Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Desafio na pauta

A crise política do Mercosul foi um dos poucos temas quentes da economia, na primeira semana de agosto. Do lado interno, as bondades fiscais do governo ocuparam boa parte do noticiário. As condições impostas aos governos estaduais, na renegociação das dívidas com a União, serão menos severas do que pretendia o Executivo federal. Algumas categorias terão maiores vantagens salariais, graças a uma alteração do projeto enviado ao Congresso. Deputados pressionaram o presidente interino Michel Temer e ele aceitou.

Depois de algumas iniciativas, como a proposta de um teto para a elevação do gasto público, sobrou pouco espaço para ações efetivas do governo provisório. No meio desse quase marasmo, dificilmente superável até a conclusão do processo de impeachment, com ou sem afastamento definitivo da presidente Dilma Rousseff, o impasse no bloco regional acabou sendo uma das pautas mais importantes.

Com o fim do mandato uruguaio, a presidência rotativa do Mercosul deveria ser transferida, por um semestre, para a Venezuela. A sucessão é feita por ordem alfabética. O governo do Uruguai entregou o cargo no prazo, mas os governos brasileiro, argentino e paraguaio opuseram-se à transferência. Não houve surpresa.

Tanto no Brasil quanto na Argentina a diplomacia tem sido menos simpática ao bolivarianismo e menos tolerante à demora em cumprir o protocolo de adesão. As autoridades paraguaias dão ênfase a essas formalidades, mas, além disso, têm contas a ajustar.

Afinal, o ingresso da Venezuela ocorreu quando o Paraguai foi suspenso, em 2012, depois da cassação do presidente Fernando Lugo pelo Congresso. As presidentes Dilma Rousseff e Cristina Kirchner conseguiram a adesão do colega uruguaio José Mujica, inicialmente hesitante,  à tese de golpe. A oposição do Senado paraguaio era o último obstáculo à participação venezuelana. Com a suspensão temporária, esse entrave foi removido.

O governo brasileiro havia proposto, recentemente,  a extensão do mandato uruguaio até agosto. Até lá se discutiria uma solução para o impasse. As autoridades uruguaias discordaram da proposta e desocuparam a presidência na sexta-feira 29/7. Em carta enviada aos demais membros do bloco, o governo venezuelano logo se declarou no exercício da presidência.

O chanceler paraguaio, Eladio Loizaga, rejeitou imediatamente a decisão venezuelana, classificando-a como unilateral e alegando ser necessário o consenso dos membros do Mercosul.  Como sempre havia ocorrido, só uma reunião de chanceleres e de chefes de governo poderia sacramentar a transferência, argumentou.

Serra e a Venezuela

A reação de Brasília foi conhecida na segunda-feira e rendeu a manchete do Estado de S. Paulo no dia seguinte: “Brasil rejeita Venezuela na presidência do Mercosul”. O chanceler José Serra explicou a posição brasileira em carta aos ministros de Relações Exteriores da Argentina, do Paraguai e do Uruguai.

A Venezuela, segundo ele, deixou de cumprir “disposições essenciais” – 102 normas – para a plena participação no bloco. Além disso, segundo o ministro,  faltou o consenso necessário à passagem da presidência.  Como seu colega paraguaio, ele negou o caráter automático da sucessão. “Serra ignora troca de chefia no Mercosul” foi o título da reportagem publicada no mesmo dia no Valor.

Em cadeia de TV, na quarta-feira à noite, o presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, revelou talento para o trocadilho, jogando com as palavras “demacrado” (debilitado, enfraquecido, em espanhol) e Macri. “Agora nos persegue a oligarquia paraguaia, corrupta e narcotraficante”, disse Maduro. “Agora nos persegue o demacrado Macri da Argentina, fracassado, repudiado por seu povo. E agora nos persegue a ditadura imposta no Brasil”.

Nesse pronunciamento, Maduro reforçou os comentários feitos poucos dias antes por sua ministra de Relações Exteriores, Delcy Rodríguez. Segundo a chanceler, a Venezuela era perseguida pela “tríplice aliança de torturadores da América do Sul”, formada por Argentina, Brasil e Paraguai. Grandes jornais brasileiros continuaram dando ênfase ao conflito, mas desperdiçaram a fala de Maduro.

Na quinta-feira, em Montevidéu, diplomatas brasileiros, argentinos, paraguaios e uruguaios discutiram a possível formação de um comando compartilhado para o bloco, mas o encontro terminou sem acordo. “Mercosul ficará ao menos mais duas semanas sem chefia”, informou na edição de sexta-feira a Folha de S. Paulo. Os quatro governos ofereceram a Caracas uma semana, até a sexta-feira seguinte, para mostrar o cumprimento das condições legais para a adesão plena ao bloco.

“Se os quatro quiserem que [o Mercosul] funcione, vai funcionar”, disse o subsecretário geral do Itamaraty para América do Sul, Central e Caribe, Paulo Estivallet, citado em reportagem do Estadão. Em Brasília, o ministro Serra insistiu na formação de um conselho informal para tocar provisoriamente os negócios do bloco.

Neste momento, o assunto externo mais importante do Mercosul é a negociação do acordo comercial com a União Europeia, um empreendimento iniciado nos anos 90 e ainda sem solução.  Além disso,  os governos do Brasil e da Argentina têm mostrado interesse em mudar a pauta seguida pelos governos do PT e dos Kirchner, concentrada na Rodada Doha e na integração com países emergentes e em desenvolvimento.

A grande rodada murchou e as negociações multilaterais foram retomadas, a partir da reunião ministerial de Bali, com ambições menores. Mas a pauta do Mercosul poderia ser muito mais ambiciosa, com maior empenho em negociações com grandes mercados e maior participação na multiplicação de acordos internacionais. Paraguaios e uruguaios (antes do governo Mujica) haviam defendido a ampliação dos objetivos do bloco. Também as condições de funcionamento do bloco, prejudicadas por barreiras internas, serão provavelmente rediscutidas.

Se a mudança de rumo do Mercosul se confirmar, a diplomacia comercial do Brasil poderá render pautas muito mais complexas e interessantes que as da última década.  Isso poderá exigir uma reavaliação das condições de cobertura da política econômica externa.

***

Rolf Kuntz é colaborador de O Estado de São Paulo e professor da USP