A mídia brasileira perdeu, nos últimos dias, uma excelente oportunidade de mostrar seu apreço pela liberdade de imprensa e de expressão. Ao noticiar o projeto de criação do Conselho Federal de Jornalismo, a maioria dos grandes jornais e revistas foi absolutamente parcial. Textos que deveriam estar nos editoriais e não no noticiário recorreram paradoxalmente ao princípio sagrado da pluralidade e da liberdade de imprensa para desprezar o contraditório e o rico debate que o projeto abre no Jornalismo brasileiro. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro protesta contra a desonestidade intelectual que tem pautado as reportagens sobre o tema e convoca seus associados para reiniciar um grande debate sobre o Conselho Federal de Jornalismo no próximo dia 21, sábado, a partir das 10 h, na nossa sede (Rua Evaristo da Veiga, 16/17º andar).
Sem prejuízo do debate, e sem desmerecer os que já se consideram suficientemente bem informados para combater a proposta de criação do CFJ, o sindicato se sente no dever de esclarecer pontos fundamentais que a grande imprensa, em sua batalha incansável contra as medidas de regulamentação profissional, tem ocultado ou aos quais não tem dado o justo destaque.
As notícias apresentam o projeto do CFJ como uma ação do governo federal inserida em uma saga ditatorial que teria começado com a Lei da Mordaça, a qual abominamos, passado pela tentativa destrambelhada de expulsar um correspondente estrangeiro, à qual fizemos as mais duras críticas, e culminado com a reação do presidente e alguns ministros às investigações sobre o presidente do Banco Central, pelo qual não nutrimos qualquer simpatia. Ou seja, na ânsia de combater o CFJ, a imprensa exercitou sua habilidade em misturar alhos com bugalhos e jogou na conta de um suposto projeto de autoritarismo petista uma proposta que os 31 sindicatos de jornalistas filiados à Federação Nacional dos Jornalistas começaram a formular antes mesmo da Assembléia Nacional Constituinte, de 1988. Naquela ocasião, o debate começou a despontar na categoria por iniciativa dos profissionais de São Paulo no âmbito de sua entidade mais representativa, o sindicato. A discussão só ganharia vulto nacional quase uma década depois, no Congresso Nacional dos Jornalistas de 1996, em Porto Alegre.
Risco de enfraquecimento
Mesmo correndo o risco inerente a qualquer simplificação, podemos tentar resumir o pensamento dos primeiros defensores de um conselho ou uma ordem, nos moldes da Ordem dos Advogados do Brasil ou dos conselhos federais de Medicina, Engenharia e Economia. Muito antes da violenta onda de precarização do nosso mercado de trabalho, com a ‘brilhante’ idéia das terceirizações em massa para burlar as leis trabalhistas, e dos ataques contundentes à exigência do diploma para o exercício da profissão, os precursores do Conselho, ou da Ordem dos Jornalistas do Brasil, sustentavam que os jornalistas brasileiros careciam de um instrumento eficaz para fazer frente às desregulamentações. Um instrumento que também tivesse força para defender a dignidade dos profissionais honestos contra as práticas nefastas daquela parcela irresponsável da imprensa que usa seu poder para se locupletar de favores ou achacar as vítimas das denúncias negociando silêncios e ameaçando com investigações dirigidas. Todo jornalista experiente sabe do que estamos falando.
Naquela ocasião o projeto, como agora, suscitou naturalmente reações contrárias entre os próprios sindicatos e dirigentes da Fenaj. Em qualquer debate deste gênero no mundo é natural algum nível de tensão entre as liberdades públicas e a proteção dos direitos individuais, ambos princípios universais da democracia e, no caso do Brasil, expressos na Constituição.
A justificada preocupação com possíveis cerceamentos também foi levantada pelos sindicalistas em diversos debates. Mas o movimento sindical não se deixou intimidar pelos tabus, interessado que estava em prosseguir na luta contra a esculhambação dos patrões em relação à regulamentação profissional.
Categoria organizada
Não se pode esquecer que o Conselho representa um risco evidente de enfraquecimento dos sindicatos e da própria Fenaj. As profissões que conseguiram se auto-regular através de conselhos independentes não têm sindicatos tão fortes e representativos. A OAB, para ficarmos no exemplo mais conhecido, é muito mais poderosa do que qualquer sindicato de advogados. O mesmo acontece com os médicos, engenheiros, arquitetos, psicólogos etc. Foi preciso muito debate em todos os sindicatos e mais alguns congressos nacionais de jornalistas até que a categoria chegasse à conclusão de que a criação do Conselho apresentava mais vantagens para a valorização da profissão do que riscos à liberdade de imprensa ou ao próprio movimento sindical. A proposta de criação do CFJ não foi encaminhada pela Fenaj ao PT ou ao governo Lula, mas ao governo Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, em setembro de 2002. Pelo simples fato de que, pela Constituição, cabe exclusivamente ao Poder Executivo Federal a prerrogativa de propor a criação de uma autarquia. Isso não significa que a OAB ou o Conselho dos médicos seja controlado pelo governo. Muito pelo contrário. Quantas foram as ações que a OAB impetrou contra ditadores de plantão e medidas açodadas ou ilegais do governo? O incômodo dos patrões na comparação com a OAB está em outro plano. Por exemplo: alguém imagina um estagiário de Direito atuando como profissional junto aos tribunais? Ou um grande escritório de advocacia que demita os profissionais e contrate não diplomados, como acontece cada vez mais nas redações?
A idéia era exatamente a de que a regulamentação do exercício profissional ficasse a cargo de uma entidade independente dos patrões e do governo. Essa autarquia, o Conselho Federal de Jornalismo, seria muito mais independente do governo do que a instância que hoje toma decisões sobre a concessão ou não de registros profissionais, que é o Ministério do Trabalho sujeito sempre às influências das correntes político-partidárias que dominam suas seções regionais. Os sindicatos que perderam projeção política com a criação do Conselho, não têm instrumentos eficazes para barrar as práticas ilegais da grande parcela do patronato que desconsidera ao bel prazer as leis trabalhistas. Muito menos para exigir a observância de procedimentos éticos mínimos por parte dos jornalistas. Dotar a sociedade de um mecanismo de proteção da informação de qualidade que seja estabelecido por quem entende do assunto – jornalistas profissionais – nos pareceu uma iniciativa muito mais segura do que a simples omissão, o ‘deixar como está para ver como é que fica’ ou, como alegam alguns críticos do projeto, deixar que os leitores e a ‘lei do mercado’ punam as más publicações e os jornalistas antiéticos (ou não-jornalistas). Defender que o mercado por si só controle os excessos e a falta de honestidade na informação e no exercício profissional é quase como acreditar na lei da selva, em um liberalismo anacrônico saudoso da revolução industrial e seus desrespeitos aos trabalhadores. Na nossa opinião não há postura filosófica mas jurássica do que acreditar apenas no livre mercado para regular as relações trabalhistas.
É verdade que temos a opção de continuar convivendo apenas com o controle dos patrões, das empresas e seus interesses muitas vezes duvidosos. Muitos argumentam que os jornalistas já têm controles demais, como a própria Justiça ou o famigerado entulho autoritário da Lei de Imprensa, um mecanismo que só estimula a indústria de danos morais, que cerceia e amedronta o jornalismo investigativo. São argumentos válidos e que merecem nosso respeito. Inaceitável é desmerecer ou desqualificar a legitimidade dos que preferem ter sua atividade profissional regulada e fiscalizada não apenas pela selvageria, mas por uma categoria organizada, independente, em sua essência comprometida com a pluralidade, a liberdade e a ética.
Comparação ofensiva
As críticas ao projeto defendido pelos sindicatos do Brasil inteiro têm dado ênfase apenas à paranóia do cerceamento à liberdade de imprensa e quase nenhuma linha se refere à necessidade de barrar o lamaçal de negociatas e ilegalidades às quais recorrem muitos veículos sob o pretexto de driblar a crise econômica. Não é à toa que a confiança da sociedade na imprensa está abalada. Continuar encarando esse comportamento como algo natural e inerente à liberdade de imprensa equivale a justificar a atitude de um policial que se vende ao crime porque ganha salários injustos. Onde estão as análises da mídia sobre o fenômeno da corrupção na imprensa e o desrespeito à cláusula de consciência, práticas que ameaçam muito mais a credibilidade da nossa profissão e a liberdade de expressão do que um conselho profissional?
Carimbar os defensores do Conselho Federal de Jornalismo como uma espécie de nostálgicos das ditaduras, adeptos da censura, governistas inconformados com as críticas, defensores de cassações e perseguições, é um sofisma condenável pela desonestidade intelectual que embute. Os que acreditam na conveniência da criação de um conselho para substituir a lei da selva não apontam os críticos do projeto como pelegos que se alinham aos patrões contra seus próprios sindicatos, nem como corruptos ou caluniadores contumazes amedrontados pela possibilidade de ter suas atividades questionadas como em qualquer outra profissão que lida com o interesse público. Comparar o Conselho Federal de Jornalismo ao DIP de Getúlio Vargas tem sido outra figura de retórica agressiva, pueril e autoritária, pois pega carona na onda de interpretações desrespeitosas que ameaçam impor um pensamento único com a força unânime da grande imprensa. O Conselho não quer uma mídia politicamente controlada, como sugerem alguns dos que caíram de pára-quedas no debate. Mas tampouco nos conformamos com uma mídia descontroladamente entregue a achaques e ilicitudes, sem controle social e sem pluralidade.
O jornalista não se interessa por participar das instâncias coletivas de sua profissão merece todo respeito. Mesmo que as ações sindicais, com as negociações salariais e a assistência jurídica, beneficiem a todos, nenhum profissional tem obrigação de militar no sindicato ou agir pela promoção da coletividade. Mas isso não dá a ninguém o direito de desqualificar os que insistem em se dedicar às causas coletivas. Há muitas pessoas de bem que sacrificam suas vidas pessoais para exigir o cumprimento dos direitos, conquistar vitórias para a categoria e a sociedade. São pessoas bem intencionadas e não apegadas às burocracias ou a esquemas cartoriais, como querem insinuar alguns críticos do Conselho. Comparar os militantes das causas coletivas a censores ou castradores é ofensivo e pouco edificante em debates cruciais como este, para o qual convocamos não só nossos associados, mas todos os interessados.
Bom senso
O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro foi um dos primeiros a aderir ao movimento iniciado em São Paulo para debater a criação do Conselho Federal, mas em nenhum momento defendemos uma tramitação em regime de urgência do projeto, muito menos sua aprovação sem o esclarecimento da sociedade. Também temos restrições ao texto encaminhado pelo governo, o que não pode ser usado pelo patronato para desqualificar a idéia. Como a tramitação no Congresso só deverá acontecer em 2005, temos tempo para ampliar o debate e nos cercar de todos os cuidados necessários à proteção do sagrado direito de expressão e da liberdade de imprensa. Teremos também oportunidade de incluir entre as atribuições do Conselho instrumentos mais eficazes para coibir os proprietários dos veículos de comunicação que não se sujeitarem às leis e aos preceitos éticos.
O que não podemos é ficar paralisados diante de detalhes aos quais a grande imprensa se agarra para prejudicar o debate. As expressões contidas no projeto podem ser modificadas, nenhuma esperteza semântica pode cercear a liberdade da imprensa. O cerne da questão é outro. E nada tem a ver com a idéia de que uma porção de jornalistas com saudades da ditadura vai se reunir num conselho para ficar lendo os jornais e cassando quem defende esta ou aquela idéia. Isso é simplesmente ridículo. Talvez possamos resumir em três os grandes objetivos do Conselho, que levaram a Fenaj e os 31 sindicatos de jornalistas do Brasil a defenderem sua criação: regular o acesso à profissão de jornalista, fiscalizar o exercício profissional e zelar pelo cumprimento do código de ética. Estamos alinhados com essas três diretrizes. A hipótese de os patrões conseguirem cassar a exigência do diploma na Justiça em uma de suas incansáveis tentativas torna ainda maior a conveniência de termos um conselho para substituir a lei da selva, do patronato ou da burocracia estatal. O sindicato é favorável ao Conselho, mas como instituição radicalmente democrática é evidente que adotará a decisão dos seus associados, naturalmente depois de muitas discussões na instância adequada – não nas páginas de uma imprensa sem compromisso com a imparcialidade e a pluralidade, como ficou flagrante nas notícias sobre o encaminhamento do projeto.
Acreditamos que o bom senso prevalecerá no debate que deve ser travado entre os jornalistas e a sociedade, de preferência longe do rolo compressor de empresários amedrontados pela idéia de uma instância que ameace a continuidade de práticas danosas à qualidade da informação e, aí sim, à liberdade de imprensa.
Compareça ao debate. Sábado, dia 21 de agosto, a partir das 10h.