Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Destemperos e jornalismo de mercado

Destemperos jornalísticos como os de Ali Kamel, um representante típico do chamado jornalismo de mercado, um gênero tão em voga no país, nem mereceriam respostas. Mas, em respeito aos leitores deste (espaço democrático) Observatório da Imprensa, vamos tentar analisar o que ele escreveu sobre o caso Tim Lopes em resposta ao artigo deste repórter, ‘Uma mancha no sindicalismo brasileiro’ [veja remissões abaixo].

Kamel seria, sem dúvida, uma referência para George Orwell se o escritor fosse atualizar o seu livro 1984 no Terceiro Milênio. Kamel, que hoje ocupa o cargo de diretor-executivo de Jornalismo da Rede Globo, deturpa a história, adaptando fatos aos interesses do seu empregador. Tem sido assim em O Globo, onde escreve quinzenalmente na página de opinião. Para se ter uma idéia dos destemperos jornalísticos diretor-executivo, vale lembrar um comentário que fez sobre o filme Central do Brasil, uma obra-prima cinematográfica que orgulha os brasileiros. Ele dizia, em síntese, pasmem, que a história do filme era ‘inverossímil’, pois jamais aconteceria algo semelhante em um raio de 500 metros da redação de O Globo.

Citar seus destemperos jornalísticos e deturpação de fatos seria ocupar um espaço tão grande que não valeria a pena fazê-lo para não cansar os leitores, mas se faz necessário para que o jornalismo brasileiro não fique manchado. Além das ‘verdades’ da Globo, que Kamel representa com entusiasmo, este diretor-executivo está neste momento travando uma ‘batalha’ com Paulo Henrique Amorim, pelo fato de o jornalista da Record ter lembrado, no portal UOL, o comportamento golpista da TV Globo no episódio da Proconsult. Até os postes do Rio de Janeiro sabiam que a TV Globo estava envolvida na tentativa de fraude que tinha por objetivo evitar a eleição de Leonel Brizola, em 1982.

O papel da emissora era o de massificar a ‘verdade’. E que ‘verdade’ era essa? A vitória do candidato de direita, Wellington Moreira Franco. Mas, diante da competência e coragem do jornalista Procópio Mineiro, que dirigia o jornalismo da Rádio Jornal do Brasil, o esquema foi desmontado e a TV Globo teve de se curvar aos fatos. Naquele novembro de 1982, Ali Kamel, que ainda não tinha ascendido em sua carreira, estava lá como estagiário da Rádio JB. Vinte dois anos depois, reescreve a história da maneira que convém ao seu empregador.

Outra ‘verdade’ de Kamel remete à questão das ‘Diretas-Já’. Ele afirmou que a TV Globo cobriu desde o início o fato histórico. Que julgue o leitor que não tem memória curta . Outro comentário, escrito mais recentemente (há três semanas) pelo diretor-executivo da Rede Globo, sempre seguindo a filosofia da manipulação praticada pelo seu empregador, deixou muita gente de queixo caído. Para Kamel, a violência no Rio de Janeiro é culpa de Leonel Brizola. Trata-se, sem dúvida, de um exercício de mesmice extremada, que tem sido repetido ao longo do tempo pelos mais variados órgãos de imprensa, os mesmos veículos que agora transformaram Brizola em um anjo.

Práxis manipuladora

Sobre o caso Tim Lopes, o diretor-executivo da Rede Globo repete a sua práxis manipuladora de sempre com o claro objetivo de retirar de foco o seu empregador. Mais uma vez o destempero jornalístico de Kamel levou-o a produzir uma mentira. No artigo-resposta publicado na edição passada deste Observatório, ele afirma que…

‘…em relação ao ‘turista de Cuiabá, os esclarecimentos já foram dados à época à polícia, às entidades de classe e aos jornalistas que de perto acompanharam o assunto. Mário Augusto Jakobskind, se quisesse, teria tido acesso também à mesma informação’.

Em seguida, o diretor-executivo da Rede Globo reconhece que…

‘…de fato em minha participação no Observatório da Imprensa, na TVE, nos dias que se seguiram ao assassinato de Tim, eu mencionei a existência do tal turista. Ao me encaminhar para os estúdios da TVE, chegou-nos a informação de que um turista teria visto o momento em que Tim fora capturado pelos bandidos. Nossa orientação foi gravar com ele uma entrevista. Nos estúdios, eu dei essa informação. No dia seguinte, como de praxe, checamos a veracidade do que dissera o turista. Tudo o que ele disse não se pôde comprovar: ele mentiu em relação ao hotel em que se hospedara, deu uma descrição sobre a Vila Cruzeiro que nada tinha com a realidade e, mais grave, errou totalmente na descrição da roupa que Tim usava na ocasião. Era apenas mais um, entre tantos, em busca de 15 minutos de fama. O fato, à época, foi comunicado à polícia e às entidades de classe’.

Pois bem, quando revelou a existência do turista de Cuiabá (ver Dossiê Tim Lopes – Fantástico/Ibope, pág.66), em um programa especial no Observatório da Imprensa, em 11 de junho de 2002, Kamel, entre outras coisas, afirmou textualmente:

‘…chegando lá [no baile funk] ele [o tal turista] presenciou o momento em que Tim Lopes foi preso. No dia seguinte, dada a repercussão [do caso], estava de novo em Cuiabá’.

Em um só momento o diretor-executivo da Rede Globo informou aos telespectadores que o fato tinha sido comunicado ‘à polícia e às entidades de classe’.

Ao comentar o que disse Kamel em seu artigo no OI, o inspetor Daniel Gomes, autor do relatório sobre o caso Tim Lopes, negou que o diretor-executivo da Rede Globo tivesse informado à polícia alguma coisa referente ao ‘turista de Cuiabá’. ‘Pode dizer que é mentira deste senhor’, disse Gomes, e complementou: ‘Garanto que é mentira, pois na ocasião eu estava lotado na Delegacia da Penha, que cuidava do caso. Se tivesse comunicado alguma coisa eu saberia’.

Quero lembrar o que já escrevi no livro-reportagem Dossiê Tim Lopes – Fantástico/Ibope (pág. 29):

‘Como em qualquer reportagem, este dossiê teve obviamente como critério fundamental ouvir os dois lados , ou seja, os que contestavam a versão oficial da TV Globo e a direção da emissora de maior audiência no país. Lamentavelmente, depois de inúmeras insistências para uma entrevista , de preferência do tipo olho no olho, até mesmo enviando dois fax para o diretor de jornalismo [da TV Globo] Carlos Henrique Schroder, e aguardar cerca de 40 dias até o fechamento deste livro-reportagem, a resposta foi o silêncio. No entanto, esse procedimento não impediu que o lado da Rede Globo fosse apresentado neste trabalho, mas exigiu do repórter empenho redobrado em suas pesquisas’.

O diretor-executivo da TV Globo em sua resposta ao artigo por mim escrito neste Observatório preferiu silenciar a respeito de um fato que poderia esclarecer em definitivo as circunstâncias do assassinato de Tim Lopes: Que fim levou a testemunha que a TV Globo afirmou ter retirado da Favela Cruzeiro para protegê-la? Por que a ‘proteção não foi dada pela polícia? Dois anos depois, a dúvida persiste. Pergunta-se: por que a TV Globo se recusa a responder essa pergunta? Por que os jornais não falam sobre isso e investigam o paradeiro desta testemunha?

Uma repórter fora do mercado

Sobre o caso da jornalista Cristina Guimarães, o diretor- executivo da Rede Globo se expõe mais uma vez. O processo da jornalista contra a TV Globo, que alguns meses antes do assassinato revelou ter sofrido ameaças de morte e preferiu abandonar o trabalho na emissora, corre em segredo de Justiça. E o que isso significa? Tanto ela como o seu advogado, como a acusada TV Globo e seu advogado, não podem revelar informações sobre o processo. Kamel não cometeu propriamente uma ilegalidade, mas de posse de trechos do processo tornou pública algumas informações de interesse do empregador.

O caso não está encerrado, como Kamel tenta dar a entender. Cristina Guimarães pediu rescisão indireta (justa causa para o patrão) por entender que o empregador não cumpriu o dever de protegê-la. Kamel pegou parte do processo, tornando-o público, possivelmente sendo orientado pelos advogados do empregador. A jornalista, que fez parte da matéria ‘Feira de drogas’ (ela esteve na Rocinha e Mangueira), origem da tragédia que culminou com o hediondo assassinato de Tim Lopes, continua fora do mercado de trabalho. Passa dificuldades, mas está viva.

O diretor-executivo da Rede Globo usa os mesmos argumentos de outros chefes de redação da emissora para falar sobre Cristina Guimarães. Kamel dificilmente responderá ao que disse o advogado André Martins no programa Direito em Debate, exibido pela TVE na quinta-feira (17/6): ‘Espero ver ainda os chefes de reportagem da TV Globo sentados no banco dos réus respondendo pela sua omissão’. Martins demonstrou sua indignação por entender que o empregador de Tim não deu a proteção devida a um profissional que fazia matéria em área de risco. E isso depois de ter exposto a imagem do repórter inúmeras vezes em seus noticiários para informar o recebimento do Prêmio Esso de Telejornalismo, em dezembro de 2001.

Kamel não falou nada sobre a investigação que está sendo feita pelo Ministério Público do Trabalho para apurar a responsabilidade da TV Globo no caso Tim Lopes. Está sendo checado se a empregadora de Tim deu a segurança necessária para o repórter fazer a matéria. O procurador Wilson Prudente cuida do caso, que corre em segredo de Justiça.

Ali Kamel, aceite um conselho: no jornalismo de mercado dos dias de hoje, tudo é descartável, inclusive o cargo de diretor-executivo. Por isso, deixe de ser intempestivo jornalisticamente em seus comentários Deixe de lado a sua paixão global. Reflita enquanto é tempo.

Corrida desenfreada

Quanto a uma nota do presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, Nacif Elias, divulgada na última edição deste Observatório, também respondendo ao artigo ‘Mancha no sindicalismo brasileiro’, reafirmo tudo que escrevi: o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro e a diretoria da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) vestiram vergonhosamente a camisa da TV Globo. Esta mancha, lamentavelmente, está incorporada à história do sindicalismo brasileiro, quer queiram ou não os atuais representantes das duas entidades.

Para se ter uma idéia a que ponto chegou a diretoria do sindicato, vale registrar que no dia seguinte à exibição do programa Direito em Debate, na TVE, sobre ‘a responsabilidade do empregador na segurança do empregado, o caso Tim Lopes’, Elias telefonou à assessoria de comunicação da TVE e, aos gritos, protestou contra o programa. Esqueceu-se de que o programa em questão é de responsabilidade da Ordem dos Advogados do Brasil e que a TVE apenas cede o espaço.

Quanto à ‘acusação’ de que este repórter é ‘politiqueiro’, como afirmou Elias, ou que Mário Augusto Jakobskind usa o caso Tim para ‘fins eleitorais’, segundo o diretor-executivo da TV Globo, os dois mais uma vez concordam em gênero, número e grau. Preferem criticar desta forma baixa a ter que discutir conceitos, que estão sendo levados à categoria pela chapa ‘Outra Fenaj é Possível’ em função da realização, nos dias 6, 7 e 8 de julho da escolha de uma nova diretoria da Federação Nacional da categoria, a Fenaj. Um fato histórico, pois pela primeira vez em 15 anos os jornalistas terão oportunidade de escolher entre duas chapas que têm visões distintas sobre questões jornalísticas e de interesse dos profissionais de imprensa. Isto, ao contrário do que afirmam equivocadamente Kamel e Elias não é ‘politicaria’. É sim, Política com P maiúsculo, o que os dois jornalistas demonstraram em suas respostas não conhecer e abominar.

Kamel e Elias sabem perfeitamente que tudo o que foi afirmado acima vem sendo dito desde o início da tragédia que levou Tim Lopes à morte. Ou seja, independe de eleições sindicais. Estas, isto sim, devem servir para os jornalistas debaterem seus problemas e do jornalismo que vem sendo exercido pela grande mídia, a questão de um novo sistema de comunicação para o país, o fortalecimento da mídia pública, que hoje mais emprega jornalistas e eleva o nível da programação televisiva, cujos canais abertos insistem em fazer uma corrida desenfreada pela audiência, do mesmo tipo que resultou na tragédia que poderia ser evitada e que vitimou Tim Lopes.

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Jornalista, coordenador de jornalismo do semanário Brasil de Fato, no Rio