Seis anos após o referendo sobre o direito de os brasileiros portarem armas de fogo, a questão do desarmamento volta o noticiário. Em 2005, houve um amplo debate na sociedade e a resposta nas urnas foi clara: 64% da população votante optaram pela manutenção do comércio de armas e munições. A retomada da discussão, agora, é motivada pelo massacre em uma escola em Realengo, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Na manhã do dia 7/4, o ex-aluno Wellington Menezes de Oliveira invadiu a escola Tasso da Silveira e em poucos minutos matou 12 estudantes, feriu outros 12 e |
matando após ser atingido na perna pelo tiro disparado por um policial.
Dias depois da tragédia, o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP),
apresentou um projeto de decreto legislativo propondo a realização de novo um
plebiscito sobre o tema. A medida foi considerada inoportuna, uma vez que nasceu
em meio à comoção causada pela morte das crianças. O governo federal afirmou que
não é favorável a uma nova consulta pública, mas adiantou para o início de maio
a campanha do desarmamento, promovida periodicamente. E autoridades ressaltarem
em entrevistas que o número de homicídios tende a cair após a realização da
campanha. Especialistas em violência defendem que não é hora de uma nova votação
e lembram que o Estado deveria fiscalizar com maior rigor a aplicação do
Estatuto do Desarmamento. A lei está em vigor no Brasil desde 2004 e estabelece
regras para a aquisição e o porte de armas.
Em meio à polêmica sobre a questão, o programa televisivo do Observatório
da Imprensa, exibido ao vivo na terça-feira (19/4) pela TV Brasil, analisou
o papel da imprensa nessa discussão. Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de
Janeiro o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) e o sociólogo e cientista
político Antônio Rangel Bandeira. Freixo é presidente da Comissão Parlamentar de
Inquérito das Armas da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e
presidiu a CPI das Milícias, que indiciou 225 envolvidos e apresentou 58 medidas
concretas para acabar com essa prática criminosa. Bandeira coordena o Projeto de
Controle de Armas do Instituto Viva Rio. Pós-graduado pela York University, em
Toronto, foi diretor do Instituto de Estudios Sociales y Económicos do Chile e
do departamento de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro. Em Brasília, participou o deputado federal Sandro Mabel (PR-GO).
Defensor da indústria de armamentos, o deputado é autor de um projeto para a
colocação de detectores de metais nas escolas.
De criminoso a vítima
Em editorial, Alberto Dines ressaltou que a sociedade deseja não só refletir
sobre os fatos, mas também analisar a cobertura da imprensa. É preciso, na
avaliação de Dines, evitar que a ação de Wellington Menezes de Oliveira se torne
uma ‘mania’ no Brasil: ‘O sensacionalismo é nocivo quando se faz do criminoso
uma vítima e o seu crime, façanha’. O jornalista sublinhou a importância do
cumprimento da legislação em vigor. ‘A paranóia de Wellington Oliveira
converteu-se em tragédia porque o Estatuto do Desarmamento não está sendo
devidamente obedecido, esta é a verdade. O medo só desaparecerá quando o cidadão
sentir-se protegido pelo Estado.’
A reportagem exibida no programa mostrou diversas opiniões. Para o jornalista
Leão Serva, diretor de Redação do Diário de S.Paulo, o ‘tempero’ do
noticiário sobre violência deve ser cauteloso. ‘Nós não podemos acentuar
sensações, por si mesmas já dolorosas, que os leitores terão diante dessas
notícias. Ao mesmo tempo, não podemos correr o risco de, de alguma maneira,
catalisar ou provocar uma nova loucura dessas’, disse o jornalista. Serva
avaliou que a imprensa em geral saiu-se bem na cobertura, mas houve problemas
pontuais: ‘O principal telejornal brasileiro fez esteticamente uma edição de mau
gosto no dia seguinte, com música fúnebre a cada comercial’. Serva ponderou que
muitos jornais erraram ao relatar como único fator desencadeante do crime o
bullying sofrido por Wellington no passado. Dias depois do ataque, na
opinião de Serva, houve uma ‘overdose desnecessária’ na cobertura com a
divulgação massiva de fotografias e vídeos do criminoso.
O Observatório também entrevistou Daniel Cerqueira, pesquisador do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que em sua tese de doutorado
apontou que a cada aumento de 1% nas armas disponíveis, sobe em 2% o número de
homicídios. ‘Propor um plebiscito neste momento é tentar calçar o sapato antes
das meias’, comparou Cerqueira. Na avaliação do pesquisador, medidas concretas
poderiam ser tomadas ao invés de dividir a sociedade. O aperfeiçoamento e a
fiscalização da aplicação do Estatuto do Desarmamento seria mais efetivo do que
realizar uma nova votação. O ex-deputado federal Raul Jungmann, defensor da
proibição do comércio de armas de fogo e munições durante os trabalhos da CPI
das Armas do Congresso Nacional, entre 2005 e 2006, afirmou que mudar a regra
seis anos depois da votação ‘é golpe’. Jungmann disse que um novo referendo
seria um desrespeito à vontade soberana do povo e que não se pode fazer
consultas populares ‘ao sabor do momento’. ‘A tragédia de Realengo é dolorosa e
a gente torce que não se repita. Mas nem por isso vamos desconhecer a vontade
majoritária dos brasileiros que se expressaram a favor do ‘não’’, afirmou
Jungmann.
Letra morta
No debate ao vivo, Dines perguntou ao sociólogo Antônio Rangel Bandeira o
porquê de o Estatuto do Desarmamento estar sendo ‘varrido para debaixo do
tapete’. Bandeira explicou que a legislação brasileira sobre desarmamento é uma
das melhores do mundo e contou que, atualmente, oito países estão mudando a
legislação inspirados no estatuto adotado no Brasil. ‘No que foi aplicado, foi
um sucesso. A campanha que retirou, voluntariamente, meio milhão de armas de
circulação, combinada com a proibição de as pessoas andarem armadas na rua
reduziu, segundo o Ministério da Saúde, em 11% os homicídios por armas de fogo
no Brasil’, afirmou o sociólogo. Grande parte do Estatuto continua apenas no
papel por resistência das autoridades em aplicá-lo. Não há disposição para
enfrentar o poderoso interesse do comércio de armas e munições no país.
‘A questão de Realengo expõe a facilidade com que o criminoso comprou uma
arma’, alertou Bandeira. O sociólogo chamou a atenção para o fato de que, na
prática, não há grandes dificuldades para comprar armas e munições no Brasil,
tanto no mercado legal quanto no ilegal. Existem quinze requisitos necessários
para adquirir esses produtos, como curso de tiro e teste psicotécnico, mas a
maioria dos lojistas permite que despachantes ofereçam documentação falsificada
para os clientes. ‘Há uma ausência de fiscalização sobre as lojas. É tão fácil
comprar armas e munições na legalidade quanto na ilegalidade porque a lei – que
é excelente – não está sendo aplicada’, criticou o representante do Viva Rio.
A tragédia de Realengo, para Bandeira, é uma importante amostra da situação
calamitosa do controle de armas no Brasil e pode ajudar a desfazer a ‘cortina de
fumaça’ que paira sobre a questão. Um dos mitos que pode ser esclarecido é o de
que as armas em circulação no Brasil seriam, em sua maioria, contrabandeadas.
Não passa de 10%, de acordo com o sociólogo, a quantidade de armas ilegais
vindas de outros países. ‘As armas saem da indústria brasileira, do Rio Grande
do Sul e de São Paulo, e na medida em que saem das fábricas já começam a ser
desviadas. O transporte é fiscalizado pelo próprio produtor’, criticou Bandeira.
Outro mito é o da ‘arma do bem’. O sociólogo comentou que um dos revólveres
usados no crime foi anteriormente roubado da residência de uma pessoa ‘do bem’.
Antônio Rangel Bandeira destacou que a arma de fogo não é um bom instrumento
para defesa e acaba indo parar na mão dos bandidos.
De onde vêm as armas?
Sandro Mabel avaliou que o Brasil conta com leis suficientes sobre o assunto
e comentou que se essas fossem cumpridas, Wellington Menezes não poderia ter
adquirido as armas e munições usadas no massacre de forma legal. O deputado
disse que um novo plebiscito custaria ao Brasil cerca de 1 bilhão de reais. Para
o deputado, as campanhas de desarmamento da população devem vir acompanhadas de
um recadastramento das armas e munições.
‘A arma brasileira é rastreada. Você não vê arma brasileira exportada
entrando novamente no Brasil porque bandido não quer arma brasileira. Ele quer
uma arma que não tenha identificação e eles usam, geralmente, armas mais
velhas’, garantiu o deputado. A maioria das armas roubadas, segundo o deputado
Mabel, vem das empresas de segurança privada. ‘Nós temos que trabalhar em cima
de controles. Se a indústria que fornece uma arma a desvia no caminho, ou esta
arma não tem uma rastreabilidade, nós temos que fechar essa indústria’, propôs
Mabel. O deputado sublinhou que é favorável ao desarmamento, mas defende que se
respeite o direito do cidadão de portar uma arma. ‘As armas não vão acabar. Se
parar de fabricar no Brasil, virão de fora. Bandido não tem falta de arma’,
disse Mabel.
Na avaliação do deputado Marcelo Freixo, o crime de Realengo não pode servir
de padrão para ações do governo porque foge de qualquer parâmetro de
normalidade. Neste episódio específico, ações preventivas contra a violência não
surtiriam efeito. Freixo apontou um erro no debate sobre o crime de Realengo: o
pouco espaço dedicado à discussão sobre a quantidade de munição em poder do
assassino. ‘No episódio de Realengo, o grande debate feito pela imprensa foi
sobre as duas armas. Pouca gente falou da quantidade enorme de munição na mão
desse rapaz’, avaliou o deputado.
Freixo contou que a ideia da CPI da Alerj destinada a investigar o tráfico de
armas e munições no Rio de Janeiro surgiu partir da grande quantidade de
armamentos apreendida em poder de bandidos no Complexo do Alemão, no final de
2010. As cenas de traficantes armados com fuzis fugindo da comunidade motivaram
os deputados a compor a CPI, instalada há um mês.
Fora de hora
Os trabalhos da comissão restringem-se ao Rio de Janeiro, mas Freixo destacou
que existe uma singularidade no panorama carioca: os traficantes de drogas estão
fortemente armados. Além disso, os grupos milicianos, formados fundamentalmente
por agentes públicos da área de segurança, conseguem se armar com uma grande
facilidade – como foi constatado pela CPI das Milícias, realizada em 2008. Para
Freixo, não é hora de pensar em um plebiscito, mas sim de aprimorar a
fiscalização do controle de armas. ‘Há uma série de coisas que podem ser feitas.
Algumas não precisam ser tão mirabolantes assim. Esse discurso de que ‘nós temos
que enfrentar o todo’ muitas vezes é feito para não fazer nada. A gente tem que
tomar um pouco de cuidado com isso’, alertou. O debate sobre as armas
contrabandeadas pela fronteira é um exemplo desta situação. Cria-se um mito de
que nada pode ser feito e, com isso, instala-se a inércia no poder público.
***
A busca pela paz
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na
TV nº 589, exibido em 19/4/2011
Não há volta: a sociedade brasileira quer discutir os fatos e, ao mesmo
tempo, quer discutir como a mídia fez o registro. O massacre de Realengo é a
prova disso.
Não se trata apenas de um psicopata que disparou mais de 60 tiros na escola
onde estudou e matou 12 crianças desconhecidas. Trata-se de evitar que isso
jamais se repita, nem vire mania, como aconteceu nos Estados Unidos. O
sensacionalismo é nocivo quando se faz do criminoso uma vítima e o seu crime,
façanha.
Realengo ficará muito tempo associado ao maior massacre escolar do Brasil,
mas também poderá ser lembrado como exemplo de uma comunidade que está sabendo
superar o luto engajada numa pauta humanitária. Realengo pode entrar para a
nossa história se convencer nossos governantes a acreditar nas leis existentes e
implementá-las com todo o rigor, ao invés de esperar milagres com novos
códigos.
A paranóia de Wellington Oliveira converteu-se em tragédia porque o Estatuto
do Desarmamento não está sendo devidamente obedecido, esta é a verdade. O medo
só desaparecerá quando o cidadão sentir-se protegido pelo Estado; o revólver no
bolso ou na gaveta não acaba, só aumenta a insegurança.
Realengo deve chamar a nossa atenção para a calamitosa situação da saúde
pública na esfera das doenças mentais. Realengo deve converter-se em marco de
uma cultura da paz.
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A mídia na semana
** Silvio Santos não gosta muito de jornalismo, mas a nova telenovela do SBT,
Amor e Revolução, embora fraquíssima como ficção, é excelente como
documentário. Daí as pressões em cima do apresentador. A trama e a realização
são primárias, mas os depoimentos dos torturados no fim dos capítulos é
compensador, merecem ser guardados, discutidos. Silvio Santos já foi o
queridinho dos generais, agora tenta ser o herói das suas vítimas.
** O vídeo feito pelo matador do Realengo, apresentado com exclusividade pelo
Jornal Nacional na quarta-feira (13/4), continua sendo muito discutido. O
autorretrato do assassino está sendo considerado como um estímulo a outras
paranóias e outras matanças. Por enquanto ninguém lembrou de cobrar da polícia
do Rio uma explicação para a estranha preferência por um veículo em detrimento
dos demais. Se todos tivessem acesso simultâneo ao vídeo, cada veículo
escolheria uma maneira de apresentá-lo e pelo menos um se lembraria de exibir
aquela insanidade ao lado de um médico.