Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

De volta ao caso PC Farias

Poucas coberturas extensivas e relativamente recentes, como a das mortes de Paulo César Farias e Suzana Marcolino, se prestam tanto ao aprendizado do jornalismo.


O ex-tesoureiro de Fernando Collor de Mello e sua namorada apareceram mortos numa casa de praia de Maceió em junho de 1996. Cada um recebeu um tiro. Mal os cadáveres foram encontrados, as autoridades alagoanas anunciaram o que teria ocorrido: Suzana matara PC e logo se suicidara. Uma equipe de peritos, coordenada pelo médico-legista Fortunato Badan Palhares, produziu um laudo que sustentou a conclusão do inquérito em 1996, a mesma antecipada no dia das mortes: homicídio seguido de suicídio.


Insatisfeito com a investigação, o Ministério Público Estadual quis um novo laudo. Em 1997, a segunda equipe de peritos duvidou do suicídio de Suzana. Em 1999, afirmou igualmente que ela não atirara em PC. Naquele ano, o inquérito policial concluiu que houve duplo homicídio, e não fora Suzana que assassinara PC. Nove pessoas foram indiciadas, inclusive o então deputado federal Augusto Farias, irmão de PC. O processo ainda corre em Alagoas, mas não houve julgamento de quatro réus pronunciados pela Justiça.


Debate aberto


Em 1999, integrei com os colegas Ari Cipola e Paulo Peixoto a equipe da Folha de S.Paulo que cobriu o caso. A investigação foi reaberta pelo Ministério Público de Alagoas depois que o jornal publicou em março quatro páginas com novidades, inclusive o inventário de PC. Mas o determinante para a reviravolta foram fotografias que, na primeira matéria, mostravam Suzana, mais baixa, ao lado do namorado. A altura dela fazia enorme diferença.


Considerando a trajetória da bala que a atingiu, Suzana precisaria ter 1,67 m para ter cometido suicídio, como definiu Palhares. Em 1997, o segundo laudo estimou a altura em aproximado 1,57 m. Com esse tamanho, ela não poderia ter se matado, concluiu-se. Palhares reagiu: a altura estava certa, ele medira o corpo. Se a altura estivesse errada, todo o laudo estaria errado, assegurou.


De acordo com Palhares e sua equipe, Suzana media 1,67 m; PC, com 1,63 m, seria menor. O segundo laudo não questionou a altura de PC. Porém seus autores bateram pé: Suzana era menor que o ex-tesoureiro e não teria se suicidado.


A Folha decidiu voltar no fim de 1998 à investigação jornalística sobre as mortes. Não havia compromisso com nenhuma das duas versões. Não se queria dar a razão a uma equipe ou outra. Depois de quase três meses de apuração, a reportagem foi publicada.


Havia algo curioso: superperitos discutiam sobre a altura de Suzana. O que jornalistas poderiam fazer? O que fizemos: com fotos, mostramos que um lado estava certo e o outro, errado. É por isso que a boa parte dos itens abaixo aborda a altura de Suzana. Não se trata de fetiche, mas de uma questão decisiva para se conhecer a verdade sobre o episódio.


Na terça-feira (31/5), o jornalista Joaquim de Carvalho falou sobre seu livro no Observatório da Imprensa na TV. Intitula-se Basta! Sensacionalismo e farsa na cobertura jornalística do assassinato de PC Farias (Editora A Girafa, São Paulo, 2004). Seu livro ataca com virulência os jornalistas que apuraram notícias que contradizem a versão de Badan Palhares. Em 1996, Carvalho antecipou com exclusividade o laudo coordenado pelo legista. Mais do que isso: abraçou suas teses.


Na TV, foi além: disse que o jornalista acima assinado publicou ‘informação mentirosa’ em 1999. Em 19 anos de profissão, já errei muito. Mas nunca menti.


Este texto trata do Caso PC, das declarações de Carvalho e do seu livro. Detenho-me no que foi dito na TV, na discussão sobre a altura de Suzana, em jornalismo e jornalistas. Deixo outros aspectos, muitos relevantes, para uma outra vez.


Carvalho se engana quando trata por jornalista alguém que, segundo ele, publica informação mentirosa. Quem publica informação mentirosa é mentiroso. Jornalista mentiroso é uma contradição em termos. Ou se é jornalista ou se é mentiroso. Espero que as considerações contribuam para o debate sobre o jornalismo que foi feito no Caso PC.


Sublinho que falo exclusivamente em meu nome, e não no de outros colegas ou da Folha. Como roteiro padrão, por vezes não cumprido, cito o que Joaquim de Carvalho disse, o que houve de fato e apresento algumas indagações. Boa leitura.


*** 


1. Afirmação de Joaquim de Carvalho (OI na TV, 31/05/2005): ‘O Mário Magalhães reabriu o caso com uma fotografia. Ele dizia que a Suzana era maior [sic] do que o PC. Aquilo abalou, na época, porque a imagem tem um efeito muito poderoso’. Carvalho acrescentou: ‘Ela [Suzana] é mais alta que o PC e bem mais alta do que as outras pessoas [conforme imagens que Carvalho diz ter visto]. Isso não foi divulgado na época. Então eu diria que foi o seguinte: o caso foi reaberto com uma informação, na minha opinião, errada, mentirosa’.


Fato: Não é verdade que a Folha tenha publicado apenas uma foto.


No dia 24/03/1999 (Ed. SP/DF), publicou uma (Suzana ao lado de PC) na pág. 1-1 e seis na pág. 1-6 (três de Suzana com PC e três de detalhes dos pés dela, com saltos altíssimos ou descalça, na ponta dos pés, para parecer maior).


Em 25/03/1999, publicou nova foto de Suzana com PC (pág. 1-6, Ed. Nacional).


Em 26/03/1999, nova foto de PC com Suzana, ele de pés descalços (pág. 1-6, Ed. Nacional) e mais alto. Essa imagem esclareceu, negando-a, a afirmação do delegado Cícero Torres (presidiu o inquérito em 1996), que dissera na véspera: PC pareceria maior porque usava palmilha.


Em 06/05/1999, mais duas fotos (pág. 1-9, Ed. Nacional): em uma fotografia, Suzana está ao lado da irmã Ana Luiza. Ana Luiza aparece maior. Ao lado, foto de Suzana sozinha, no mesmo passeio (na Itália), na qual se vêem seus saltos altos sobre a neve.


Ao contrário do que afirmou Carvalho, este jornalista não ‘dizia que a Suzana era maior do que o PC’. Diz o contrário: que era menor.


Pergunta: por que Carvalho afirmou que a Folha só publicou uma foto quando foram, apenas de Suzana ao lado de PC, seis imagens diferentes? De um para seis há aumento de 500%. De quem é a ‘informação mentirosa’?


2.Afirmação: segundo Carvalho, a Folha buscou ou contou com um parecer ou laudo para publicar ‘a’ foto (que, como demonstrado, eram várias). Carvalho disse (OI na TV, 31/05/2005): ‘Para legitimar essa fotografia, ele [Mário Magalhães] contou com um parecer. Que depois se transformou em laudo’.


Fato: seria legítimo encomendar uma avaliação de perito, como fazem jornais, revistas e emissoras de TV. Como as imagens eram muito claras, a Folha nunca pediu ‘parecer’ ou ‘laudo’ sobre as fotos de Suzana com PC e Ana Luiza.


Pergunta: por que Carvalho fez uma afirmação que não procede? Basta consultar a coleção do jornal na internet ou em papel para conferir.


3. Afirmação: com a versão de que a Folha publicou apenas uma foto e pediu um ‘parecer’, Carvalho sustenta que o autor do ‘laudo’ não teria qualificação para trabalhar com imagens. Carvalho (OI na TV, 31/05/2005): ‘O parecer que foi dado naquela ocasião, o laudo, foi feito por alguém que é especialista em fonética. Não é especialista em imagem. Mas ganhou grande destaque por legitimar uma fotografia que embasa uma informação que, eu repito, é falsa’.


Fato: o processo do Caso PC contém um laudo, coordenado pelo perito Ricardo Molina de Figueiredo, sobre dez fotografias. Não foi encomendado pela Folha, mas pelo Ministério Público de Alagoas. A única participação do jornal foi a seguinte: formalmente, o Ministério Público pediu as fotos já publicadas e outras que não houvessem saído por falta de espaço. Curiosidade: não foi a Folha que publicou o laudo em primeira mão, embora as fotos fossem frutos da sua apuração; fomos furados.


O laudo de Molina afirma que Suzana media de 1,53 m a 1,57 m. Molina coordenou o Laboratório de Fonética Forense e Processamento de Imagens da Unicamp. Ou seja: trabalhava com sons e imagens, como diz o nome do laboratório. Ganhou projeção maior como foneticista, mas também assinou laudos de imagens como o que mostrou, no julgamento do massacre de Eldorado do Carajás, que já havia um integrante do MST caído, imóvel, quando os sem-terra atiraram (ou seja, a PM atirara primeiro). Também fez laudos sobre imagens do tiro que feriu uma estudante na Universidade Estácio de Sá, sobre os fogos no réveillon de Copacabana que provocaram ferimentos etc.


Pergunta: por que, em vez de abordar o conteúdo do laudo de Molina, Carvalho tenta desqualificá-lo dizendo que é apenas um especialista em fonética? Por que Carvalho fala em ‘uma fotografia’ quando Molina analisou dez, como se pode ler nos autos e foi narrado em jornal (Folha, 26/05/1999, pág. 1-13, Ed. Nacional)? De quem são as ‘informações falsas’?


4. Afirmação: ao dizer que o laudo de Molina é apenas sobre uma foto, Carvalho dá a entender que o perito analisou exclusivamente imagem de Suzana com PC (OI na TV, 31/05/2005).


Fato: das dez fotos, a maioria não é de Suzana com PC, mas dela com a irmã, Ana Luiza Marcolino. Foram cedidas pela Folha (após requisição formal do Ministério Público, repito), que publicara duas delas em 6/05/1999 (pág. 1-9, Ed. Nacional). Qual a diferença entre as fotos? Desde março de 1999, Palhares afirmava que poderia provar a altura de Suzana em imagens nas quais ela aparecesse ao lado de pessoas vivas.


Foi isso o que a Folha fez: obteve fotos de Suzana ao lado da irmã. Levamos Ana Luiza para ser medida por um médico. Sua altura é de 1,63 m (ela pensava ter 1,67 m). Ana Luiza aparece bem maior do que Suzana nas fotografias. O irmão, desde sempre considerado o ‘mais alto da família’, tem 1,65 m, conforme medição também promovida pela Folha.


Pergunta: por que Carvalho disse que o laudo ‘legitima’ uma foto quando a análise se fundamenta em dez (900% a mais)? Por que, em questão essencial no caso, ele não publicou parte dessas fotos em seu livro? Por que não publicou nenhuma foto de Suzana ao lado de PC? Por que não contou que o laudo de Molina usa fotos de Suzana ao lado de pessoa viva e que foi medida?


5. Afirmação: em seu livro (pág. 180), Carvalho afirma que Ana Luiza Marcolino disse em programa de TV que media 1,67 m (como ela pensava medir). Continua: ‘(…) Obtive algumas fotos em que as duas aparecem juntas. Pelo menos nessas imagens, elas parecem ter a mesma altura’.


Fato: Ana Luiza tem 1,63 m de altura. Na única foto de ambas quase lado a lado publicada no livro (quinta página do caderno de imagens), elas parecem estar à mesma altura. Nitidamente, Ana Luiza está de sapato ‘sem salto’ e Suzana com os habituais saltos altíssimos.


Pergunta: por que, para esclarecer sua dúvida, Carvalho não tentou medir, com independência, a irmã de Suzana? Se tentou e não conseguiu, por que sonegou a informação sobre a medição promovida pela Folha?


6.Detalhe de apuração e checagem de informações: em seu livro (págs. 133 e 180), Carvalho afirma três vezes que a irmã de Suzana se chama Ana Carolina. Seu nome é Ana Luiza.


7.Afirmação: ‘A Suzana tinha 1,67 m, como eu pude ver em vídeos, inclusive, de movimento, a Suzana está em movimento ao lado do PC’ (OI na TV, 31/05/2005).


Fato: no livro, com 231 páginas, não consta uma só imagem de vídeos tão relevantes.


8.Afirmação: segundo Carvalho, ‘o fato é: a Suzana não tinha aquela medida mostrada pelas fotografias’.


Fato: Carvalho reconhece, assim, que as fotografias mostravam ‘aquela medida’, negada por ele e Badan Palhares.


9. Afirmação: no OI na TV (31/05/2005), o jornalista Frederico Vasconcellos (repórter especial da Folha) perguntou a Carvalho: ‘Eu gostaria de saber se o Joaquim, se ele tentou ouvir esses profissionais [jornalistas criticados por Carvalho em seu livro], e, se não tentou, por que tomou essa decisão’. Resposta de Carvalho: ‘No meu livro eu procurei me ater a aspectos factuais. Determinada informação foi publicada, eu não fiz juízo de valor sobre nenhum outro jornalista. (…) Não havia necessidade de ouvir, já que a informação que eles colocaram era pública. Eu não faço juízo de valor, eu não entro em motivação, eu não traço o perfil’.


Fato: Carvalho reconstituiu a saída do jornalista Mário Simas Filho da Veja (pág. 90). Escreveu: ‘André [Petry, editor] me contou a razão da saída. Mário Simas tinha entrevistado o criminalista Arnaldo Malheiros para uma reportagem e inverteu o raciocínio do criminalista. André tinha Malheiros entre as suas fontes e desconfiou do relato de Simas. Telefonou para o advogado e descobriu o erro a tempo de evitar a publicação. Segundo André, erros semelhantes tinham ocorrido outras vezes e foram impressos’.


A versão de Simas não aparece no livro.


Carvalho se refere a um episódio descrito pelo jornalista Lucas Figueiredo no livro Morcegos Negros (Editora Record, Rio de Janeiro, 2000). Hematomas foram vistos no corpo de Suzana durante o velório. ‘Esta cena [quando se olham os hematomas] não poderia ter acontecido tal como narrado [por Lucas Figueiredo]’, afirma Carvalho.


A versão de Lucas Figueiredo não aparece no livro.


Carvalho critica, em tons diversos, os jornalistas Paulo Henrique Amorim, Paulo Moreira Leite (então ‘redator-chefe’ da Veja, foi responsável por ‘precipitação’ editorial, segundo Carvalho), Mino Pedrosa (acusado de inventar a existência de um dossiê), Eliane Cantanhêde, Janio de Freitas e Fernando Rodrigues (publicou informações com base em relatos que seriam ‘farsa’, conforme Carvalho). Enumera o que considera erros da TV Globo, de O Globo, da IstoÉ e da Folha.


Não é publicada a versão de nenhum desses jornalistas ou órgãos de informação.


Pergunta: por que Carvalho disse que não ‘traça o perfil’ se há até capítulos cujos títulos são nomes de jornalistas? Por que não os ouviu?


10. Interessante: um fotógrafo descrito por Carvalho em seu livro quase como herói do jornalismo é Jean Manzon (pág. 46). Como sabe quem leu a biografia de David Nasser (Cobras Criadas, Luiz Maklouf de Carvalho, Editora Senac, São Pauo, 2001), Manzon foi um cascateiro, talvez ainda maior que o próprio Nasser, tremendo mentiroso, o que parecia impossível.


11. Afirmação: desde a pág. 13, Carvalho afirma que assistiu ao vídeo que registra a necropsia de PC e Suzana, coordenada por Badan Palhares. Nas págs. 115 e 116, descreve o procedimento, indicando que assistiu ao vídeo.


Fato: uma das principais questões relativas à altura de Suzana foi saber se Palhares a mediu ou não na necropsia. Ele assegura que sim. O legista diferenciava a chance que teve, de examinar o cadáver uma semana depois da morte, da demora de mais um ano para a equipe que assinou o segundo laudo desenterrar o corpo de Suzana, em condições bem piores. O segundo laudo projetou a altura de Suzana com base nos chamados ossos longos.


A dúvida surgira porque em seu laudo Palhares inicialmente não informara a altura de Suzana. A primeira fita que enviou com a gravação da necropsia dos dois cadáveres não tinha áudio, como registram documentos nos autos. A filmagem fora feita pela equipe de Palhares, que orientou o trabalho de cinegrafista e fotógrafa, ambos de Campinas. O legista usou um microfone preso à roupa, o que permite ouvir com nitidez suas palavras.


Em 1999, a Folha publicou uma descrição detalhada da necropsia (‘Badan não mediu Suzana, mostra vídeo’, 31/03/1999, pág. 1-6, Ed. Nacional). A gravação começa com a retirada da tampa do caixão. Em 1 hora, 59 minutos e 58 segundos, não se vê Suzana sendo medida. Ouve-se uma longa lista de checagem de procedimentos a serem cumpridos. Não se fala em medir a altura. Concluem-se os procedimentos, nada sobre altura.


Pergunta: por que Carvalho, tendo assistido ao vídeo, não informou no livro a versão de Palhares de que mediu a altura de Suzana? Por que não informou aos seus leitores se viu ou não o legista medindo o corpo?


12. Afirmação: Carvalho cita em seu livro (págs. 137 e 138) que o legista Daniel Muñoz, integrante da equipe que fez o segundo laudo, em 1997, ‘utilizou como referência [para projetar a altura de Suzana] uma escala conhecida como Tabela de Trotter e Gleser, ou seja, estimou a altura da moça a partir da medida dos ossos mais longos do corpo – fêmur e tíbia’. O procedimento, indireto, contrastaria com o de Palhares, que afirmava ter medido diretamente o corpo, uma semana após a morte.


Fato: em 1999, repetidamente Palhares condenou o método empregado pelos colegas que estimavam uma altura de Suzana bem menor do que a definida por ele. Disse que não se poderia empregar com brasileiros uma tabela destinada a outros povos.


Em 6/05/1999 (pág. 1-9, Ed. Nacional), a Folha publicou reportagem revelando que Palhares usava com sucesso duas tabelas semelhantes à adotada pelos colegas criticados. Em novembro de 1995, ele apresentara em um congresso na Flórida (6º Encontro Anual da Associação Internacional para a Identificação Craniofacial) um trabalho esmiuçando o sucesso do método. Baseara-se no estudo de quatro cadáveres.


O repórter fez o elementar: com base nas medidas (obtidas em necropsia) de ossos (até quatro diferentes) de Suzana, projetou a altura com o método aprovado e divulgado por Palhares.


O lide: ‘Se o legista Fortunato Antônio Badan Palhares utilizar o método que emprega e divulga internacionalmente para projetar com precisão a altura de uma pessoa a partir de seu cadáver, descobrirá que Suzana Marcolino, a namorada de Paulo César Farias assassinada com o tesoureiro de campanha de Fernando Collor em 1996, media 1,57 m ou 1,58 m, e não 1,67 m, como o próprio Badan estipulou no laudo oficial’.


Pergunta: por que Carvalho silenciou sobre a fórmula empregada por Palhares para projetar a altura a partir de ossos? Por que não contou que, de acordo com o método do legista, Suzana era mais baixa, e não mais alta que PC?


13. Afirmação: no livro, Carvalho perfila com o mesmo padrão os peritos com participação no Caso PC. Se alinhados com as posições de Palhares, ganham palavras simpáticas. Do contrário, se saem mal, como os legistas Daniel Munõz (co-autor do segundo laudo) e Nelson Massini (que se manifestou publicamente sobre as mortes). Palhares, na reprodução de um diálogo entre o então ministro Nélson Jobim e o senador Romeu Tuma, é tratado como ‘um dos professores que trabalharam no Caso Mengele’ (pág. 104). Muñoz, em outra passagem, é adjetivado pelo autor como ‘fundamentalista’.


Fato: o trabalho de Palhares no Caso Mengele foi produzir uma máscara facial depois que o cadáver havia sido sendo identificado por outros profissionais. Na coordenação da equipe que identificou o nazista estava Daniel Muñoz. Essa informação não consta do livro.


14. Afirmação: um dos peritos que integraram a segunda equipe se chama Domingos Tochetto. Carvalho assegura que assistiu ao vídeo do debate entre os peritos que atuaram no caso (pág. 13 do livro). Nesse debate, Tochetto foi dos que mais falou, apresentando testes que tinha realizado para estudar as mortes. Tochetto é descrito por Carvalho como ‘um importante nome da Medicina Legal’ (pág. 149). Poderia ser um engano. Não era: mais adiante, refere-se ao ‘legista Domingos Tochetto’ (pág. 158).


Fato: Domingos Tochetto cursou Biologia e Direito. Não fez Medicina, não é médico, portanto não pode ser legista. É considerado, sim, ‘um importante nome’ na balística forense.


Pergunta: como Carvalho, que narra ter assistido à gravação do tal debate (ocorrido no fórum de Maceió; eu estava presente), afirma e reafirma que é legista um perito que apresentou testes no campo da balística?


15. A despeito da questionável validade jurídica do referido debate, ele serviu para uma comissão de peritos emitir parecer sobre os laudos que se contradizem. O livro de Carvalho não conta quem integrou essa comissão nem qual foi a sua opinião. Considerou pouco importante ou não publicou porque as conclusões foram apostas às teses de Palhares?


16. Afirmação: Carvalho escreveu sobre ‘uma indústria de parecer no Brasil’. ‘Isso o meu livro conta, e isso é uma revelação importante.’ (OI na TV, 31/05/2005)


Fato: o mais famoso legista brasileiro de todos os tempos talvez seja Badan Palhares, mais até do que Harry Shibata, que falsificava laudos para encobrir crimes da ditadura militar. O hoje senador Romeu Tuma encomendava laudos a Shibata (documentos à disposição). Foi Tuma quem indicou Palhares para o Caso PC. Um dos crimes de maior repercussão no qual atuou Palhares foi o das mortes de PC e Suzana. Seu prestígio cresceu ainda mais, por algum tempo.


Pergunta: ao se deter na indústria dos pareceres, por que Carvalho calou sobre o impacto do episódio na vida profissional de Palhares? Teve mais ou menos encomendas de pareceres até que o laudo que ele coordenou começasse a ser questionado? Continuou cobrando os mesmos valores ou não? Inexiste aqui insinuação de dolo por qualquer parte. A pergunta é simples: se existe uma indústria de pareceres, e se Palhares saiu do Caso PC, em 1996, com projeção ainda maior, o que mudou em sua atividade profissional? Carvalho não considerou a questão importante? Se tentou, não conseguiu apurar? Nessa hipótese, não seria melhor compartilhar a informação com o leitor?


17. Afirmação: ‘Obtive cópias dos processos que envolveram a morte de PC, inclusive um por danos morais’, escreve Carvalho no livro (pág. 13).


Fato: Badan Palhares acionou numerosos jornalistas e pelo menos uma empresa jornalística na Justiça devido a textos ligados ao Caso PC. É um direito dele. Nenhuma das reportagens que os repórteres Ari Cipola, Paulo Peixoto e o signatário escreveram especificamente sobre as mortes de PC e Suzana foi motivo de ação. Este repórter assinou uma reportagem que motivou uma ação criminal (contra o jornalista) e uma cível (contra a Folha), ao relatar que o juiz responsável pelo processo em Alagoas fizera determinada afirmação sobre Palhares. O magistrado não negou. O legista colecionou insucessos em suas ações contra a Folha e seus jornalistas.


Pergunta: se Carvalho teve acesso a processos, por que não informou que houve ações contra jornalistas e empresas jornalísticas? Por que não descreveu o que os processos discutiam? O que sustentavam as partes? Como se manifestou a Justiça?


18. Fato: o jornalista Roberto Baía foi indiciado pela polícia de Alagoas sob suspeita de tentativa de suborno, em 1999, do delegado que presidiu o inquérito do Caso PC naquele ano (Folha, 1º/03/2000, pág. 1-10, Ed. Nacional). Baía era funcionário da Tribuna de Alagoas, então um jornal controlado pelos irmãos de PC. O delegado gravou duas conversas que Baía teve com ele. ‘Augusto [Farias, irmão de Paulo César, depois indiciado sob suspeita de co-autoria em duplo homicídio] não pode ser indiciado. Ele não pode perder o mandato, (porque) aí a família acaba’, disse Baía, conforme transcrição. O delegado perguntou quanto valeria um acordo de ‘bom relacionamento e amizade com os Farias’. Baía respondeu: ‘Você é quem diz’. Segundo o delegado, a proposta era para o então deputado Augusto Farias não ser indiciado. Augusto disse que manteria o funcionário, por ser de sua ‘confiança’. Baía negou que tivesse transmitido proposta de suborno.


Pergunta: por que Carvalho não faz referência a tal episódio? Para não expor um jornalista? Por corporativismo?


19. A pergunta acima não é gratuita. Quando a existência das fitas foi revelada (Folha, 25/08/1999, pág. 1-11, Ed. Nacional), Augusto Farias usou a mídia de Maceió para atacar com virulência o repórter Ari Cipola, então correspondente da Agência Folha na cidade. O Sindicato dos Jornalistas de Alagoas aprovou uma nota se solidarizando com Baía, que fora ao delegado dizer o que disse, afirmando falar em nome de Augusto Farias. O sindicato calou-se sobre a investida do deputado contra Cipola.


Pergunta: por que Carvalho não escreveu uma só palavra sobre os ataques de Augusto Farias a Ari Cipola? E sobre a inacreditável nota do sindicato?


20. Fato: por mais de um ano, a família Cipola teve de viver sob proteção da Polícia Federal e da Polícia Militar de Alagoas. O então ministro da Justiça, José Carlos Dias, recebeu Ari Cipola em Brasília e providenciou a proteção da PF. A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados apoiou o jornalista. Sua vida transformou-se em um inferno.


Pergunta: por que Carvalho silencia sobre isso? Em várias edições a Folha noticiou os fatos (o encontro de Cipola com o ministro saiu em 2/09/1999, pág. 1-9, Ed. Nacional). Não há relevância no episódio em um livro sobre a cobertura jornalística do Caso PC? Quem fez uma cobertura diferente da preconizada por Carvalho não merece nem referência sobre as dificuldades que enfrentou?


21. Afirmação: segundo Carvalho em seu livro, ‘em 2002, por decisão da Procuradoria Geral da República, o inquérito criminal que apurou a morte de PC foi arquivado’.


Fato: o então vice-procurador-geral da República, Haroldo Ferraz da Nóbrega, escreveu que Suzana matou PC e se suicidou. Contou com a aprovação do chefe, Geraldo Brindeiro, que antes se manifestara em sentido oposto. Como o Ministério Público não fez acusação, o STF jamais se pronunciou sobre o mérito do caso. Não decidiu se houve isso ou aquilo.


E o ‘inquérito criminal que apurou a morte de PC’ não foi arquivado em Alagoas. A polícia indiciou nove pessoas por duplo homicídio, o Ministério Público denunciou oito (não poderia se manifestar sobre um deputado federal, Augusto Farias), e a Justiça pronunciou quatro. Estes ainda não foram ao banco dos réus, nem há julgamento marcado.


O procurador que encaminhou o arquivamento do inquérito federal (que apurava responsabilidades de Augusto Farias) assumiu que não considerou nenhum dos fatos revelados nas investigações jornalísticas ou oficiais de 1999. No seu texto e em entrevista (Folha, 24/11/2002, pág. A-12, Ed. Nacional), ele sustentou que Suzana era maior que PC. Não analisou as fotos nem o laudo de Molina. Afirmou que Palhares mediu a altura de Suzana na necropsia, mas não assistiu ao vídeo que mostra o contrário. Condenou a tabela empregada no segundo laudo para projetar a altura de Suzana, mas ignorou que as tabelas propagandeadas por Palhares apontam altura igual, inferior a 1,60 m.


Perguntas: por que dizer que ‘o inquérito que apurou a morte de PC foi arquivado’ sem informar que se trata do processo federal e, em Alagoas, a despeito de pressões que Carvalho não descreve no livro, o processo não foi arquivado? Por que não informou que Brindeiro tornou-se conhecido como ‘engavetador-geral da República’? O Ministério Público está sempre certo? A Justiça está sempre certa? Fernando Collor, nunca condenado em instância final por atos na Presidência, não cometeu mesmo nenhum crime à frente do governo? Carvalho escreve que a Procuradoria Geral da República ‘tem relevância jurídica e social enorme, porque representa uma voz muitíssimo mais poderosa do que as das autoridades alagoanas’. E daí, terá razão por esse motivo?


Por que Carvalho não contou que, ao decidir pelo arquivamento, a procuradoria evitou que Augusto Farias pudesse ser julgado em Alagoas? Ele não se reelegera e perderia em semanas, portanto, o fórum privilegiado. A informação não era relevante?


22. Sobre investigação jornalística de fôlego: o trabalho descrito por Carvalho é, na essência, a sustentação de um laudo, no caso o da equipe coordenada por Badan Palhares. Mesmo que o laudo tivesse conclusões corretas, a divulgação do trabalho dos peritos não se trata do que se convencionou chamar de jornalismo investigativo. O Caso PC teve alguns bons momentos de jornalismo independente, produzido por numerosos jornalistas. Nesse caso, eles foram além do que diziam os peritos, de qualquer dos ‘lados’. Conseguiram, muitas vezes, esclarecer, na apuração, quem tinha razão. O jornalista não pode ter compromisso com peritos, mas apenas com a verdade.


23. Um dos maiores males do jornalismo contemporâneo é a arrogância. Ao revelar o laudo de Palhares (Veja, 7/08/1996, págs. 32 a 38), Joaquim de Carvalho decretou ‘Fim de Caso’ (título interno) e ‘Caso Encerrado’ (capa). O que era opinião de peritos virou verdade absoluta. Jornalista não é promotor nem juiz. Não pode decidir que um caso acabou ou não. Até hoje o Caso PC está na Justiça, os jornalistas se dedicam a debatê-lo e, de vez em quando, a cobri-lo. São os fatos que dizem se um caso está encerrado. E com os fatos – e a notícia – não se briga.


Em seu livro, Carvalho não reconhece nenhum pequeno erro, nenhum escorregão. Só vê falhas nos outros. No jornalismo, como na vida, erramos. Às vezes mais, às vezes menos. Sem reconhecer enganos, não evoluímos. Não fosse o livro, com o seu relato sobre fatos posteriores a agosto de 1996, poder-se-ia especular que até hoje o autor imagina que o caso foi encerrado há quase nove anos.


24. A volta ao Caso PC me proporcionou um prazer: saber que, no Observatório da Imprensa na TV, a colega Elvira Lobato falou, conjugando os verbos no presente, das qualidades do grande companheiro Ari Cipola. É isso aí, Elvira: o coração do Ari nos pregou uma peça em novembro do ano passado, quando ele morreu aos 42 anos de idade, em Maceió. Mas você tem razão: o Ari vai estar sempre ao lado de quem ama a velha e boa profissão de repórter.

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Jornalista, colunista da Folha de S. Paulo