As eleições para cargos públicos no Brasil são reguladas pela Lei (Eleitoral) nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, e suas alterações. No que se refere à presença de candidatos nas concessionárias do serviço público de rádio e televisão, além do horário gratuito de propaganda eleitoral, a lei prevê a possibilidade da realização de debates, promovidos pelas emissoras, de acordo com determinadas regras. Essas regras buscam garantir uma disputa eleitoral em igualdade de condições para todos cujos partidos tenham representação na Câmara dos Deputados, independente de percentuais eventualmente obtidos em pesquisas de intenção de voto. É isso que transparece das normas transcritas abaixo:
Artigo 46. Independentemente da veiculação de propaganda eleitoral gratuita no horário definido nesta Lei, é facultada a transmissão, por emissora de rádio ou televisão, de debates sobre as eleições majoritária ou proporcional, sendo assegurada a participação de candidatos dos partidos com representação na Câmara dos Deputados, e facultada a dos demais, observado o seguinte:
I – nas eleições majoritárias, a apresentação dos debates poderá ser feita:
a) em conjunto, estando presentes todos os candidatos a um mesmo cargo eletivo;
b) em grupos, estando presentes, no mínimo, três candidatos; (…)
III – os debates deverão ser parte de programação previamente estabelecida e divulgada pela emissora, fazendo-se mediante sorteio a escolha do dia e da ordem de fala de cada candidato, salvo se celebrado acordo em outro sentido entre os partidos e coligações interessados.
§ 1º Será admitida a realização de debate sem a presença de candidato de algum partido, desde que o veículo de comunicação responsável comprove havê-lo convidado com a antecedência mínima de setenta e duas horas da realização do debate. (…)
§ 3º O descumprimento do disposto neste artigo sujeita a empresa infratora às penalidades previstas no art. 56.
As penalidades mencionadas no parágrafo 3º e previstas no Artigo 56 serão decididas pela Justiça Eleitoral a partir de requerimento de partido, coligação ou candidato e se referem à suspensão, por 24 horas, da programação normal da emissora e a transmissão, a cada quinze minutos, da informação de que ela está ‘fora do ar’ por desobediência à Lei.
Globo cancela debates em 10 cidades
Na quinta-feira (2/10), a Rede Globo promoveu debates entre os candidatos a prefeito ‘mais bem colocados na última pesquisa do IBOPE’ em 90 cidades brasileiras. Em matéria nos seus principais telejornais do dia seguinte, sexta-feira (3), universitários enaltecem a realização desses debates que oferecem aos telespectadores ‘mais uma oportunidade de conhecer os programas dos candidatos’ e são importantes para ‘fortalecer a democracia’. Informa-se também que os debates anteriormente programados para as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Fortaleza, São Luís, Itabuna, Pelotas, Anápolis, Maringá e Londrina, todavia, não foram realizados.
No Jornal Nacional o apresentador acrescenta que ‘em dez municípios, não houve acordo para que candidatos de menor peso eleitoral abrissem mão do debate, uma imposição da lei eleitoral. Por esse motivo, o debate não se realizou (…). A TV Globo considera que a lei eleitoral restringe a liberdade de imprensa nesse ponto’ (ver aqui).
No dia 30 de setembro, a menos de uma semana da realização das eleições, que aconteceram no domingo (5/10), a Central Globo de Comunicação já havia emitido um ‘Comunicado‘ informando a decisão de cancelar os debates antes do primeiro turno em algumas dessas cidades, inclusive nos dois principais colégios eleitorais do país, São Paulo e Rio de Janeiro.
O ‘Comunicado’ alega que ‘a lei eleitoral em vigor impõe restrições que limitam a liberdade de imprensa’ e acusa os candidatos – que não aceitaram ficar de fora dos debates – ‘de terem se beneficiado do critério de cobertura proposto a todos os candidatos’ e, mesmo assim, não assinarem o acordo oferecido pela concessionária. Em tom de advertência pedagógica e aguardando reflexões da ‘sociedade e de seus representantes em Brasília’, diz mais que:
‘A TV Globo agiu assim constrangida pelas restrições à liberdade de imprensa presentes na lei eleitoral. A imprensa deve cobrir o que é notícia, de forma livre e espontânea: aqueles que, ao longo do processo, ganham densidade eleitoral são naturalmente mais bem cobertos, crescem nas pesquisas e asseguram um lugar nos debates. É assim a dinâmica no mundo democrático. É como deveria ser aqui também. (…)
‘A TV Globo lamenta que estas restrições na lei eleitoral a impeçam de promover um evento que tem se mostrado valioso em eleições passadas – e espera que a sociedade e seus representantes, em Brasília, reflitam sobre a questão.’
Matéria sobre o assunto publicada em O Globo (1/10/2008), sob o título ‘Paulo Ramos, com 1% em pesquisas, inviabiliza debate do Rio na TV Globo’, afirma que a Rede Globo ‘foi impedida de realizar debates no primeiro turno’ pela Lei Eleitoral e pelo candidato do PDT.
Da cautela à rejeição
Não há dúvida de que debates públicos entre candidatos a cargos eletivos, sobretudo quando já constituem uma tradição no processo eleitoral brasileiro, representam sim ‘mais uma oportunidade de conhecer os programas dos candidatos’ e ‘fortalecem a democracia’. Exatamente por isso, ao realizá-los, em conformidade com a Lei Eleitoral, as emissoras de radiodifusão cumprem o seu dever de concessionárias de um serviço público. E é também por essa razão que os candidatos a prefeito, naquelas cidades onde os debates foram cancelados, reagiram à decisão da Rede Globo.
Aqueles candidatos que, por razões eleitorais, acreditavam que o debate poderia prejudicá-los, lamentaram ‘formalmente’ o cancelamento, mas foram cautelosos ao omitir qualquer julgamento sobre as alegações apresentadas pela Rede Globo. Por outro lado, aqueles que se sentiram prejudicados dividiram-se entre (1) os que acusaram outros candidatos de ‘tramarem’ a não realização do debate, mas também pouparam diretamente a concessionária; e (2) aqueles que reagiram rejeitando as razões apresentadas pela Globo para o cancelamento.
Quem são os prejudicados?
O episódio, sem dúvida, convida a algumas ‘reflexões da sociedade’, como espera a Globo.
Primeiro, chama a atenção o fato de que o cancelamento dos debates em 10 cidades – inclusive nas capitais São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Curitiba e São Luiz – foi uma opção exclusiva da Globo. Debates na TV são facultativos e não houve qualquer impedimento legal para que eles se realizassem. Havia, isto sim, uma decisão prévia da própria Globo – fundada no conceito subjetivo de ‘debate proveitoso’ – de somente realizá-los com a participação de, no máximo, seis (ou cinco?) candidatos.
Segundo, causa perplexidade que a Rede Globo de Televisão se exclua inteiramente do processo de formação da opinião do eleitor e, portanto, da sua decisão de voto. Ao afirmar no ‘Comunicado’ que ‘aqueles [candidatos] que, ao longo do processo, ganham densidade eleitoral são naturalmente mais bem cobertos, crescem nas pesquisas e asseguram um lugar nos debates’, ela se coloca como uma mera espectadora, fria, distante e imparcial. Age como se desconhecesse que é parte ativa da disputa eleitoral, construtora determinante do cenário de representação da política (CR-P) e também ator político muitas vezes decisivo, como, aliás, atestam episódios de nossa história política recente.
Terceiro, a Globo recorre ainda uma vez mais ao princípio da liberdade de imprensa, agora para atacar as garantias de igualdade na competição eleitoral estabelecidas em Lei. O que deve prevalecer na democracia representativa: a igualdade de condições para competição eleitoral garantida por Lei discutida, votada e aprovada no Congresso Nacional ou os critérios de noticiabilidade e ‘densidade eleitoral’ arbitrados pelo maior grupo empresarial detentor de concessões dos serviços públicos de rádio e televisão do país?
Por último, vale perguntar: quem teriam sido os principais prejudicados pela não realização dos debates em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Fortaleza, São Luís, Itabuna, Pelotas, Anápolis, Maringá e Londrina? Por certo, os muitos milhões de excluídos, cidadãos eleitores dessas cidades. Exatamente aqueles em nome dos quais são outorgadas as concessões de serviço público de qualquer natureza; em nome dos quais se invoca – reiteradamente – o princípio da liberdade de imprensa e, sobretudo, em nome dos quais se realizam as eleições.
Em um ponto a Globo, certamente, tem total razão: o cancelamento dos debates mais as acusações à Lei Eleitoral e as justificativas oferecidas reforçam a necessidade de que ‘a sociedade e seus representantes, em Brasília’ rediscutam as tensionadas relações entre o público e o privado em nosso país: o que, afinal, constitui o interesse público? E quais são as responsabilidades e deveres dos concessionários dos serviços públicos de radiodifusão com o interesse público?
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)