“A soberania é uma forma de expressão da dignidade nacional” (Antônio Luiz da Costa, professor)
A bronca das autoridades italianas em função do incidente envolvendo o ex-ativista Cesare Battisti desconsidera um aspecto essencial da decisão objeto de sua censura. O Supremo Tribunal Federal, embasado em manifestação que não deixou de traduzir, da parte de numerosos ministros, dúvidas ponderáveis quanto à conveniência política e também jurídica de acatar-se o pedido procedente de Roma, estabeleceu peremptoriamente que caberia ao presidente da República a palavra final concernente à pretendida extradição.
O então chefe do governo, Luiz Inácio Lula da Silva, sob o argumento de que a vida do cidadão italiano sob a tutela do Estado brasileiro estaria em risco na terra natal, decidiu não atender à solicitação. Nos desdobramentos do caso, marcados por reações destemperadas dos chamados porta-vozes – bem como da mídia brasileira –, o governo italiano entendeu questionar a decisão, pedindo à Corte Judiciária que a anulasse. Não deu outra. O impertinente questionamento conduziu o STF a fixar-se na análise de um item prioritário de suma relevância. A indagação irrompeu inevitavelmente: um país estrangeiro desfruta de competência legal para se insurgir, via judicial, contra um ato soberano, escorado em recomendação do próprio Poder Judiciário, tomado pela mais alta autoridade do Estado brasileiro? A resposta chegou categórica, definitiva. O que estava fundamentalmente em jogo, no processo sob avaliação, é uma situação que diz respeito à soberania nacional. O questionamento italiano carecia, portanto, de legitimidade. E ponto final.
“Em dúvida, pro réu”
Inconformados, elementos do Executivo, Legislativo e magistratura italianos voltaram à carga com exacerbadas demonstrações de arrogância e passionalismo. Afora a emblemática “convocação para consultas” do embaixador credenciado junto ao Itamaraty, houve até quem, entre os loquazes porta-vozes oficiais, obviamente acometidos de surto paranoico, ameaçasse o Brasil com “represálias fulminantes”. Tipo assim: boicote aos nossos produtos. Boicote à Copa Mundial de futebol e, de quebra, aos Jogos Olímpicos. Uma pantomina circense, ridícula a mais não poder, armada bem provavelmente com o velhaco intuito de desviar as atenções da plateia italiana da avalancha de escândalos que estremece os redutos políticos do país na burlesca “era Berlusconi”, marcada também, como noutros períodos da história, pela presença ostensiva da Máfia em escalões dotados de poder suficiente para a tomada de deliberações cruciais na vida da grande nação. Uma nação – assinale-se prazerosamente – que tanta influência benéfica exerceu e continua exercendo na formação cultural brasileira.
Cesare Battisti, escritor, com 17 livros publicados, não aparenta realmente ser, ao contrário do que propagam alguns, um contestador político idealista, arrastado equivocadamente a ações radicais pelo propósito de corrigir desacertos sociais e, por essa “razão”, alvo de inclemente perseguição política. Mas pode também não ser esse extremista desalmado, responsável por hediondos crimes comuns, condenado à prisão perpétua, retratado no pedido de extradição. As autoridades brasileiras, a começar pelos representantes da magistratura, deixaram evidenciada dificuldade enorme em estabelecer definitivo juízo de valores a respeito da natureza dos delitos atribuídos ao polêmico personagem. Daí a opção pela aplicação do princípio jurídico do “em dúvida, pro réu”.
Provas de magnanimidade
É bom não perder de vista, na apreciação de toda essa história, dois registros assaz significativos. O primeiro deles: se se trata de mera questão de “crime comum”, e não de “crime político”, por que toda essa tremenda celeuma promovida por grupos políticos em atmosfera de indignação e ira? O segundo registro: como explicar que o cidadão em causa, foragido, condenado à revelia com base em provas obtidas por meio da controvertida “delação premiada”, antes de buscar refúgio no Brasil, haja permanecido por mais de dez anos, com atividade regular, emprego e residência fixos, em território francês, encostadinho, pode-se dizer, no país de onde foi emanada a ordem relativa à sua detenção? O que impediu, num cenário desses, com todas essas circunstâncias, fosse ele incomodado a qualquer título pelas autoridades do lugar em que se achava abrigado e, sobretudo, sem que os eficientes porta-vozes dos poderes italianos exigissem, em tom esbravejante e ameaçador, do governo de Paris, como agora é feito com relação a Brasília, sua captura e extradição? O silêncio em torno da presença por tão extenso período de Battisti na França torna danado de suspeitoso o estardalhaço de agora.
Isso tudo, por certo, contribuiu fortemente para a decisão brasileira. Uma decisão soberana, legítima, incontestável. Não fica demais acentuar, também, que somos uma nação que costuma dar provas continuadas de magnanimidade na aplicação dos princípios jurídicos em não poucos momentos de relevância histórica. Para lembrar alguns deles: anistia, no governo JK, aos revoltosos de Aragarças e Jacareacanga; anistia aos envolvidos na luta armada dos tempos de chumbo, inclusive aos agentes da repressão acusados de tortura.
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[Cesar Vanucci é jornalista, Belo Horizonte, MG]