O tema da liberdade de imprensa voltou ao noticiário de duas semanas para cá. O mote, desta vez, foi um trecho do programa de governo que a candidata Dilma Rousseff entregou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com críticas aos meios de comunicação e à imprensa. Depois de reações negativas, o texto foi substituído por outro mais ameno, mas as queixas continuaram. Então, no sábado passado, dia 10, este jornal noticiou que uma terceira versão do documento será apresentada em breve. Deixemos de lado as trapalhadas programáticas dos partidos (o PSDB também registrou no TSE um texto provisório, ou seja, também nisso José Serra anda empatado com Dilma). Fixemo-nos no cerne da discussão, que até hoje não foi equacionada entre nós: a democracia na comunicação social e suas relações com o Estado.
Nesse campo, há mal-entendidos e más intenções desorientando a opinião pública. Um dos equívocos mais pitorescos é esse de achar que qualquer proposta para modernizar a lei na área da radiodifusão é uma esquisitice de esquerdista. Não é. A regulação desse setor é uma exigência estrutural da sociedade de mercado. As democracias mais estáveis do planeta já fizeram sua lição de casa. Os Estados Unidos, por exemplo, cuidaram do assunto na década de 30 do século passado, com a criação da Comissão Federal das Comunicações (FCC). Essa agência reguladora tem dois objetivos centrais: proteger, no plano econômico, a concorrência saudável entre as empresas e estimular, no plano cultural e político, a diversidade de vozes e de opiniões. Por isso ela age para inibir a formação de oligopólios e monopólios que inviabilizem a livre concorrência e a pluralidade do debate público.
Tentativa
No Brasil, não temos nada parecido. Houve, é bem verdade, uma única tentativa. Nos anos 90, Sérgio Motta, ministro das Comunicações no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, criou uma comissão ‘suprapartidária’ para redigir um projeto de lei. O documento, que não tinha nada de esquerdista, procurava conter as práticas monopolistas e os malefícios da propriedade cruzada dos meios de comunicação. A propriedade cruzada pode ser danosa – ao menos segundo a mentalidade antitruste, que inspirou a criação da FCC nos Estados Unidos – quando um só grupo econômico, numa mesma região, controla o maior canal de TV aberta, o maior jornal diário, a maior emissora de rádio, e assim por diante, de tal forma que passa a dominar a pauta do debate público e o mercado publicitário. Por isso as legislações democráticas impõem limites à propriedade cruzada – limites que, naturalmente, variam no tempo, dependendo da natureza dos negócios e dos avanços tecnológicos. No Brasil, infelizmente, a ideia de Sérgio Motta não prosperou. Ele morreu em 1998. Seu projeto morreu junto.
Agora, que um ou mais partidos voltem a tocar o assunto não é ruim. O tema tem pertinência. O complicado é que ele acabou sequestrado por um discurso um tanto assembleísta, demagógico e governista. Seus adeptos acalentam a ilusão de que um governo que assumir parte da condução editorial dos meios de comunicação fará um bem para a sociedade e poderá ‘compensar’ a ‘desinformação’ promovida pela ‘mídia privada’. Esse caminho é a treva. Não apenas ele não vai ‘democratizar os meios’, como vai piorá-los. Governo bom é governo que fica longe dos ‘meios’ – dos privados, dos comerciais e, principalmente, dos públicos.
Lei e autoritarismo
Leis e agências para regular o mercado existem em todo o mundo democrático e não ferem a liberdade de expressão de ninguém. Outra coisa bem distinta é confiar à autoridade estatal a função de editar o jornalismo. O nome dessa outra coisa é autoritarismo inócuo. Inócuo, sim, porque até hoje ninguém foi capaz de inventar um decreto, lei ordinária ou norma constitucional que seja capaz de fabricar ‘bom’ jornalismo. Ao contrário: toda interferência estatal nessa esfera resultou em males muito piores do que aqueles que ela prometia remediar.
O aparelho de Estado é incompetente – nos dois sentidos da palavra – para ‘melhorar’ o nível do jornalismo: o Judiciário não serve para isso (a censura judicial, aliás, não melhora nada nos jornais, só piora), o Executivo deve ficar longe e, quanto ao Legislativo, para lembrarmos aqui o princípio consagrado na célebre Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, de 1791, ele não deve legislar contra a liberdade de imprensa.
Prêmio
A despeito do que deveria ser óbvio, os autoritários – tanto os de esquerda como os de direita, que nisso são idênticos – acreditam que a discricionariedade do burocrata estatal pode ‘compensar’ os abusos dos meios privados. Pensam que a verdade é uma média aritmética entre duas distorções. Para eles, a liberdade de imprensa não é um ponto de partida – incondicional e universal por definição, como direito humano que é –, mas um prêmio que se dá ao jornalista de bom comportamento (bom comportamento na opinião deles, bem entendido). Não sabem que a Primeira Emenda, assim como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, em 1789, veio não para condecorar a reportagem objetiva, fidedigna, equilibrada e de bom gosto, mas para assegurar a liberdade de expressão de todos, independentemente de qualquer juízo prévio sobre a ‘qualidade’ dessa expressão. Não sabem que a liberdade ou é para todos, independentemente da opinião dos governantes, ou não é liberdade para ninguém.
Quem não entende o sentido da liberdade não tem credenciais para falar de regulação do mercado de rádio e TV. Mas o tema não pode ser refém desses aí. A ausência de uma legislação moderna para o setor de radiodifusão é um déficit grave da nossa democracia. Superá-lo é uma tarefa urgente, e essa tarefa só poderá ser cumprida por quem sabe respeitar a liberdade – inclusive a liberdade dos crentes em mal-entendidos e dos pregadores das más intenções.
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Jornalista e professor da ECA-USP