Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Desinformar-se e enfrentar a investida dos meios de comunicação capitalistas’

Das periferias para o centro, a comunicação alternativa vai buscando brechas para transferir o poder da palavra dos maiores aos pequenos. Modificando a ordem dos caminhos da comunicação, o movimento zapatista, do México, experimentou, na década de 1990, a possibilidade de, por meio da internet, ser ouvido no mundo desde sua realidade local.

Uma das protagonistas dessa ação foi Gloria Muñoz Ramírez, jornalista que acompanha o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) desde seu levante em 1994, no estado de Chiapas. Gloria segue militando na contra-informação. Seu mais novo projeto é dirigir a revista mensal Desinformémonos.

Em janeiro deste ano, o jornal Brasil de Fato iniciou um intercâmbio de conteúdo com a publicação. Com versão na web (http://desinformemonos.org), a iniciativa envolve colaboradores de inúmeras partes do planeta e é traduzida para o português, grego, italiano, inglês, francês, alemão, e a língua indígena tseltal, bastante falada no sul do México.

A seguir, a diretora de Desinformémonos fala sobre esse projeto internacional e a experiência acumulada em anos junto aos zapatistas.

‘Saber escutar a terra’

Pode nos falar um pouco de como nasceu o projeto Desinformémonos?

Gloria Muñoz – Consideramo-nos uma ferramenta de luta por um mundo melhor, ou seja, por um mundo justo, livre e democrático. Aderimos às batalhas que se passam abajo y a la izquierda, à margem do poder e dos poderosos. Estamos do lado da autonomia dos povos, pelo direito a decidir sobre nossos próprios destinos. Somos, sem ambiguidades, fruto de uma luta que, desde 1º de janeiro de 1994, nos transformou: o levantamento do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). E é no terreno da ‘desinformação’ que atuaremos.

Por que Desinformémonos?

G.M. – Pegamos o nome emprestado de Mario Benedetti [poeta e escritor uruguaio morto em maio do ano passado]. Estávamos preparando esse projeto quando fomos surpreendidos pela triste notícia de sua morte. Pusemos para tocar um CD com seus poemas, gravado para La Casa de las Américas, como uma singela homenagem a esse grande poeta e lutador das causas justas. De repente, no meio da incipiente edição dessa revista, lá estava o poema: desinformémonos, hermanos/ hasta que el cuerpo aguante/ y cuando ya no aguante/ entonces decidámonos/ carajo decidámonos/ y revolucionémonos.

Depois, veio o jogo de palavras. Desinformar-se e enfrentar a investida dos grandes meios de comunicação capitalistas, aqueles que nos dizem o que, como, quando, onde e por que, do ponto de vista – e para benefício – dos poderes políticos e econômicos, dirigido àqueles que se creem os donos do mundo. Desinformémonos: desfazer-nos do que nos oferecem e munirmo-nos de Outra Informação, geralmente invisível, na qual os depoimentos dos ‘ninguéns’, como diz Eduardo Galeano [jornalista e escritor uruguaio], são o que nos dá sentido e corpo, horizonte e destino. Os povos têm suas próprias vozes e eles mesmos se encarregam de que os demais as escutem. O que nos propusemos em Desinformémonos é ser olhado e ouvido… caixinhas de ressonância. Escutar, como diria o estimado escritor [inglês] John Berger, ‘as vozes da terra… sempre em baixo’. Sem confundir, como ele mesmo nos alerta, ‘a intenção deliberada de desinformar com o estar desinformado’. A resistência, nos disse no processo de inauguração desse espaço, ‘está em saber escutar a terra. A liberdade é descoberta pouco a pouco, não do lado de fora, mas nas profundidades da prisão’.

Acesso à internet é relativamente novo

Quem são os colaboradores do projeto?

G.M. – Bom, somos pessoas de muitas partes do mundo. Nosso ponto de vista pretende ser global e abarcar lutas e resistências dos cinco continentes. Atualmente, tocam esse projeto homens e mulheres do México, Argentina, Brasil, Estados Unidos, Alemanha, França, Espanha e Itália, com colaboradores na Grécia, Palestina, Turquia, Irã, Bélgica, Chile, Grã-Bretanha, República Árabe Saaraui e Honduras.

Em sua experiência junto aos zapatistas, foi possível acompanhar como eles utilizaram de maneira muito hábil a internet para comunicar suas posições para todo planeta. Como isso se deu?

A ideia do uso da internet pelos zapatistas nasceu como um mito que, em muitos sentidos, persiste ainda hoje. Em 1994, a internet ainda era algo muito incipiente e os primeiros comunicados do EZLN eram xerox distribuídos a nós jornalistas na cidade de San Cristóbal de las Casas, em Chiapas. Com o tempo, um exército de mulheres e homens anônimos se incumbiu de difundir as palavras zapatistas pela internet. Na selva em que vivem os zapatistas, não havia sequer luz, que dirá um computador. Assim, o mérito da difusão da palavra zapatista no ciberespaço não é propriamente zapatista, mas de todos que acreditaram nesse movimento e fizeram circular seus comunicados e pronunciamentos. Atualmente, algumas comunidades em resistência têm acesso à internet, mas isso é algo relativamente novo e não pode ser generalizado.

Uma revista de bairro e comunitária

De que maneira a internet pode fazer frente aos meios de comunicação tradicionais em favor dos movimentos sociais?

G.M. – Esse ciberespaço, ainda que criado pela elite, tem servido de ferramenta, vínculo e ponte para os setores da base nos últimos quinze anos. As lutas e a resistência dos povos campesinos e indígenas, dos migrantes, trabalhadores, estudantes, jovens e um longo etcétera, transitam pela rede produzindo identificações onde menos se esperava, isso apesar do acesso à internet ainda estar longe de ser uma realidade, ao menos nos países do chamado Terceiro Mundo. Mas isso não é necessariamente uma carência. Provavelmente não necessitam dessa ‘conexão’. O que desejamos com Desinformémonos é aproveitar esse espaço virtual, não apenas por falta de recursos para nascer em papel, como gostaríamos, mas porque reconhecemos nesse meio uma alternativa para conhecer o outro, a outra, suas histórias e tragédias, de um lado ao outro do planeta. Desejamos, como diria o mestre do jornalismo [bielo-russo] Ryszard Kapuscinski, ‘converter-nos imediatamente, desde o primeiro momento, em parte de seus destinos’. Afinal, somos os mesmos, as mesmas. E estamos na mesma situação. Entretanto, a internet, ao menos no México e em muitos países da América Latina, não é um meio acessível para toda a população. Nas áreas rurais e nos bairros de periferia, as pessoas não estão conectadas à rede. Essa é a razão, creio, de que o principal meio de comunicação popular, por excelência, continua sendo o rádio e de que, até agora, não haja espaço para se substituir a comunicação alternativa em papel. Insisto que estou falando do mundo dos de baixo.

É por isso que na Desinformémonos criamos uma revista de bairro e comunitária em PDF, com o objetivo de que seja distribuída em comunidades que não têm acesso à internet. Essa singela revista pode ser distribuída como ‘folhas soltas’ ou pregada em algum muro como jornal-mural.

Comunicação numa linguagem diferente

Com a dificuldade de transmitir mensagens ao grande público, como os movimentos sociais são mostrados hoje nos grandes meios de comunicação mexicanos?

G.M. – Os movimentos sociais não aparecem nos grandes meios de comunicação do México e, quando aparecem, são satanizados e desprestigiados. Poderia dizer que apenas o jornal La Jornada (considerando os meios de comunicação massiva, não os marginais nem alternativos) dá espaço para as lutas sociais do país. É por isso que, cada vez mais, os movimentos vêm criando seus próprios meios, para que sua palavra seja conhecida. Ao mesmo tempo, crescem os meios alternativos, livres e independentes, ainda que com muitas limitações.

Nas revoltas de Oaxaca, a tomada das rádios foi a primeira ação dos movimentos mobilizados. O que isso pode significar?

G.M. – A Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) não apenas tomou as rádios e até mesmo a televisão comercial; ela criou uma rede de meios de comunicação. Essa rede serviu não só para difundir suas causas, mas para convocar, organizar as barricadas e as marchas e, sobretudo, a defesa da ocupação que mantiveram no centro da cidade. Tomar as rádios e a televisão foi muito significativo para mostrar a força popular do movimento, mas foi ainda mais relevante a forma como conseguiram conduzir a relação com as rádios alternativas, principalmente com a Radio Plantón, que é hoje um exemplo do grande poder que um meio dessa natureza pode significar, de ‘abajo y a la izquierda’, de dentro do próprio movimento.

Você acredita que os movimentos de esquerda conhecem a importância da comunicação em um processo de mudança?

G.M. – Acredito que os movimentos de esquerda estão cada vez mais conscientes da importância de uma comunicação do e para o movimento. Entretanto, acredito que enfrentamos grandes desafios, pois muitas vezes não comunicamos entre nós mesmos o que está acontecendo, não fazemos grande esforço para ultrapassar as barreiras impostas e fazer com que nossa palavra chegue ‘a outros como nós’. Na minha opinião, esse é um grande desafio, e devemos nos preocupar em não estar à margem, mas em atingir cada vez mais gente, sem preconceitos nem esteriotipização. Nunca sabemos onde ou quando haverá ressonância, temos que procurar por isso permanentemente. Ao mesmo tempo, acredito que outro desafio é a manipulação da linguagem feita pelos movimentos sociais de esquerda. Acho que devemos nos arriscar mais, jogar com as palavras e com as imagens, não ser tão sérios, mas ter a capacidade de rirmos, de sermos irônicos, de dar espaço ao jogo e à palavra lúdica. Esse, finalmente, foi outro dos ensinamentos dos zapatistas que, desde o princípio, comunicam-se com uma linguagem diferente, que incluem desde um conto, até uma piada ou uma canção.

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Da Redação do Brasil de Fato