Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Difamação eleitoreira, segundo os mandamentos

A disputa religiosa travada no primeiro turno das eleições volta com força contra o aborto e a candidatura de Dilma Rousseff neste segundo turno. A postura de setores da Igreja católica e de igrejas evangélicas mostrou o engajamento de lideranças na campanha anti-PT. Produziram para os fiéis discursos de convencimento que são um misto de baixa informação e uma proposital confusão entre doutrina religiosa, a política e as questões de Estado.

A propagação de calúnia e difamação, ancorada pela maldade e terror, contra a candidata Dilma Rousseff, reverberou na mídia, deixou Serra numa posição de ataque e Marina Silva com cara de paisagem, justamente ela que defendia o plebiscito sobre o tema. Posturas que deveriam envergonhar estas lideranças, e até as candidaturas de Serra e Marina, pela própria contraposição aos ensinamentos de evangelhos ao disseminar a mentira, levantar falso testemunho e optar pela leviandade e omissão.

Não é fazer deste assunto o bode expiatório da ocorrência do segundo turno, muito menos a condenação de figuras religiosas por usar às avessas uma doutrina cristã. Houve outros erros estratégicos. Mas neste caso, o PT optou por não enfrentar de forma sóbria a rede de calúnia e difamação à candidata Dilma Rousseff. Acreditou no esquecimento do assunto e dialogou tardiamente com as lideranças religiosas mais sensíveis ao debate claro, transparente e responsável, em contraponto a um apego destas lideranças, equivocadamente, à condenação, à intolerância, ao fundamentalismo e ao ufanismo religiosos.

‘Vou mandar uma circular pedindo que não votem na candidata do PT’

São setores que não contextualizam questões de interesse geral da sociedade. Querem manter seus rebanhos às custas do medo divino com a imposição de dogmas que deveriam estar restritos ao círculo de crença. Se é livre a manifestação de credo no Brasil, como um dos preâmbulos constitucionais, estas crenças não podem impor ao conjunto da sociedade dogmas e terror sobrenaturais.

Muitas vezes os que provocam esta confusão por conveniência a alguma candidatura não têm a postura de religioso que invoca a persuasão para transpassar ensinamentos e evitar transgressão às doutrinas desta ou daquela religião, de concepções filosóficas ou de cultos e seitas. Partem para a vingança verborrágica, a perseguição e a condenação pública, como na Idade das Trevas. Cristão verdadeiro, não mata ninguém, nem moralmente. Prefere a complacência e ações de conversão.

Tomemos como ‘exemplo’ o caso do bispo diocesano de Guarulhos, dom Luiz Gonzaga Bergonzini, entre outros, como o da Regional Sul I, da CNBB. O líder católico, contrário à legalização do aborto, ordenou a padres da cidade a pregar nas missas o voto contra a candidata do PT à presidência, Dilma Rousseff. Mandou ainda subordinados distribuírem cartas contra a candidata em várias paróquias da cidade nas missas que antecederam a votação de 3 de outubro.

‘Vou mandar uma circular para os padres da diocese pedindo que eles façam o pedido na missa, para que os nossos fiéis não votem na candidata do PT e em nenhum outro candidato que defenda o aborto. Desde o Antigo Testamento, temos que é proibido matar. Uma pessoa que defende o aborto não pode ser eleita. Eu tenho obrigação de orientar meus fiéis pelo que está certo e o que está errado’, antecipou o bispo ao G1, das Organizações Globo.

Marina acreditou no que a imprensa a fez acreditar

Entre os padres da cidade, deve ter ocorrido insubordinação à ordem do bispo. Mas a posição do sacerdote, divulgada no site da Diocese de Guarulhos e reproduzida na página da CNBB, ganhou a internet, jornais, TVs e rádios. Muitos destes veículos reproduziram o assunto não com tratamento jornalístico, análise e contrainformação responsáveis. Pegaram carona numa posição pró-candidatura Serra e aproveitaram a postura para reforçar uma campanha difamatória contra Dilma Rousseff e o PT.

Parte da imprensa não teve isenção no assunto. Estampou em manchetes textos com grifo, negrito e olhos de matéria em letras garrafais, como no G1, que pinçou a parte mais contundente das declarações do bispo para destacar como olho da matéria. Uma edição proposital com objetivo eleitoreiro, como fizeram outros meios de comunicação da imprensa, inclusive com manchetes ou chamada de destaque na primeira página.

A imprensa pró-Serra, que via seu candidato estagnado nas intenções de votos, não incomodou Marina sobre o assunto porque via nela a saída honrosa para o projeto político tucano avançar ao segundo turno. Serra, que peca pela omissão sobre qualquer assunto, ganhou espaço midiático para o seu trololó em coro com os coronéis conservadores da mídia, seus editores, comentaristas e colunistas, e líderes religiosos com pensamentos frágeis sobre uma questão de Estado. Marina, calada a partir de então, começou a contabilizar votos. Serra chegou, com Geraldo Alckmin a tiracolo, e Marina ficou no caminho em um domingo festivo na imprensa azul e amarela. Marina acreditou no que a imprensa a fez acreditar, mesmo sabendo que seu projeto não compactua com os interesses do coronelismo midiático.

Por uma sociedade fraterna e igualitária

Um sacerdote em sua investidura de líder religioso propagou a mentira, foi autoritário com seus padres e rasgou páginas de ensinamentos bíblicos, como os dos Dez Mandamentos sagrados na Bíblia – no Êxodo são 14 e alterna-se a posição de acordo com o segmento religioso, como judaico, anglicano, presbiteriano, católico, ortodoxo, luterano, adventista do sétimo dia e outros cristãos. Usurpou o nome de Deus contra uma candidatura e em favor de outra por interesse religioso-político (Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus).

O bispo furtou a verdade (Não roubarás), deixando de dar uma contribuição à clareza do assunto, usando a parte mais apelativa – não da doutrina católica, mas de uma visão reacionária que causa banzé no assunto – de forma deliberada ou não. Dilma Rousseff tinha dado uma opinião clara, realista sobre o tema no Brasil, com valor dialético e republicano, diferente de manifestações obscuras.

Dilma disse: ‘Abortar não é fácil para mulher alguma. Duvido que alguém se sinta confortável em fazer um aborto. Agora, isso não pode ser justificativa para que não haja uma legalização. O aborto é uma questão de saúde pública. Há uma quantidade enorme de mulheres brasileiras que morre porque tenta abortar em condições precárias’, afirmou com lucidez e preocupação cristã com os pobres, segmento que estatisticamente aponta as mulheres como as maiores vítimas de abortos clandestinos, enquanto religiosos, políticos e a mídia usam os excluídos para impor o medo.

Outro mandamento do decálogo (Não darás falso testemunho contra o teu próximo) não foi respeitado pelo sacerdote de Guarulhos e outros religiosos ao atribuírem à candidata Dilma Rousseff uma reivindicação que foi originada dos debates da sociedade civil e contemplada no Plano Nacional de Direitos Humanos, lançado em 2009. O bispo usou à sua maneira o PNDH, que teve modificações em maio de 2010, mas que manteve o tratamento da questão como de Estado. O documento colocava na primeira versão ‘apoiar o projeto de lei que descriminaliza o aborto’ e na segunda redação foi alterado para ‘considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde’. É o Estado resguardando garantias e direitos, e não incentivando à prática do ab orto, como maldosamente propagou a parcela conservadora da sociedade.

Ao tentar minimizar uma posição eleitoreira, o bispo de Guarulhos veio com outro argumento: ‘Sou apartidário, tenho o direito de me manifestar livremente e a obrigação de orientar meus fiéis. Por isso deixei muito clara a posição de que não devem votar na Dilma. Nem nela e em nenhum outro candidato que defenda a legalização do aborto’, disse o bispo ao G1. O bispo escondeu, porém, como a grande mídia, a posição de Marina Silva e de Plínio de Arruda Sampaio, um histórico militante da Igreja Católica e de suas Comunidades Eclesiais de Base, que foram um dos berços, com o sindicalismo, do nascedouro e organização do PT. Plínio, que sempre transitou entre as alas carolas e revolucionárias do catolicismo, defendeu em seu programa de governo a legalização do aborto e o fim da criminalização de mulheres que o praticam.

Ainda como agravante neste tema e também para candidatura Dilma Rousseff no primeiro turno foi o distanciamento do PT, que já vai longe, de movimentos sociais, principalmente dos ligados à Igreja católica. A ausência de um diálogo permanente e a reafirmação de bandeiras propositivas em defesa da vida plena, com o ser humano como protagonista central, pode por a perder o projeto de avanço para a consolidação de uma sociedade fraterna e igualitária. Não de uma sociedade do fundamentalismo, do terror psicossocial, da manutenção de tradições arcaicas e de preservação de estruturas de poder, por onde transitam muitos religiosos, políticos, o poder econômico e midiático.

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Jornalista, Guarulhos, SP