A discussão sobre a censura ao comercial da cerveja Devassa protagonizado pela grã-fina Paris Hilton ficou mais tempo em cartaz do que o próprio clipe.
É bom que seja assim, porque a suspensão da propaganda foi uma empulhação. Embora oficialmente sancionada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM), do governo federal, quem orquestrou, badalou e lucrou com a proibição foi o Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária), entidade privada, sustentada pela mídia, sobretudo mídia eletrônica.
No caderno ‘Mais!’ da Folha de S.Paulo (domingo, 7/3), o filósofo Renato Janine Ribeiro radiografou o episódio com precisão. A SEPM não poderia recusar o apoio a uma medida contra a exploração da mulher como objeto sexual. Se o fizesse estaria na contramão dos argumentos que justificaram a sua criação.
Interesses precisos
A peça publicitária não é mais devassa, nem mais agressiva, nem mais pornográfica do que dezenas de outras que jamais provocaram qualquer reação dos zelosos defensores da moral.
O comercial de Paris Hilton foi o pretexto para valorizar o conceito de auto-regulação no momento em que começou a esquentar a discussão sobre ‘controle público’ da comunicação. Convém lembrar da onda tardiamente montada para combater o 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos que, como os dois anteriores lançados nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, ousou classificar a baixaria televisiva como atentado aos direitos humanos.
Não cabe ao Conar discutir a qualidade da programação das concessões públicas de radiodifusão, seu negócio é cuidar do conteúdo da propaganda. Mas o Conar tem sido cada vez mais lembrado como modelo bem sucedido de controle de qualidade.
É bom que se registre que o Conar tem sido leniente em matéria de propaganda enganosa. Raramente estrila, geralmente condescende com o mercado. A entidade tem funcionado mais como lobby em defesa dos grandes segmentos anunciantes do que como um mediador entre interesses divergentes.
Rigor inócuo
As investidas do Conar contra a decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de proibir a venda de remédios nas gôndolas das farmácias sob a alegação de que o consumidor não pode ser ‘tutelado’ pelo farmacêutico é pueril e impertinente: nada tem a ver com publicidade e, por outro lado, ignora os perigos da automedicação e, sobretudo, das superdosagens.
Registre-se ainda que a auto-regulação é, em si, um conceito avançado. Uma sociedade capaz de criar poderes e contrapoderes é organicamente democrática. Mas as medidas adotadas pelas corporações auto-reguladas devem ter real significado para os demais segmentos da sociedade.
O rigor contra o comercial da Devassa é inócuo, tem algo farisaico. E deixa evidente a manobra de ‘vender’ a auto-regulação como panacéia para impasses que nos EUA geralmente são resolvidos por agencias reguladoras propriamente ditas, como a Federal Communications Commission (FCC).
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