Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Debate à beira da irracionalidade

A jornalista Leda Beck, há mais de dez anos instalada no Vale do Silício, Califórnia, de onde tem brindado os leitores com a crônica do novo mundo digital, observou recentemente que a imprensa brasileira ainda se move sobre velhos trilhos e segue interpretando o mundo do século 21 conforme os paradigmas do tempo da Guerra Fria. O velho fantasma do anticomunismo, invocado na recente carga contra o governo a propósito do projeto do Conselho Federal de Jornalismo foi, segundo Leda, uma demonstração do extremo e arraigado conservadorismo que caracteriza nossa mídia.

A premissa de que um sindicalista sem educação formal não pode ser presidente da República recende por trás de artigos, editoriais e escolhas de edição, assim como prevaleceu durante muito tempo, em algumas redações, a premissa segundo a qual o sociólogo Fernando Henrique Cardoso não tinha o pragmatismo necessário ao exercício do poder executivo. Já Fernando Collor, segundo a mesma premissa, tinha o perfil ideal para o cargo: filho e neto de políticos, empresário, jovem e esportista, era o tipo que personificava o sonho das nossas elites – era ao mesmo tempo conservador e ‘liberal’, uma espécie de centauro da mitologia burguesa.

Se pudessem mantê-lo sob controle, os senhores da mídia prefeririam ter como presidente o ex-sócio do falecido PC Farias. A rigor, a relação da mídia com o poder gira sempre em torno dessa ilusão de controle: enquanto Lula ou Fernando Henrique se comportam conforme os paradigmas do que os senhores da mídia entendem como o interesse nacional, eles são palatáveis; quando resvalam para fora dos trilhos conservadores, desaba sobre suas cabeças a ira dos senhores do Olimpo. Então, o debate escorre para a irracionalidade, como aconteceu com o projeto do CFJ.

Debate produtivo

Têm a mesma origem os erros que conduziram à condenação do ex-deputado Ibsen Pinheiro. Tipicamente, o tiroteio entre os personagens da recente lavação de roupa suja entre as revistas Veja e IstoÉ pouco informa os leitores sobre a inocência ou a culpabilidade do personagem. Tomados pela irracionalidade da qual nos fala Leda Beck, experientes jornalistas esquecem protocolos de seus cargos e desandam a espalhar sua bile em textos de péssima qualidade, deixando-nos a sensação de que se trata de um faroeste sem mocinho.

Assim funciona a irracionalidade: a partir de premissas que vivem nos ossos da imprensa, suspeitas transmudam-se rapidamente em sentenças condenatórias, projetos morrem antes da primeira leitura, especuladores bem relacionados se transformam em oráculos, oportunistas se arvoram em intérpretes do pensamento nacional. A moléstia se espalha com a rapidez da comunicação eletrônica, e beiramos enfim a circunstância de uma imprensa que, após haver escolhido a ligeireza como estratégia, perde aos poucos a capacidade de refletir a sociedade e ajudá-la a se pensar, e acaba por se tornar agente da irreflexão.

Ou alguém ainda acredita que é possível conduzir, a partir da mídia, um debate produtivo sobre algum dos temas importantes para a sociedade brasileira? Do projeto de parcerias público-privadas à conveniência de termos ou não um Banco Central autônomo, passando pelo prosaico evento em que o sambista resolve renegar a cerveja que patrocina sua carreira, em quase tudo, o que temos visto é a algaravia irracional que marcou o anúncio do projeto do CFJ.

Volta atrás

O fenômeno é mais ou menos recente. Há cerca de três anos, foi preciso que a Universidade da Califórnia promovesse um encontro em Berkeley para que alguns importantes personagens da nossa cena política pudessem sentar à mesma mesa e expor seus pontos de vista uns para os outros. Foi assim que puderam conversar, diante de platéia interessada e respeitosa, o então ministro José Serra, a ex-primeira-dama, antropóloga Ruth Cardoso, os sindicalistas Paulo Pereira da Silva, da Força Sindical, e Luiz Marinho, da CUT, a senadora Marina Silva e o ex-governador Christovam Buarque.

É possível que a irracionalidade também seja conseqüência da oferta desmesurada de informações, combinada com a falta de condições adequadas para a reflexão. Envolvido no turbilhão de informações, e convocado incessantemente a se manifestar socialmente sobre questões que apenas bordejou, o cidadão realimenta o ciclo com opiniões ligeiras sobre as quais não teve tempo de se demorar. No entanto, sempre convém lembrar o papel da imprensa como incentivadora do pensamento crítico e formuladora dos paradigmas que deveriam sinalizar o chamado interesse público.

Para quem, como nossa colega Leda Beck, vive o cotidiano de outra realidade, e apenas eventualmente mergulha na bizarra realidade brasileira, o choque da irracionalidade pode mesmo dar a impressão de que voltamos 30 anos no tempo. Para aqueles que vivem sob o signo da mídia nacional, o esforço é dobrado e a contradição exige cuidados: é preciso ler para saber; mas, para os desatentos, quanto mais se lê menos se sabe.

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Jornalista