“Quer dizer que agora vale tudo, liberou geral?”, indaga-me um colega, após o resultado da votação no Supremo Tribunal Federal que liberou a publicação das biografias não autorizadas no país. “Vai haver uma enxurrada de biografias no mercado?”, ele quer saber. “O que irá mudar, particularmente, no seu trabalho?”, questiona-me.
Não, por certo, não vale tudo, caro colega. Os mesmos critérios éticos e o mesmo rigor de apuração continuam obrigatórios ao trabalho de um biógrafo que se preze.
Quaisquer indivíduos –e, por extensão, seus respectivos herdeiros– que se sintam caluniados, difamados, alvo de ataques desonestos e vilanias continuam tendo o direito a cobrar, na Justiça, a severa punição ao caluniador, ao autor da difamação, ao promotor da desonestidade.
O que o Supremo aboliu, em decisão histórica e antiobscurantista, foi a censura prévia, a necessidade de o autor ter que pedir, a priori, a autorização do biografado (ou de seus familiares) para escrever um livro que lhe tomará, no mínimo, entre três e cinco anos de trabalho. Continuam a valer, óbvio, todos os mecanismos constitucionais em defesa dos cidadãos contra o embuste, a balela e as inverdades publicadas em letra de forma.
O biógrafo mentiu? Processe-se o biógrafo. Que ele seja levado às barras dos tribunais. “Erros corrigem-se segundo o direito, não e? se abatendo liberdades conquistadas que se segue na melhor trilha democrática traçada com duras lutas. Reparam-se danos nos termos da lei”, disse, didática, a ministra Carmen Lúcia, relatora da ação, em seu voto no STF.
No primeiro momento, com a decisão unânime do Supremo, biografias engavetadas virão à luz, às prateleiras das livrarias e, enfim, às mãos dos leitores. Porém, não acredito em “enxurradas” de novos títulos como consequência automática. Escrever uma biografia demanda tempo, investigação minuciosa, pesquisa austera.
Quanto a mim, a decisão do STF –”a vitória da luz sobre as trevas”, como definiu o amigo Fernando Morais– em pouco ou nada alterará o cotidiano de trabalho. Jamais pedi, por exemplo, autorização à família Vargas para escrever sobre Getúlio.
Sempre entendi que a narrativa da vida de uma personalidade pública não pertence apenas a ela, e muito menos aos seus familiares. Ela é patrimônio de nossa memória coletiva, de nossa história comum. Todos nós, queiramos ou não, somos herdeiros dela.
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Lira Neto, 51, é jornalista e autor de Getúlio, biografia publicada em três volumes pela Companhia das Letras