Fez bem a revista Superinteressante em dar capa a Deus no número de novembro. Afinal, em outubro, Deus, por ínvios caminhos, esteve na pauta da mídia de um modo ou de outro, às vezes trazido de falas de bispos, padres e pastores, outras vezes ressoando por temas de domínio conexo nos programas dos dois candidatos que chegaram ao segundo turno. Esses temas frequentaram igualmente o programa da candidata que ficou em terceiro lugar no primeiro turno, por tratar-se de pessoa formada nas comunidades eclesiais de base da igreja católica.
Todavia Marina Silva trocou de partido, deixando o PT para migrar para o PV; e de religião, migrando dos católicos para os evangélicos. Dilma Rousseff e José Serra também apresentaram ingrediente religioso nas respectivas campanhas, seja nas missas a que compareceram, deixando-se fotografar e filmar (José Serra chegou a comungar sem confessar, numa delas), seja nos complexos argumentos religiosos invocados para defender a vida e fixar posição contra o aborto. Como se em plena modernidade não fosse possível defender a vida sem incorrer no pecado de ‘invocar seu santo nome em vão’.
Motivos plurais
Deus não atrapalha ninguém na defesa da vida, mas se alguém quisesse, por hipótese, defender a morte, encontraria, principalmente no Antigo Testamento, um Deus que se propõe a exterminar a oposição, não a dos demônios, mas a dos homens. As chacinas de estrangeiros patrocinadas pelo Deus de Israel, o Senhor dos Exércitos, são um espanto. O Jeová do Antigo Testamento é mesmo durão! Felizmente, a civilização datada dos tempos d.C., inaugurados ainda no primeiro século do primeiro milênio, alicerçou-se no supremo mandamento ‘amai-vos uns aos outros’. O discurso pacífico não impediu, porém, que os massacres continuassem, irrompendo em séculos sangrentos.
Hoje mesmo nossa civilização é herdeira de duas guerras mundiais na primeira metade do século passado e de numerosos conflitos que trazem no bojo o ingrediente religioso. Mata-se em nome de Deus, tenha ele o nome que tenha, seja Deus ou Alá. Mata-se em campos de batalha, mata-se nas ruas, mata-se em casa e matam-se nascituros fora ou dentro do ventre das mães, por aborto, inanição, desnutrição, fome etc. Por que então o aborto ganhou a primazia das mortes a evitar?
Infelizmente a mídia submeteu-se aos discursos dos candidatos e nem ela mesma foi capaz de fixar uma defesa leiga da vida, como se precisássemos de temperos religiosos para sermos éticos, justos, humanitários, compassivos, solidários, preocupados com o outro, que, vivendo ou não em nosso mundo, faz por merecer o nosso respeito. Misturar isso já resultou em Inquisição, em genocídios, em diversas formas de excluir o outro do convívio, por ser de outra cor, por ser pobre, por morar em tal ou qual lugar do mundo e não em nossos domínios imediatos; enfim, os motivos são plurais, mas todos têm um só e mesmo objetivo: a exclusão. Se todas as estratégias falharem, ainda temos a guerra e a morte, no varejo ou no atacado, para resolver os conflitos.
Invocação indevida
Superinteressante, diferentemente dos programas dos candidatos à presidência da República, não perde a oportunidade de informar e formar, duas coisas que os programas de todos os partidos esqueceram, fixando-se num combate, como se os programas de televisão fossem arenas e não passarelas. O que diria o público se num desfile espetacular de modelos, Gisele Bündchen puxasse os cabelos da concorrente, baixasse o biquíni de outras candidatas e mostrasse ocultas cicatrizes, marcas para disfarçar celulites e outras imperfeições de pele ou aludisse ao passado delas, proclamando o seu como exemplar?
Seria difícil escolher a vencedora. Pois, chutatis chutandi, foi mais ou menos esse o quadro apresentado aos eleitores. Não admira que tenha sido a campanha presidencial que menos interesse despertou no distinto público. E o resultado está aí: por insondáveis ou claros motivos, 36.339.177 eleitores não votaram em nenhum dos dois candidatos. Esta foi a soma de abstenções, votos nulos, votos em branco.
José Serra, o candidato derrotado, teve 43.711.388. E a vencedora, a primeira mulher eleita presidente da República, teve 55.752.529 votos. Aqueles que, de um ou modo ou de outro, não votaram nela, somaram 80.050.565 eleitores. Mas agora ela é a presidente da República de todos os brasileiros, inclusive daqueles que ainda não são eleitores, alguns dos quais vão nascer depois que ela for diplomada e tomar posse.
São obviedades? São. Mas são dados muito importantes. E Deus não poderá ser invocado como desculpa para novos fracassos e incompetências que nos impeçam de resolver problemas seculares que afligem o Brasil.
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Escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor, pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa); seus livros foram premiados pelo MEC, Biblioteca Nacional e Casa de las Américas