Desde os tempos da Faculdade de Direito, tenho tido o prazer imenso de conviver com um interlocutor astuto e sinuoso. O nome dele é José Wellington Porto, ele é advogado, tem 55 anos e trabalhou no jornalismo durante algum tempo. Nos últimos dias, discutimos intensamente o incidente no Realengo através da internet. Numa de suas inspiradas manifestações disse-me ele:
“Desde o momento em que o homem passou a se corresponder com seu semelhante de forma mediata (i.e., sem estar à frente de seu interlocutor), a visão do mundo sofreu uma dicotomia. O mundo visto por seus olhos, tocado por seus membros superiores e inferiores, cheirado por seu nariz, ouvido por suas orelhas, impondo a você as sensações de claro/escuro, frio/calor, colorido/pouco colorido, é diverso do mundo noticiado em uma carta ou mensagem. Esse mundo, para o receptor da mensagem, é visualizado de forma ideal e romantizado pelo emissor da mensagem.
Portanto, para irmos direto ao objetivo, o mundo descrito em qualquer tipo de mensagem, sonora ou visual, não corresponde ao mundo real, permitindo idealizações diversas. Assim, os leitores de romances no século 18 imaginavam, por exemplo, uma Paris diferente do real, permitindo fantasias que não incluíam os cheiros reais, as pessoas reais, os sons reais, a Paris real. Assim, é interessante notar, até mesmo agora, os relatos de viajantes que dizem que o lugar por eles visitado `é diferente do que eu imaginava, após ler romances, assistir filmes, ouvir ou ler relatos´.
A mensagem não carrega o real.
A segunda questão é que o `passageiro´ da internet, aquele que navega em seus mares virtuais, tem que reunir os dados estratificados e submetê-los à análise de seus `dados´, armazenados em seus registros de memória, para projetar uma idealização do mundo que se oferece multifacetado, em pequenos pedaços, como um caleidoscópio na rede virtual. Quanto maiores os registros pessoais do `navegante´, mais próximo, no processo de idealização do mundo, ele poderá ficar do mundo real, sem que nunca consiga, por meio instrumental mediato, tocar o verdadeiro mundo real.
Entretanto, existem pessoas que não se contentam em ser `navegantes´ nesse mundo virtual, preferindo `habitá-lo´, passando a renegar o mundo real (embora imersos nele).
Aí, há uma modificação em seu psiquismo que o leva a `mergulhar´ nesses mares virtuais e ali tenta estabelecer seu mundo ou paragem, quando em verdade pode estar mergulhando em suas estruturas mais profundas da psique, rompendo sua ligação com o real, ensejando graves patologias mentais. Dessa forma, ou ele fica prisioneiro desse mundo ou, nos retornos ao mundo real, interage com a realidade utilizando os dados de seu mundo virtual, renegando sua personalidade anterior, pois estará substituindo registros anteriores do real por esses novos do virtual, adentrando um mundo ilusório e repleto de ameaças – este último, o verdadeiro mundo real, que passa a ser considerado o mundo transitório, pois renegado.
Pode, ainda, acontecer de esse mundo real ser vivido em paralelo com o virtual, o que demandará um grande desgaste psíquico para o equilíbrio. As pessoas `normais´ convivem com múltiplas realidades, perdurando o equilíbrio enquanto o seu psiquismo propiciar as `idas´ e `retornos´ em relação a essas múltiplas realidades. As drogas, que permitem a fuga aos `paraísos artificiais´, são veículos de transporte a essas realidades paralelas e, graças ao equilíbrio psíquico, essas `viagens´ podem ser interrompidas para a `volta ao real´.
Meus outros sentidos são as minhas armas
Porém, se houver um processo de ruptura, a `viagem´ pode não ser interrompida e aí o viajante poderá ficar preso eternamente nesse mundo alternativo, alienado. Ora, a internet pode propiciar `viagens´, graças à natureza dos psiquismos de seus `navegantes´, dependendo da frouxidão de seus laços com o real, pois a multiplicidade de elementos de informação pode propiciar uma construção de um mundo alternativo quando as estruturas psíquicas do internauta detectarem um conforto maior do que aquele propiciado pelo mundo real. Isso acontece com internautas e em vários países do mundo existem terapias médicas para o `abandono do vício´ da `navegação´ virtual.
No caso do atirador do Rio de Janeiro, as estruturas psíquicas que o ligavam ao mundo real estavam afrouxadas, havendo relatos que apontam para episódios de ameaças no mundo real que lhe trouxeram desconforto e uma sensação de insuportabilidade do real. Negado, por seus semelhantes, o seu direito a `ser´, isto é, sua aceitação como indivíduo semelhante, valorizado por seus atributos individuais de maneira positiva, esse rapaz foi buscar na internet o mundo alternativo, armas para o enfrentamento do mundo real. A internet, em seu caso, não foi a deflagadora de seu comportamento violento, pois as `armas´ poderiam ser encontradas em livros ou conversas com outros indivíduos.
Eu conheci pessoas que, perturbadas, encontravam `notícias´ de graves ameaças à sua integridade física em leitura de jornais… E algumas delas propunham estratégias de guerra para `combater esses moinhos´, como Cervantes descreveu o comportamento esquizoide de Dom Quixote… Os conflitos sociais e os derivados dos relacionamentos inter-pessoais (caso do Rio de Janeiro) podem perturbar o equilíbrio psíquico de alguém e levá-lo ao comportamento esquizoide. Ressalte-se, entretanto, que esse comportamento é a resposta do indivíduo para as induções do mundo real, com suas ameaças, importando em insuportabilidade do real. O mundo real, hoje, é agressivo e eu lembro que, em um poema que escrevi há mais de trinta anos, disse que `um dia, as bocas de lobo vomitarão o fel intestino que jaz no ventre da Terra´…
Ainda para minha segurança, embora eu navegue na internet e utilize o telefone, sempre preferi falar com as pessoas `frente a frente´, mirando os olhos de meu interlocutor, pois os meus outros sentidos são as minhas armas…”
As principais correntes do cristianismo
É claro que nós podemos preferir o contato pessoal, mas não podemos ignorar os fatos. A internet cresce a olhos vistos no Brasil e com isto mais e mais pessoas mergulham em relacionamentos virtuais. Alguns destes relacionamentos se reproduzem no mundo real, outros não. A maioria das pessoas entra e sai da internet ilesa, mas existem aqueles que acabam se perdendo no caminho e desencaminham vidas no mundo real (este parece ser o caso do atirador do Realengo).
Wellington (não o atirador, mas o meu interlocutor) usou o vocábulo viagem para descrever o que fazemos na internet. Frisou que o movimento de ir e voltar à realidade é essencial. Aqueles que se perdem no caminho não conseguem mais diferenciar o que é realidade e o que é virtualidade. Perfeito.
O problema talvez seja mais profundo do que ele imagina.
Nós também fazemos parte da civilização cristã. E o cristianismo não fornece nada que possa se comparar à mitologia antiga no que se refere a este movimento de ir e voltar. Para os cristãos, ou as pessoas já encontraram a graça e foram salvas mediante o sacrifício do cordeiro de Deus (e, portanto, não podem ou não precisam retornar à situação pretérita), ou ainda não encontraram a graça (e devem persegui-la como bons cristãos ou ficarão perdidos, como os infiéis), ou ainda, nunca poderão encontrá-la aqui e agora (o reino de Deus está entre nós mas não é e não pode ser visto). Tentei resumir aqui as principais correntes do cristianismo para demonstrar que em nossa civilização ocidental contemporânea e cristã a questão da viagem não é tratada como deveria – daí, alguns viajantes virtuais simplesmente não conseguirem voltar.
“A certeza de que gozam os deuses”
Em nossa civilização os caminhos estão fechados porque as teologias não são abertas. Não há sutilezas que permitam às pessoas realizar suas viagens e retornarem. Em nosso tempo não há métis (palavra aqui usada aqui no sentido grego) que permita às pessoas irem e voltarem em segurança de suas viagens (químicas, psicológicas ou virtuais). A falta da valorização deste tipo de inteligência, deste tipo de sensibilidade intelectual, ainda vai nos obrigar a retornar ao ponto em que o cristianismo interrompeu e destruiu a cultura grega.
Na cultura grega, a métis de viagem era algo fundamental. Através das longas narrativas (Ilíada e Odisseia), o grego era estimulado prestar atenção aos caminhos, aprender a reconhecer os pontos de referência, estudar o terreno em que a jornada seria realizada, bem como o veículo que seria empregado. Nada poderia ser mais fundamental para uma sociedade de comerciantes que utilizava largamente o mar para empreender negócios e estabelecer contatos com os outros povos. No panteão grego, todos os deuses tinham sua métis específica e, eventualmente, compartilhavam as métis dos outros deuses de alguma maneira. Os mortais certamente nunca poderiam ter acesso à métis divina, mas podiam mimetizá-la para suas próprias necessidades. Tanto é verdade que até os filósofos gregos se ocuparam da métis:
“Rapidez e precisão de golpe de vista: retendo estes dois conceitos para delimitar o caráter específico da métis, Aristóteles e Platão escolhem insistir sobre a natureza estocástica da inteligência prática e empreendem, assim, pôr em evidência o aspecto conjectural de um modo de conhecimento, cujo caminha já é desenhado pela cosmogonia de Álcman, com a configuração de Tétis, potência do espanho marinho, e de seus dois acólitos, Ponto de Referência e Trajeto, Tékmor e Póros. Com efeito, conjecturar, tekmaíresthai, significa, à maneira dos navegadores que confiam nos sinais dos videntes e nas marcas luminosas do céu, abrir-se um caminho, ajudando-se com pontos de referências, e conservar os olhos fixos no objetivo que a corrida quer atingir. A equivalência que os lexicógrafos estabelecem entre `ter um alvo´ (stokházesthai) e `conjecturar´ (tekmaíresthai) justifica-se com a representação explícita de um saber aproximativo, como de uma longa viagem através do deserto (éremos), lá onde os caminhos já não são traçados, ou, sem cessar, é preciso adivinhar a rota e visar a um ponto no horizonte longínquo. Este conhecimento oblíquo e manco é o que o Tratado da Natureza, escrito por Alcméon de Crotona no fim do século VI, deixa em partilha ao conjunto dos homens, por oposição à certeza de que gozam os deuses, tanto sobre as coisas invisíveis quanto sobre os negócios humanos” (Métis, as antigas astúcias da inteligência, Marcel Détienne e Jean-Pierre Vernant, Editora Odysseus, 2008 – p.280/281).
Humanidade e humanitarismo
Na civilização cristã, a métis não existe. Para realizar sua jornada na vida, o cristão é estimulado a acreditar numa das teologias que mencionei. A religião compartilha nosso universo simbólico com a ciência e a tecnologia, mas ambas são diferentes da métis grega. Além de não ser acessível a todos, a ciência moderna requer um tipo de reflexão especializada e diferente da métis. A tecnologia apenas produz o mundo tecnológico e aquilo que está nele para ser desfrutado (desde que você possa pagar pelos objetos tecnológicos).
Quanto mais as pessoas têm acesso aos objetos tecnológicos e através deles ao mundo virtual, mais as viagens se tornam frequentes e perigosas porque elas necessitam exatamente daquele tipo de inteligência grega que sempre foi desprezado pelos teólogos cristãos. A tragédia do Realengo é ou pode ser considerada uma prova eloquente de que na internet todos nós precisamos da métis de viagem. Ir ao mundo virtual e dele voltar em segurança sem se perder no caminho ou o contato com a realidade, com a humanidade e com o humanitarismo é essencial (em colaboração com José Wellington Porto).
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Advogado, Osasco, SP