Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Deus na imprensa

A capa da revista Época desta semana já dá o tom da reportagem: assunto importante tratado com doses homeopáticas de seriedade e uma bomba atômica de superficialidade. Religião aos moldes de um mundo pós-moderno. A Folha de S.Paulo, por sua vez, traz o ‘Mais!’ destacando os quatrocentos anos das indicações de Galileu Galilei sobre a astronomia. Não deixa, positivamente, de analisar as suas repercussões ainda hoje e, principalmente, a relação pseudo-conflituosa entre Igreja Católica e ciência. Não é só, caro leitor.

Na página 3 do seu caderno principal, a Folha traz um artigo do presidente do Congresso Judaico Latino-Americano, Jack Terpins, sobre antissemitismo e intolerância, claro, de novo, respingando na Igreja Romana. Páginas à frente e, mais uma vez, lá está a religião, agora, a islâmica, abordada pelo ‘pensador’ Tariq Ramadan. Não acabou. Por fim, lá na ‘Ilustrada’, Ferreira Gullar anuncia: ‘Inventamos Deus’.

Como pode uma ‘invenção’ ganhar tanto espaço no noticiário, gastando papéis e árvores? Parece quase uma discussão infantil: meu amiguinho imaginário não existe, mas eu escrevo um livrinho sobre ele. Se não existe, cara pálida, por que dou tanto espaço para sua reflexão? Há alguns meses, um amigo me disse: ‘Quem mais ganha nessa discussão tola da mídia sobre religião são as próprias religiões.’ Não sei bem ao certo o rigor científico no qual ele se apoiou, mas, convenhamos, existe uma pitada de erro nisso.

Agnosticismo e ateísmo

Voltemos os meses e atraquemos naquele já ultra-explorado caso da menina de Pernambuco que foi estuprada, engravidou e acabou abortando as duas crianças que estavam em seu ventre. O fato é: uma menina foi estuprada. O fato se tornou, nas palavras daquele meu amigo: ‘O bispo carrancudo que excomungou todo mundo.’ Um jornal laico, de um país laico, deveria estar preocupado com o abuso do padrasto, a negligência da família e a discussão, esta sim, apropriada, sobre o aborto.

Mas, qual foi o foco? A excomunhão, o transcendente. Na verdade, esse assunto só interessaria aos católicos, como eu que, segundo meu já mencionado amigo, ‘são oásis perdidos num deserto’. Uma discussão que pode parecer somente religiosa, na verdade, é o topo do iceberg (perdão pelo clichê).

Uma das primeiras recordações que tenho do meu curso de Jornalismo foi um professor afirmar, quase orgulhoso: ‘O jornalista é um generalista. Não precisa saber de tudo, mas precisa saber perguntar aos que sabem.’ É esse enaltecimento do generalista, também, que acabou criando o culto ao amador, nome dado por Andrew Keen ao seu recente livro. Parece ser possível que todo jornalista aborde ou opine sobre qualquer assunto. Isso, francamente, é impossível e, segundo, cria uma eterna ânsia nos colegas.

No caso da religião, exemplo que estamos dando, o caso é mais grave. Basta visitar uma redação de jornal para constatar: o pêndulo se movimenta entre agnosticismo e ateísmo, quando não vai ao extremo dos perseguidores. Como, então, fazer um jornalismo aberto ao diálogo e comprometido com a verdade quando alguns profissionais se mostram radicalmente contra a religião?

Uma religiosidade do self-service

Durante a cobertura do aborto mencionado acima, a mídia se posicionou; contrariando a fantasiosa cartilha da imparcialidade. De repente, o agressor foi esquecido e o bispo, que até então tinha sido o único preocupado com a situação, foi pintado de obscurantista, sombrio, malvado. É a imprensa que ainda sobrevive do duelozinho: o bem contra o mal. Nesse processo, chovem erros, como choveram gafanhotos no Antigo Testamento.

Os jornalistas, em sua maioria despreparados para o assunto e preconceituosos quanto ao posicionamento católico, tratam declarações no calor do momento como dogmas e dogmas como copos descartáveis. O jornalismo caiu no abismo pós-moderno. Não entendo, portanto, por que o trato superficial da mídia poderia trazer ganhos às religiões. Ao contrário. O jovem, hoje, volta-se ao transcendente, mas não quer compromissos que o tirem de sua vidinha comum ou que o faça preocupar-se, realmente, com o outro. A capa da Época resume tudo: o jornalismo apresenta uma religiosidade coloridinha, pop, do mistureba, do self-service.

Certo dia, o meu amigo do início deste artigo, a esta altura, já famoso, disse-me: ‘Eu, como os jornais, gostaria de acabar com a religião, uma em especial, mas, pelo despreparo deles em lidar com sua munição, acabo com vergonha de me aliar a eles.’

******

Estudante de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pesquisador pelo Pibic/Unicap, Recife, PE