Enquanto o jornalista paulista Josué Duarte endossa, rompendo a apatia da categoria, que ‘é incompatível assessoria de imprensa e jornalismo, pois se contradizem’, o acadêmico Boanerges Lopes, jornalista, escritor e professor da UFJF, mestre pela Umesp, doutor em Comunicação pela UFRJ e conselheiro do FNPJ, quebra a lei do silêncio que denuncia (‘quando tocarem no assunto mantenha silêncio retumbante’) sem tomar clara posição quanto aos aspectos éticos e menosprezando os legais da questão. O presidente do Sindicato dos Jornalistas do Mato Grosso, Antonio Peres Pacheco, porém, admitindo que a legislação reserva aos relações-públicas as funções de assessoria de imprensa, insiste em defender uma mudança das leis para colocar o Brasil como uma excrescência no panorama mundial, onde jornalismo e assessorias são consideradas atividades antagônicas em decorrência dos preceitos éticos.
Pacheco defende que ‘o arcabouço legal de cada uma das especialidades da área de comunicação está ultrapassado e não corresponde mais à realidade criada pela evolução do mercado que, agora, demanda por profissionais multifuncionais’. Toda multifuncionalidade, com certeza, deve ser permitida, seja no campo da comunicação, da saúde, do direito ou da engenharia, desde que não ofenda as normas morais e preserve os devidos limites quando existem reservas éticas à promiscuidade de funções. Ou delegados acabariam abrindo escritórios de advocacia em frente às cadeias para cobrar pela libertação daqueles que prenderam. E médicos abririam uma farmácia no hall de seus consultórios para vender os remédios que receitassem.
Ética, portanto, é a palavrinha mágica que falta quando se pretende contestar o que venho defendendo em todos os meus artigos sobre o tema, há mais de dois anos, quando descobri, durante os debates em torno da criação do famigerado Conselho Federal de Jornalistas, que não havia amparo legal para a invasão do mercado dos RPs por diplomados em faculdades de Comunicação. Até então, envolvido no trabalho das redações, alheio à vida sindical desde que uma diretora do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul foi depor a favor do patrão numa ação minha contra ex-empregador, acreditava que a pelegada que tomara conta das entidades conseguira uma lei, um decreto qualquer legalizando a dupla atividade no Brasil.
Coloquei no quadro de avisos do sindicato o depoimento da diretora, sublinhando suas declarações mentirosas, facilmente desmascaradas por quem tivesse um mínimo de experiência na cobertura econômica, sem obter a menor reação. Joguei fora minha carteirinha da Fenaj e toquei minha carreira sem perder mais tempo em debater com sindicalistas que estão mais preocupados em justificar a invasão da área dos RPs do que em defender os milhares de jornalistas sumariamente demitidos por justa causa. O Brasil continua dos raros países sem comitês de redação para defender o quadro profissional das pressões patronais e práticas nefandas, como jornadas de trabalho absurdas e substituição maciça por quem aceita menores salários e se acomoda a linhas editoriais censuradas, o que se transformou em regra na maioria das redações.
A máquina com os AIs
Quando os AIs palacianos que controlam as verbas oficiais de publicidade dos governos retiraram todos os anúncios do jornal que eu dirigia em Porto Alegre, o silêncio das entidades de classe também foi sepulcral. Entendi que só restava o auto-exílio em São Paulo, onde estou desde 1990. Se alguns ainda pensam que minha reação é meramente emocional, só posso retrucar que minhas razões são bem reais. Como os meus, poderia trazer aqui os exemplos de centenas de colegas que passaram e passam pelos mesmos problemas, muitos deles forçados a buscar emprego em assessorias de imprensa. Com certeza, nenhum deles se considera ainda jornalista.
Ética, portanto, é a palavra-chave para entendimento dos limites colocados entre as duas profissões. Como advogados que passam a trabalhar como juízes, promotores ou delegados de polícia são proibidos de atuar como defensores, ainda que continuem diplomados em Direito, assessoria de imprensa é atividade cerceada aos jornalistas por comprometer os objetivos sociais dessa categoria. Infelizmente, essa proibição expressa foi retirada do código de ética dos jornalistas brasileiros na ‘revisão’ feita em 1987.
Apesar de constar do artigo 13º do texto adotado que ‘o jornalista deve evitar a divulgação de fatos: a) Com interesse de favorecimento pessoal ou vantagens econômicas’, o que poderia classificar a produção clássica dos AIs, releases, textos pagos e encomendados para favorecer a necessidade de promoção de quem pode investir para aparecer positivamente, esse ‘evitar’ é suficientemente vago para permitir a grande confusão hoje reinante no mercado. Jamais nenhum sindicato puniu um jornalista que se deixou atrair pelo poder econômico e passou a escrever apenas para quem pudesse pagar para ter suas ‘notícias’ divulgadas.
Enquanto os AIs dominarem a máquina sindical dos jornalistas, o artigo 13º será solenemente ignorado por suas comissões de ética. Na maioria delas, aliás, proliferam assessores de imprensa a serviço do poder econômico. E não me venham com as raras exceções dos que trabalham para instituições de cunho social, ONGs e que tais, para alegar que alguns releases podem ser publicados como se reportagens fossem. Quando ocorrem desvios de verbas ou de conduta nessas organizações, seus AIs seguem os padrões dos RPs, que é o de divulgar bons feitos e justificar os defeitos. Apontem um único que tenha se assumido como jornalista e denunciado irregularidades… e certamente teremos um nome que está banido dos dois mercados.
Ética comprometida
Pelos caminhos normais será impossível limpar os sindicatos dos jornalistas dos AIs que detêm uma formidável máquina política, abrigados no imenso guarda-chuva das estruturas partidárias que se sucedem nos governos. Jornalistas de redação, independentes e concorrentes, jamais conseguirão formar uma massa hegemônica capaz de retomar, pelo voto, o controle da máquina sindical hoje em poder da pelegada.
Esperar sentado que os RPs tenham êxito em sua campanha moralizadora, obrigando todos os que fazem AI a complementarem sua formação na área para obter registro na categoria deles, certamente demandará muito tempo. Somente conscientizando a sociedade para os malefícios que tal situação causa aos verdadeiros jornalistas poderia redundar em algum resultado prático. Os atuais estudantes de Jornalismo que estão ansiosos para trabalhar numa assessoria de imprensa seriam, assim, incentivados a se transferir para o curso correto e se somariam aos que defendem a justa reserva de mercado dos RPs. Estamos diante, portanto, de um duplo desafio profissional: informar à opinião pública do que ocorre nas redações e nos nossos sindicatos quando essas forças estarão aliadas para manter o silêncio.
Para termos os AIs fora do jornalismo, precisamos tê-los fora dos sindicatos. Sem isso, a ética, a liberdade de imprensa e de expressão continuará seriamente comprometida.
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Jornalista de redação, já passou por Zero Hora, IstoÉ, Veja, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Gazeta Mercantil, Jornal do Comércio de Porto Alegre, Jornal do Brasil etc.