Vou enfrentar o desafio de escrever sobre um fato já amplamente explorado por inúmeras angulações, em reportagens, artigos, telejornais, entrevistas etc. Como aprecio correr certos riscos, lanço-me a mais este. Refiro-me à dupla pantomima a envolver: 1) o processo de votação a respeito da cassação (ou não) do presidente do Senado e do Congresso, Renan Calheiros; 2) a cobertura da mídia.
Sob o ponto de vista de quem, até onde é possível, procura exercitar o olhar isento, na condição de profissional na área de Teoria da Comunicação e, como tal, procura ler os signos de uma dada narrativa, decorrem as observações com as quais se justifica o presente artigo.
Em princípio, a ‘narrativa política’ em torno do processo de cassação de Renan Calheiros mais se presta a uma comédia de erros do que qualquer outra coisa. Ao classificar o acontecimento político como uma ‘teatralidade cômica’, fique claro – em nome da isenção – que da comédia (e em igualdade de condições) tanto colaboraram as forças governistas quanto as hostes oposicionistas. As duas vertentes patrocinaram uma encenação deplorável para o fortalecimento da democracia. Ambas se comportaram competentemente quanto ao escopo fisiológico, mas prestaram, eticamente, mais um episódio nada edificante para a imagem da política, aos olhos do cidadão comum, o que pontuarei adiante. Por sua vez, a mídia em nada colaborou para inocular no cidadão o dever de este não abdicar da preservação da liberdade que só o vigor da democracia pode assegurar. Tal aspecto, igualmente, adiante, dele tratarei.
A comédia política
De parte a parte, governistas e oposicionistas, negligenciando o cuidado com valores maiores, abusaram do direito de ofender a inteligência mediana (que dizer da inteligência mais aparelhada) da população brasileira. Para começar, será que o Conselho de Ética do Senado, até hoje, não teve tempo para definir e redigir um regimento interno no qual se fixem procedimentos? Se os senadores que integram o egrégio Conselho até hoje não souberam explicar, menos ainda, eu. Fica o enigma suspenso no ar.
A questão tem início em 2003, quando o senador Tião Viana (PT) teve seu projeto em favor da extinção do voto secreto recusado majoritariamente. A oposição, na época, com os mesmos atuais representantes, votou pela preservação do sigilo (pelo PSDB: Artur Virgílio, Tasso Jereissati e Eduardo Azeredo; pelo DEM (na época, PFL): Cesar Borges, Heráclito Fortes, João Agripino Maia, Edison Lobão e Marco Maciel; por fim, pelo PMDB (na época, oposição): Garibaldi Alves, Gerson Camata, José Sarney, Mão Santa e Leomar Quintanilha.
No episódio recente, os mesmos oposicionistas ergueram a ‘bandeira’ em prol da eliminação do expediente que propiciaria a plena transparência. O curioso nessa ‘historieta’ é que nenhum deles foi capaz de explicar os motivos que, em 2003, os levaram ao veto e que motivos outros os fizeram mudar de idéia em 2007. Bem, por outro lado, os governistas, nas figuras dos senadores Eduardo Suplicy e Delcídio Amaral, ambos do PT, aguardaram a véspera da votação do processo de cassação para, em tempo regimental sabidamente inviável, forçar a alteração das normas internas do Senado. Ora, será que, ao longo de 120 dias, nenhum deles teve a brilhante idéia de propor, em tempo hábil, a análise da questão? É simples: jogo para a platéia. Como a comédia precisava de maior densidade, à altura de levar o ‘espectador-cidadão’ ao ápice do riso, haveria ainda um fato a mais: refiro-me ao voto de abstenção. Imaginar que, para casos de julgamento de cassação, exista a ‘terceira via’, sob a ininteligível rubrica da ‘abstenção’ é concluir que a classe política não se dá ao respeito.
O voto do réu
Como pode ser crível que, após longo processo, com amplo espaço para exposição de fatos (a favor e contra), um representante do cidadão-eleitor possa fazer uso do abjeto ‘voto-abstenção’? Fica óbvio que a ‘terceira via’ existe com a finalidade meramente estratégica que, dependendo da situação, tanto pode servir a interesses governistas quanto para a logística oposicionista. É, portanto, um recurso a ser, em nome da ética, extirpado, caso a classe política se interesse pela respeitabilidade ao nobre exercício de representação.
Outro episódio que exalou certo odor incômodo foi o conflito entre deputados e agentes de segurança do Senado. Fernando Gabeira (PV) e Raul Jungman (PPS), sob amparo de concessão de liminar expedida pelo STF, tentaram ingressar na ‘sessão secreta’ do Senado. Seguranças que, por sua vez, ainda desconheciam a autorização cumpriram com o dever de impedir o acesso de quem senador não fosse. E deu no que deu. Ora, será que os dois deputados não poderiam aguardar o momento adequado para o ingresso autorizado? Para que tanta aflição em querer entrar para uma sessão que ainda não se iniciara? Que papelão! A propósito de minha tentativa de isenção, lembro a leitores que, em artigo da edição anterior do OI, usei declaração de Fernando Gabeira para referendar argumento que, no artigo, expunha. Uma semana após, cito o mesmo deputado para externar a discordância quanto a seu procedimento.
Bem, a comédia ainda teria mais um ato: a declaração do réu, senador Renan Calheiros, ao afirmar que um dos votos de abstenção foi o dele. Do episódio, extraem-se duas conclusões (e não sei qual delas é a mais insólita): 1) qual é a justificativa ética (ou jurídica) que permite um réu votar no processo movido contra si? (Kafka não imaginou essa situação); 2) se o próprio réu, segundo consta, votou pela abstenção, conclui-se que ele próprio não tem convicção da inocência. Não é, no fundo, um quadro engraçado? Pois o absurdo da situação ainda aponta para algo pior. São 81 senadores. Imaginando que 40 votassem contra o réu, obviamente outros 40 teriam votado a favor do réu. Quem, pois, faria a diferença? O voto do réu. Numa conjuntura dessa ordem, pode-se levar a sério? A resposta fica em aberto.
A farsa da mídia
No que compete à função da mídia, tema recorrente no OI, cabe, com a mesma tentativa de isenção com a qual abordei os descaminhos éticos da política nacional, observar preocupantes desvios de propósitos de um setor indispensável à eficiência para a função à qual se destina. Vamos às ocorrências e analisemos como a mídia as reportou.
Será que a mídia contribuiu positivamente ao publicar matérias (impressas e eletrônicas), dando conta da quantificação de votos dos senadores? Que intenções efetivamente jornalísticas pode ter, por exemplo, a Folha de S. Paulo, ao relatar a declaração pública de um voto que foi secreto? O fato em si é pífio e contrário à seriedade da função jornalística. Notícias deram conta de que, dependendo da matéria, 41, 43 ou 45 senadores teriam votado pela cassação de Renan Calheiros. Quem, em sã consciência, pode aferir quem votou o quê, considerando o caráter sigiloso do voto? Só o propósito desestabilizador pode dar sentido a matérias dessa ordem. Daí decorrem duas possibilidades: 1) violação no painel eletrônico; 2) falsidade ideológica nas declarações. Como aferir uma ou outra? Lembremo-nos do caso, na gestão FHC, do painel eletrônico que conduziu à renúncia do então presidente do Senado, o falecido ACM. Bem, seria o caso agora? Custa-me crer a reedição do delito. A segunda opção é mais verossímil. Quanto a esta, não há nenhuma possibilidade técnica a serviço da elucidação. O problema é que, agora, já que a maioria dos senadores, segundo as matérias publicadas, assegurou haver votado contra Renan, fica o impasse sobre qual dos dois caminhos possíveis levariam à bancarrota o Senado. Se mentiram, haveria motivo para quebra do decoro parlamentar. Se violaram o sistema eletrônico, haveria motivo para anulação da votação.
Diante do quadro posto, seja pela mídia, seja pela cumplicidade de todos os senadores que declararam seus votos, caberia apenas, na próxima sessão do Senado, cada senador ir à tribuna e ratificar seu voto. Uma vez computados, teríamos, efetivamente, um quadro de aporia institucional. Este é o resultado do encontro de duas esferas que, em algum nível, acusam procedimento degradado: a mídia ao perguntar o que não deveria e os senadores ao responderem o que não poderiam.
O ‘fulaninho jornalista’
O fato relatado no parágrafo anterior poderia, em princípio, ser justificado como matéria jornalisticamente esclarecedora, levando em conta futuros julgamentos nos quais o próprio presidente do Senado está indiciado. Acreditando que, para os dois outros processos nos quais Renan Calheiros é alvo, se venha a definir o voto aberto, a relação atual de quem teria votado contra ou a favor, fato publicado pela mídia, serviria, no futuro, para demonstrar quem teria mentido (ou não) na recente votação. Não, o fato futuro não asseguraria o fato passado. É simples: num processo futuro no qual a votação seja aberta, o parlamentar poderá alegar que, no processo anterior, ele julgou ‘x’ e, no processo seguinte, julgou ‘y’. Pronto, quem poderá provar o contrário? Isto quer dizer que, se a mídia fosse mais responsável, procuraria evitar situações multiplicadoras de crise. Igualmente, se os parlamentares fossem mais sérios, éticos e melhor preparados, recusariam responder a uma pergunta de jornalista cujo conteúdo estava protegido pelo sigilo.
Decididamente, a mídia não tinha o direito de gerar matérias especulativas em torno de quem votou o quê. O resultado final é aquela difusão de matérias gosmentas que em nada contribuem para o amadurecimento da prática política no país, cujo perfil está degradado, seja por instâncias governistas, seja por estratégias oposicionistas e, a reboque, a atividade midiática. No tocante a esta, ainda houve um arremate nada auspicioso. Refiro-me à recente viagem do presidente Lula que, num giro pela Escandinávia, foi obrigado a responder, numa coletiva em Oslo, na última sexta-feira, a uma pergunta absolutamente inapropriada, cobrando dele um depoimento a respeito do que pensava quanto à absolvição de Renan Calheiros.
O presidente não fez por menos: em plena viagem internacional, voltada para acordos comerciais entre nações, vem um ‘fulaninho’ indagar a respeito de questões domésticas? Paciência… Se o ‘fulaninho’ é jornalista, eu sou físico nuclear. Que lástima! A pergunta formulada ao presidente, naquele contexto, é a negação da própria essência do que represente o belo exercício do jornalismo. Em reforço à avaliação proposta, há o argumento de que, convocando a memória, não é a primeira vez na qual o atual presidente, em missão oficial, no estrangeiro, foi instado a comentar fatos internos. Em ocasiões anteriores, o presidente respondeu da mesma maneira. Será que o ‘fulaninho jornalista’ imaginava desfecho diferente?
Se a corda arrebentar…
Enfim, se a mídia efetivamente estivesse interessada em desvendar ‘manobras’, teria, para esse propósito, um cardápio apetitoso. Querem ver? 1) Entrevistar cada senador que, em 2003, votou contra a extinção do voto secreto e cobrar dele a justificativa para, agora, haver declinado o contrário; 2) Entrevistar cada senador que, outrora, votou contra a CPMF e, agora, alardeia pela prorrogação da mesma; 3) Produzir alguma matéria sobre a data da votação. Terá sido mera coincidência o fato de a votação pela cassação (ou não) de Renan Calheiros calhar (sem trocadilho) numa data na qual, horas após, estava, há muito tempo, agendado o jogo entre Brasil e México? E, na mesma noite, jogariam, em lugares diferentes, Flamengo e Corinthians?
O que pretendo pontuar, na condição de quem é um profissional da área de Teoria da Comunicação, não sendo jornalista e, menos ainda, político-partidário, é chamar atenção para a possibilidade de o casamento das distintas situações (política / futebol) ter servido, em caráter subliminar, para rebaixamento na taxa de indignação que a população brasileira possa ter vivenciado, horas antes, com o resultado da votação e, horas depois, com o envolvimento emocional em torno da ‘paixão brasileira’ (seleção) e, não bastasse, dois outros jogos a envolverem as duas maiores torcidas nacionais (Flamengo – Rio / Corinthians – SP). É apenas uma observação que, num certo aspecto, dialoga com o artigo assinado na edição anterior do OI.
A título de conclusão sobre algo que, a rigor, conclusão não comporta, fica o recado para as duas esferas (política e mídia): não abusem da paciência do cidadão-eleitor. Pensem no futuro da nação. Aproveitemos a dádiva de uma natureza que nos preservou de vulcões e outras catástrofes naturais e não nos esforcemos pela geração de horripilantes ameaças que podem advir do estopim humano. Não pensem que a corda jamais arrebentará. A questão é que, se arrebentar, nada será capaz de conter sua fúria indiscriminada. Nessa hora, mídia, paixão política e fervor esportivo não servirão para coisa alguma.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)