Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Denuncismo hipócrita e discussões superficiais

Numa guerra entre similares, a única arma que resta é mesmo o acirramento passional de tom, em meio a um debate absolutamente inócuo, para alavancar a solução dos problemas que realmente importam ao país e à população. Em ambos os lados, elege-se um monstro para ser execrado. Com este esquema, afasta-se o risco de que os eleitores pensem mais profundamente nos temas relevantes e passem, eventualmente, a questionar o status quo. Em meio a relatos rasos e ao denuncismo hipócrita, perdem todos os que almejam um esclarecimento mais efetivo. Perdem mais ainda aqueles que não têm condições de perceber a armadilha para a qual estão sendo convocados.

‘Eu tenho medo!’ Era assim que nas eleições presidenciais de 2002 a atriz global Regina Duarte se referia ao Partido dos Trabalhadores, e ao candidato Lula, nas propagandas eleitorais produzidas pelo maior partido adversário do PT, o PSDB.

Naquele momento, os cidadãos e eleitores que entendiam a política como uma forma de discutir e atuar sobre a realidade, e buscavam uma alternativa aos oito anos anteriores de aprofundamento do neoliberalismo no Brasil, enxergavam à sua frente uma real alternativa de poder. A vitória de Lula viria a ser a vitória da Esperança sobre o Medo. Mesmo com todo o terrorismo propagado pela ex-namoradinha do Brasil, o tucanato não conseguiu evitar a chegada ao poder, pela primeira vez, do ex-operário Luiz Inácio Lula da Silva.

As tão propaladas mudanças

Aproximam-se agora as eleições de 2010 e novamente estamos às voltas com uma profusão de campanhas midiáticas a ressaltarem cenários catastróficos diante de eventual vitória do adversário. Os maiores especialistas neste roteiro permanecem sendo os tucanos. Ainda que transcorridos oito anos sob o lulismo sem nenhuma grande interferência no andamento do status quo – aliás, muito pelo contrário –, os arautos do PSDB, diante da possibilidade de uma derrota acachapante de Serra para Dilma já no primeiro turno, voltaram a apelar para os perigos que o PT poderia representar para a nação. Perigos bem mais significativos atualmente, quando o PT não mais teria Lula – o antigo ‘agitador’, mas hoje, inegavelmente, o homem mais popular do país – para controlar os seus ímpetos.

E agora, como vai se posicionar aquele mesmo eleitor sempre em busca de aperfeiçoar seu entendimento da política e, consequentemente, desviar seu olhar para vias alternativas de poder? O ‘Agora é Lula’ já deixou seu lugar na história, e até para o mais ferrenho dos petistas, ou lulistas, ficaria difícil pensar em substituí-lo por algo como ‘Agora é Dilma’.

Afinal, veio a consagração do líder operário pelas urnas, o primeiro mandato, o segundo mandato e restou um fato inconteste para todos os que acompanham de perto, e atentos às doutrinações manipuladoras, à conjuntura econômica, social e política do país: as tão propaladas mudanças não foram além de uma mera superfície.

Uma real alternativa de poder?

Várias situações podem ser tomadas como exemplares deste ‘avanço superficial’, onde os inúmeros programas basicamente assistencialistas tendem a mostrar a sua efemeridade a qualquer momento, uma vez que não configuram uma situação de direito adquirido, aquele que verdadeiramente importa para o futuro do país. Basta comparar o que se gasta com o Bolsa Família em relação às despesas crescentes com juros da dívida pública, despesas que permanecem a engordar a fatia de ganhos de especuladores e rentistas na renda nacional. Ao mesmo tempo, compare-se a reforma agrária que foi realizada com aquela prometida, e se chegará à frustrante constatação de que houve menos assentamentos novos neste governo do que no anterior.

O setor elétrico foi, por seu turno, um dos mais emblemáticos dos diversos recuos do governo Lula: o novo modelo de desenvolvimento para o setor, por longo tempo idealizado por reconhecidos especialistas no Instituto de Cidadania, e que previa maior presença do Estado e o menor peso dos grandes consumidores privados no planejamento do setor, foi praticamente abandonado. Nomes como Ildo Sauer e Luiz Pinguelli Rosa, que sempre se mantiveram firmes em seu propósito de revolucionar a regulação do setor, não tiveram outra saída que não abandonar o governo. Como uma das consequências, nós, consumidores, deparamos hoje com uma das mais altas tarifas elétricas no mundo (clique aqui para ler o Especial sobre o setor produzido pelo Correio da Cidadania, ‘Setor Elétrico, uma longa história de descaminhos’).

Citem-se, finalmente, o prosseguimento disfarçado de privatizações através de mecanismos tais como parcerias público-privadas e o apoio cabal do governo a obras como a Hidrelétrica de Belo Monte e a transposição do Rio São Francisco – obras de proporções gigantescas, envoltas em inúmeros problemas ambientais. Grandes e poderosas empreiteiras serão obviamente beneficiárias dessas obras, em detrimento de movimentos sociais e populações originárias, em uma decepcionante constatação de mais uma das viradas de Lula.

Aliás, as próprias discussões que vêm sendo travadas pelos candidatos mais cotados nas pesquisas eleitorais, Serra e Dilma, têm sido, a cada dia mais, uma mostra excepcional do fato de que giram, basicamente, em torno de um mesmo projeto para o país. Esta a explicação para o estilo comum aos dois candidatos, com a citação enfadonha de números, a alusão aos feitos de gestões anteriores e a promessa de confecção de inúmeras novas obras em futuro bem mais próximo do que o imaginado pelo eleitor. A origem mais profunda dos problemas é absolutamente relegada. As discussões sobre o setor de saúde, as preferidas de Serra, são uma excelente demonstração dessa postura. Em meio às UPAs (Unidades de Pronto Atendimento, programa implantado pelo governo federal em 2009) e às AMEs (Ambulatórios Médicos de Especialidades, adotadas pelo governo de São Paulo em 2007), pouquíssimas palavras sobre, por exemplo, o necessário foco na saúde preventiva, que muito provavelmente diminuiria a necessidade de tantas UPAs e AMEs. O eleitor, induzido à alienação, pagará certamente a conta.

Para não deixar Marina de fora dessa conversa, não há muito o que acrescentar. O estilo ‘declaração de efeito’, as frases feitas, as proclamações difusas, quase como se fora um ‘manual de auto-ajuda ambulante’, já estão por demais patentes para que a candidata saia consagrada destas eleições como se auto-intitula: uma real alternativa de poder.

O governo, a oposição e a imprensa

Se a orientação conservadora do tucanato, que de longínqua data já demonstrou que seu projeto liberal nada tem de social, não é mais novidade alguma, o lulismo ainda está para passar por maior elaboração em seu processo de ‘desconstrução’. Não somente no imaginário popular, mas no da própria classe média. A aproximação com o povo, que é real, e que rende a Lula sua estrondosa popularidade, é um fenômeno carregado de contradições e vem sendo explorado por diferentes vieses entre os vários estudiosos. As pesquisas eleitorais estão aí, no entanto, para comprovar que o PT, partido de Lula, não mais obtém sua força a partir de uma classe média mais esclarecida. Em lugar dos funcionários públicos, base histórica do Partido dos Trabalhadores, são os milhões de miseráveis, que recebem o Bolsa Família e que enxergam em Lula um protetor, que vêm engrossando as fileiras petistas atualmente. Difícil é, desse modo, negar que a cultura do favor é parte essencial do mundo petista, que está muito aquém de ter incluído o povo na política. Contar com miseráveis, que dão seu voto em troca de saciar a sua fome, mas que estão longe de alcançar a condição de discernimento político, é uma forma traiçoeira de negar ao povo o direito de participação e exercício de sua cidadania.

Estamos, portanto, nós, eleitores, em face de dois contendores, mas com uma visão básica do mundo muitíssimo similar e a mesma orientação na política e na economia. Não é por outra razão que todos nós cidadãos temos nos deparado, nas últimas semanas, com o embate a cada dia mais açodado – ou melhor, fratricida, já que entre representantes de um mesmo pensamento político – nas páginas dos veículos de comunicação, no que se refere à sustentação da democracia e da liberdade de imprensa.

De um lado, o governo acusa a imprensa de ‘parcialidade’ e ‘golpismo’, na medida em que estaria conspirando contra sua candidatura, com evidente favorecimento do seu maior adversário. A oposição acusa o governo de macular a democracia, com sua presença acachapante em prol de sua candidata. E a imprensa, por sua vez, confere às intenções de Lula e apoiadores de reforçar o controle social dos meios de comunicação o objetivo de ferir a liberdade de imprensa.

Jornal vestiu a carapuça

Tomando as críticas e relatos isoladamente, não há como negar que tenham, com proporções, obviamente, diferenciadas, alguma pertinência. Afinal, nem imprensa e nem políticos experientes iriam pôr a cabeça a prêmio a troco de bananas. Com relação às críticas ao governo, nenhum cidadão atento e consciente, por mais que honre a estrela do PT, seria capaz de negar as intervenções marcantes que Lula vem fazendo em favor de Dilma Rousseff. Não é por mero acaso que alguém até pouco tempo estranho ao mundo da política, e carente da marca do carisma, tenha alcançado dianteira tão significativa frente aos adversários. A popularidade e atuação diuturna do presidente são, sem sombras de dúvidas, os maiores trunfos da candidata petista.

Daí, entretanto, a se acusar o presidente de estar ‘ferindo a democracia’ é uma reação despropositada. Acusá-lo, além disso, de pôr em risco a liberdade de imprensa, na medida em que vem tecendo comentários críticos à atuação parcial dos grandes órgãos de comunicação, chega a ser ato de má-fé. O colunista do Correio da Cidadania Wladimir Pomar, em seu artigo ‘O que está em jogo?‘, faz algumas considerações relevantes quanto a estes aspectos. Afinal, indaga Pomar, ‘que medidas concretas o governo, ou a presidência, adotou para investir contra a liberdade de informação e, portanto, contra a Constituição? Que se saiba, nenhuma, nem os reclamantes as apresentaram. Supõe-se, então, que eles consideram as críticas do presidente e de organizações sociais a alguns órgãos de imprensa como `atentados´ à liberdade e à Constituição. No entanto, a Constituição não proíbe críticas. Não proíbe, inclusive, que o cidadão que ocupa a presidência da República as faça. Nem considera que a imprensa, como um todo ou em particular, seja imune a críticas. Portanto, bem vistas as coisas, temos alguns órgãos de imprensa que se acham acima das leis e dos direitos dos outros’.

Só alguém incapaz de observar a realidade com algum grau de acuidade não percebe o nítido desagrado de boa porção da mídia corporativa com a possibilidade de a candidata petista levar o pleito já no primeiro turno. A edição da Folha de S.Paulo de domingo, 26 de setembro, consiste, neste sentido, em peça exemplar na tentativa desesperada de construir um rol de argumentos para desbancar a petista. Começa-se com um editorial de capa, usando de tom imperativo e ameaçador, para advertir Lula e a candidata oficial contra as suas ‘bravatas’. Passa-se daí a um texto de opinião na página A3. De autoria de Aldo Pereira, ex-editorialista da Folha, e intitulado ‘Neocomunistas’, o texto parte de alusões aos teóricos do comunismo, como Lênin, Stálin e Trotsky, para, afinal, divagar sobre a possibilidade de que pressões sobre a base aliada venham a ser substituídas por ‘subornos’ em um futuro governo Dilma. Na página A10, resenha de Carlos Eduardo Lins da Silva sugere a leitura do livro O Lulismo no Poder, do jornalista Merval Pereira, o qual poderia confrontar o leitor com uma reflexão mais aprofundada dos anos Lula. No caderno Mundo, manchete em destaque diz que ‘Votação na Venezuela evoca a do Brasil’, ressaltando que a belicosidade do governo, o acanhamento da oposição e um trato pouco democrático com a mídia seriam, guardadas algumas divergências, semelhantes nas eleições dos dois países. Finalmente, até o novo caderno Ilustríssima da Folha traz artigos muito bem elaborados, de autoria de Maria Sylvia de Carvalho Franco e Sérgio Fausto. Em resposta a artigo de André Singer, publicado na semana anterior, os autores fazem uma avaliação bastante crítica dos anos de Lula no poder.

Na busca ainda de fazer uma crítica mais detalhada, matéria sobre o setor elétrico, no sábado, dia 18 de setembro, fez uma profunda retomada dos desvirtuamentos do governo petista no setor elétrico relativamente às ideias projetadas inicialmente pelo partido. Estranho que o diário tenha se atentado para tais desvirtuamentos – que, aliás, beneficiaram vários setores empresariais que hoje são próximos ao Grupo Folha – a uma semana das eleições. Já em 2004, este Correio produziu um caderno Especial sobre os desvios a que foi conduzido o setor elétrico sob Lula.

Bom, ao final, a própria Folha percebeu a dimensão da tropa de choque anti-Lula que montou nas últimas semanas. Em matéria do dia 28 de setembro, no caderno especial sobre eleições, fez uma espécie de mea culpa. Em longo relato, elencou vários textos que tecera contra FHC e outros presidentes, os quais também teriam reclamado das abordagens críticas que sofreram. Parece que o diário vestiu alguma carapuça.

O que está realmente em jogo

A despeito, de todo modo – e como já ressaltado acima –, da pertinência de algumas das críticas e alegações, governo de um lado, imprensa e oposição de outro, seria essencial que não se deixasse escapar o que vem perpassando este açodamento. Estamos diante de uma forma absolutamente inadequada e equivocada para a discussão de um tema, que vem sendo imposto goela abaixo do eleitorado, além de parecer ter se tornado a única questão essencial a ser debatida no país. Tem, todavia, sua lógica essa forma. Numa guerra entre similares, a única arma que resta é mesmo o acirramento passional de tom, em meio a um debate absolutamente inócuo para alavancar a solução dos problemas que realmente importam ao país e à sua população. Em ambos os lados, elege-se um monstro para ser execrado, e se constroem divagações infindáveis ao seu redor. Com este esquema, afasta-se o risco de que os eleitores pensem mais profundamente nos temas relevantes e passem, eventualmente, a questionar o status quo.

Em meio a relatos rasos e ao denuncismo hipócrita, perdem todos os que almejam um esclarecimento mais efetivo para situar-se no atual pleito. Perdem mais ainda aqueles que não têm condições de perceber a armadilha para a qual estão sendo convocados.

Nem mesmo algumas análises e manifestos de estudiosos e intelectuais, que vêm caminhando ao lado desse embate entre governo, oposição e imprensa, são capazes de assegurar um entendimento mais verdadeiro da realidade de nosso país e da conjuntura eleitoral. Partindo de suas visões divergentes sobre o teor do governo Lula, estes estudiosos têm participado da polêmica atual sobre democracia e liberdade de imprensa.

Em uma das vertentes, estão os estudiosos mais conservadores. Identificados em boa parte com o tucanato, conformam a oposição declarada ao governo Lula. Para essa ala, Lula estaria abusando de seu poder político em benefício de uma candidatura, comprometendo não somente a liberdade de imprensa, mas a própria democracia representativa.

Em contraposição a esta visão, destacam-se os intelectuais alinhados mais à esquerda do espectro político, mas identificados com o governo Lula, sob o argumento básico de que o líder operário teria possibilitado avanços sociais insuficientes, porém bastante significativos em nosso país. São estes estudiosos que têm destacado com mais vigor a óbvia má fé da oposição e da imprensa em seus enunciados críticos à pretensa postura antidemocrática de Lula.

Estas são as versões que, em graus diferentes, têm adquirido maior visibilidade em meio ao esquema tendencioso de nossa mídia, a qual possui nítidos interesses em reforçar uma visão maniqueista e, portanto, alienante da realidade. Infelizmente, mesmo no que se refere a estas discussões, novamente estamos diante de um padrão que não consegue aprofundar o entendimento sobre o que realmente está em jogo. Passa-se a léguas de distância de pôr o dedo na ferida, e avaliar a realidade do ‘avanço superficial’ nos últimos oito anos, mais acima delineado neste artigo.

Ficamos nós, leitores e eleitores, novamente condenados a permanecer em uma muito bem traçada sinuca de bico.

Uma nota

Poderiam alguns questionar, com muita razão, por que estaríamos diante de uma imprensa, diríamos assim, mais simpática a um dos lados – no caso, o tucanato -, se os dois maiores contendores do pleito de 2010 representariam essencialmente o mesmo projeto para o país. Aqui não há muito mistério. Os representantes do petismo e do lulismo são ingressantes mais novatos no condomínio do poder. Além do mais, sua maior figura é um ex-operário, egresso das classes populares, e que um dia pensou e pregou o socialismo para o Brasil. Serão, portanto, sempre pressionados, até a última gota de sangue, esses ‘ingressantes’, a permanecerem de joelhos diante das convenções e conveniências políticas e econômicas que têm nos governado ao longo da história.

O preconceito de classe e o de raça estão mais vivos do que nunca. Não deixarão jamais tranqüilos os grandes órgãos de comunicação, enquanto estiverem diante de um ex-metalúrgico como o homem mais popular no Brasil de hoje. Ainda que este homem, que muito provavelmente vai eleger a próxima presidente do Brasil, esteja já plenamente convertido à cartilha neoliberal e ao esvaziamento de ideias.

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Economista e editora do Correio da Cidadania