Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Debate negligenciado pela imprensa francesa

Início da década de 1960. A economia francesa entra num ciclo de expansão que parece não ter fim. O desenvolvimento econômico requer uma política de planejamento urbano capaz de assimilar rapidamente o grande contingente de trabalhadores que chegam às cidades – quase todos pobres e com baixa escolaridade – e, ao mesmo tempo, preservar as classes média e alta das conseqüências dessa explosão demográfica. O resultado: imensas estruturas residenciais, isolados dos centros urbanos, são construídas a toque de caixa para abrigar esses novos migrantes.


A descrição retrata um cenário que nós, brasileiros, conhecemos muito bem. A construção dos conjuntos habitacionais no Rio de Janeiro e em São Paulo ou o surgimento das cidades satélites em Brasília são resultado direto dessa política. A emergência dos banlieues na França também. Com a diferença que, na Europa, as periferias acabaram sendo ocupadas por imigrantes, em sua maioria originários da norte da África.


No Brasil não demorou muito para sentirmos as conseqüências dessa política: favelização, deterioração da qualidade de vida, explosão da criminalidade, marginalização da população etc. Fenômenos que só recentemente começam a eclodir na França e que vieram à tona de forma visceral nas últimas semanas.


Jornalismo sensacionalista


A imprensa na francesa parece não reconhecer o caráter político e social desse fenômeno. Ela prefere tratar os incidentes nos banlieues como um problema de segurança pública, resultado da ineficácia do sistema policial ou da ação de criminosos, traficantes etc. Ao adotar o discurso truculento-nacionalista do ministro do Interior Nicolas Sarkosy, os meios de comunicação estão perdendo a oportunidade de propor um debate mais amplo sobre a política urbana e a falência do modelo de integração dos imigrantes na França.


Diariamente, dois dos mais importantes canais de televisão na França – o TF1 privado e o France 2, público – dedicam quase metade do noticiário ao assunto. A cobertura começa com um balanço diário dos incidentes em todo o país: número de cidades envolvidas, quantidade de carros queimados, conflitos com a polícia. Na seqüência, declarações do governo e da oposição sobre o problema nos banlieues.


Tentativas de explicar as causas desse fenômeno até existem. Três semanas atrás, por exemplo, a France 2, que tem uma linha editorial mais à esquerda, veiculou uma reportagem em que atribuía a revolta nas periferias ao desmonte da polícia de proximidade – uma criação do ex-primeiro-ministro socialista Lionel Jospin – pelo atual governo. Reportagem semelhante foi transmitida pela concorrente direitista TF1 na semana seguinte. O enfoque, no entanto, era o oposto: colocava o atual governo como vítima de um aparelho policial que, nos últimos anos, havia deixado de lado sua função repressiva. As duas matérias, porém, pecavam pela superficialidade e pelo enfoque excessivo na questão da segurança pública.


A imprensa escrita segue a mesma linha sensacionalista e superficial. Visão que pode ser resumida por uma declaração publicada pelo diário regional L’Ouest France (10/11): ‘Há certas pessoas que possuem interesse em manter essas populações na miséria. São os fundamentalistas religiosos e aqueles que vivem do tráfico’.


Problema presente


Historicamente, a imprensa francesa se constituiu em torno de um modelo mais interpretativo de jornalismo. Suas origens remontam à tradição político-literária da imprensa nos séculos 18 e 19. Influência que resultou numa produção jornalística mais engajada e politizada, diferente do jornalismo praticado no Brasil ou nos Estados Unidos.


O que chama atenção é a forma como os jornais de esquerda (Liberation, L’Humanité), de centro (Le Monde) e de direita (Le Figaro) colocam essa tradição interpretativa de lado, preferindo ignorar os contornos políticos que marcam a crise nos banlieues. Na verdade, nenhum jornal quer discutir os equívocos de uma política social que atravessou todos os tipos de governo, incluindo os 20 anos de administração socialista. Seria o mesmo que admitir incapacidade do Estado francês em lidar com o problema da imigração e a precarização das condições de vida nas periferias – fenômeno que mistura racismo, xenofobia e negligência do poder público. Um dado estatístico ilustra bem esse problema: enquanto a taxa de desemprego na França é de 10%, nas periferias ela ultrapassa os 40%.


O problema reside no fato de que a imprensa é, por excelência, um espaço de debate e esclarecimento. É também um perigoso instrumento de construção social da realidade. Na medida em que ela se nega a tratar de forma adequada determinado assunto, contribui para o esvaziamento da agenda pública.


Não vai demorar muito para governo francês controlar essa crise. E, quando os jovens deixarem de atear fogo nos carros, o problema nos banlieues será esquecido. Sem seu caráter espetacular ou sensacionalista, a vida dos habitantes da periferia não desperta o interesse da mídia. Mas ignorar a existência dos banlieues não elimina o problema. Eles continuarão a existir, a reivindicar visibilidade na sociedade francesa. E vão recorrer novamente à violência, se for preciso.

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Doutorando em Comunicação pela Universidade de Brasília/Université de Rennes 1