Os jornais perdem assinantes, as receitas antes infalíveis da programação televisiva não mais fidelizam a audiência. As novas mídias e as redes sociais passam a ser cobiçadas e silenciosamente invadidas pelos grandes meios. A geopolítica da comunicação se redefine e disputa o que antes parecia um quadro solidificado. Nesta briga, vale disputar a preço de ouro o Clube dos 13, vale a sedução dos atores antes globais; o enfoque, ângulo e espetacularização da notícia, a banalização da violência, o apelo sexual.
Corpos femininos seminus nas capas dos jornais; estímulo explícito à violência e à erotização nos reality shows televisivos; programas de entretenimento brincando de cabra-cega, exigindo o reconhecimento dos participantes pelo tatear de suas bundas. E, finalmente, chega o carnaval, com uma sucessão de peladonas e vestidões, num jogo de mostrar e esconder o corpo durante a festa.
A visibilidade seletiva das ‘gostosas’ faz valer as horas de sacrifício e malhação, de bronzeamento artificial, lipoaspirações, dietas e silicone – da súbita e instantânea notoriedade talvez decorra um contrato para a TV ou revista, para um desfile de modas ou para qualquer cargo ou função onde estes dotes possam ajudar. Ou simplesmente os 15 minutos de notoriedade que a sociedade de massas ensinou a valorizar.
Nas mãos do capital
Como educadora informal que é a mídia, com destaque especial para a TV, essa reiteração do modelo, tanto na programação normal quanto na publicidade – antes, durante e depois do carnaval – esse bombardeio diuturno de imagens de beleza e sucesso, com espaços e visibilidade seletivas, é feito para capturar a atenção masculina, inocular um modelo de beleza e de delimitação de espaços e valores para mulheres e crianças – e vender. Tem a função, a médio e longo prazo, na fase de globalização do capitalismo, de colonizar corações e mentes para vender produtos, serviços e valores, distribuindo – de brinde – interpretações favoráveis à manutenção do sistema.
Forjam o imaginário e contribuem para a formação da subjetividade desde a mais tenra idade. Pasteurizam os gostos, as culturas e o consumo, servindo aos monopólios e oligopólios. Invadem o terreno da formação da subjetividade e forjam o modelo aspiracional de homens, mulheres e crianças.
Nada inventam, mas capturam fluxos nômades de novas e velhas tendências, que desterritorializam – tirando de seu contexto, tempo e lugar – e ressignificam – de modo a servir a seus objetivos comerciais e ideológicos, com imagens valoradas de homens de sucesso, de crianças felizes, de mulheres ‘bonitas’, de trabalhadores adequados e de todos os segmentos sociais – ora cuidadosamente invisibilizando os divergentes e contestadores, ora selecionando sua presença em determinados ângulos e ausência em outros, ora pré-qualificando-os implícita ou explicitamente no contexto, no texto, no subtexto.
Assim, discutir o que a mídia faz com a imagem das mulheres e os interesses a que isto serve representa uma reflexão sobre o que ela faz com todos nós. E busca contribuir para a desconstrução deste mecanismo de controle de uma minoria de detentores destes meios sobre a maioria da população – o aparelho ideológico nas mãos do capital.
O padrão de beleza imposto
E como reagem as mulheres, do lado de cá da tela de TV?
As feministas saíram em bloco, na terça-feira de carnaval (8 de março este ano), dançando ao som da reiterada palavra de ordem ‘a nossa luta/ é por respeito/ mulher não é/ só bunda e peito’.
E as mulheres comuns, o que pensam diante dessa imagem da mulher mostrada na mídia?
A pesquisa recente da Fundação Perseu Abramo, em parceria com o Sesc, revela que 80% delas considera que tal exibição, além de desagradar, contribui para uma desvalorização e subjugamento geral da figura feminina. E, diante disso, a grande maioria (74%) se declara favorável a algum tipo de controle (governamental, do próprio mercado ou da sociedade) sobre o conteúdo exibido na programação e na publicidade da mídia. Mas, ao lado desta percepção crítica, a pesquisa também mostra a dimensão do estrago provocado pela imposição monótona e autoritária destes estereótipos.
Bombardeadas pelo modelo de beleza inatingível, que as dezenas de produtos e procedimentos à venda não as fazem alcançar, as mulheres se mostram menos satisfeitas com a própria aparência que os homens e se preocupam com o que consideram sobrepeso e barriga, bem como com os seios, como demonstra a pesquisa. Introjetaram o padrão de beleza imposto e a sua insatisfação cresceu nos últimos 10 anos – intervalo durante o qual a exigência da magreza aumentou. Embora cuidem mais da própria saúde e da dos outros, elas se mostram menos satisfeitas com ela do que os homens (69% dos homens contra 56% das mulheres). A falta de mais perguntas a respeito nos permite projetar algumas explicações alternativas.
Mulheres clamam pelo ‘controle do governo’
Tal fato pode decorrer da contradição entre a vida cada vez mais sedentária – que se soma à produção, propaganda e venda de alimentos industrializados (que teoricamente servem de apoio à ‘vida ativa’ das mulheres), cada vez mais calóricos e menos nutritivos e que se contrapõem à energia e à silhueta das mulheres veiculadas e introjetadas como padrão aspiracional –, como também pode sinalizar o stress e estafa decorrentes do acúmulo de jornadas de trabalho femininas, incluindo a doméstica. Ou, ainda, pode decorrer de sua absorção do modelo de vida cada vez mais medicalizado também veiculado pela mídia, interessada em terceirizar os cuidados do corpo e vender mais remédios anunciados.
E, se a elas se destina a imagem e discurso da mídia do amor romântico, enquanto aos homens se vende a ideia da conquista-usufruto-descarte, isso não contribui para o descompasso entre as expectativas e satisfação no que se refere à sexualidade e amor? Ou será tão-somente decorrência de nossa natureza mais sensível e amorosa (cuidar da prole tem valor de sobrevivência) e da exigência maior por desempenho-trabalho-realização sobre os ombros masculinos cansados e culturalmente menos estimulados a expressar as suas emoções?
O mais estimulante no resultado desta pesquisa é a explicitação da consciência crítica da significativa maioria das mulheres frente à mídia, mesmo que não se deem ainda efetivamente conta de seu alcance pleno. Dando um passo além, elas clamam por controle sobre o conteúdo da mídia, que vai muito além do decantado ‘controle-remoto-da-TV’. Clamam, prioritariamente, pelo ‘controle do governo’. Mas também esperam um autocontrole da indústria e, de forma também significativa, da sociedade civil.
Retomar e avançar a discussão
A demanda das feministas e da Confecom pelo controle público/social da mídia, em órgãos tripartites (como consagrado em outros fóruns de gestão compartilhada), responde a suas demandas manifestas na pesquisa com que a FPA nos brinda, neste mês da mulher.
É preciso ampliar a repercussão desta demanda – tarefa que cabe ao movimento social e à mídia não atrelada. É preciso que as instâncias governamentais lhes deem ouvidos e consequência, mesmo que com isso contrariem os interesses exclusivistas dos segmentos refratários da ‘grande mídia’, retomando e acelerando a discussão sobre o marco regulatório dos meios de comunicação e, particularmente dentro dele, do controle da imagem da mulher (e dos negros, dos movimentos sociais, de todos os demais segmentos discriminados, desrespeitados ou seletivamente invisibilizados).
Vamos à retomada e ao avanço desta discussão?
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A pesquisa ‘As mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado’, realizada pela Fundação Perseu Abramo e o Sesc, pode ser acessada aqui, aqui e aqui.
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Feminista, membro da Articulação Nacional Mulher e Mídia