Todo o seu empenho foi este o tempo todo, tratando o assunto como briga de namorados (com um revólver e farta munição na mão de um maníaco). Qual o maior fator externo de morte em mulheres no país? O crime passional justamente provocado por maridos, namorados, amantes e ex. Para que foram criadas as delegacias da mulher senão por este fato amiúde, corriqueiro, vergonhoso?

Sério e responsável

‘Foi um erro crasso. Contraria todas as normas relativas a esse tipo de ação das organizações de operações especiais. Você trabalha com alguns princípios. Negocia, mas algumas coisas são inegociáveis. A volta de uma pessoa que já foi liberada, e principalmente se tratando de uma menina de 15 anos, isso é inegociável’, opina o especialista em segurança pública Jorge da Silva, 65, coronel da reserva da Polícia Militar do Rio e ex-secretário de Direitos Humanos daquele Estado. Mas se entendeu que seria importante para salvar a vida apenas… do maníaco.

Mas não estão no mesmo peso e sentido quando a polícia podendo acabar com a ameaça real, imediata, permanente de a vítima vir a ser eliminada, deixa de aproveitar a oportunidade ocorrida para manter a mesma vítima de novo, por mais tempo, passível de ser torturada, ferida ou suprimida, como neste caso? Não se trata também de uma ‘devolução’ por omissão do refém nas mãos do assassino em potencial? No fundo, se passa todo o poder para as mãos do agressor. Apenas dele, e somente dele, da sua boa vontade, da sua volta a um estado racional, ficará a disposição à vida das vítimas sempre.

O negociador, comandante do Gate, capitão Adriano Giovanini, responde a Lindembergue Alves: ‘Você é responsável por essas vidas. Estamos te estendendo a mão.’

Qual teria sido a reação da mídia se a polícia militar, que deveria acabar o mais rápido possível com o risco de vida a que estavam submetidas as inocentes e as demais condições desumanas a que estavam sendo submetidas por um perturbado em estado de irracionalidade? Um tiro certeiro e fatal pondo fim a qualquer outro risco para as demais pessoas inocentes, moradores, negociadores e transeuntes? Não temos dúvidas de que passariam igualmente semanas sendo condenados e perseguidos pela mídia para responder por que não conseguiram a perfeição total. Ela deve ser um ideal. Mas jamais o menor risco no que resultou na tragédia do ônibus 174 e a morte e lesão das meninas agora. É o risco que todos os que pegam numa arma devem ter em mente.

Quanto ao objetivo do coronel, ‘o Gate é extremamente sério e responsável por preservar a vida’. Será que os pais de Eloá Pimentel, 15, e de Nayara Rodrigues da Silva, 15, concordam?

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Médico, Porto Alegre, RS