Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Diogo Mainardi

‘Não sei se o desempenho de Lula é afetado pelo consumo de álcool. Pode ser que sim, pode ser que não. Não descarto inclusive que tenha um efeito benéfico sobre ele. Se Lula parar de beber, nada garante que não decrete moratória na mesma hora. O correspondente do New York Times não disse que o presidente bebe demais. Não disse que o álcool afeta seu desempenho. Não disse que essa é uma preocupação nacional. A única referência nesse sentido está contida no título da reportagem. Lula só leu a primeira linha, aquela com letras bem grandes. O que o correspondente do New York Times disse foi apenas que alguns políticos e jornalistas começam a se perguntar se o hábito de beber do presidente não estaria afetando sua capacidade de governar. Não há nada de errado em se perguntar uma coisa dessas. Errado seria não se perguntar. Nas rodas de políticos, nas redações de jornais, em reuniões de empresários e no cineminha do Alvorada, é comum ouvir essa preocupação. Pode ser injusta, pode ser ofensiva, mas está lá, correndo à boca pequena.

Lula disse que um presidente não tem de responder a sandices como a do correspondente do New York Times. Claro que tem. Não é sandice nenhuma. Pelo contrário. Considerando que a imprensa não se cansa de retratá-lo com um copo na mão, é perfeitamente legítimo o interesse em saber quantas doses de uísque ele toma, e se isso pode prejudicar seu desempenho. Na realidade, não há nenhuma pergunta que não possa ser feita a um político. E não há nenhuma pergunta que um político possa se recusar a responder. Lula não admite isso. Acostumou-se com uma imprensa que está sempre a seu serviço, domesticada, oferecendo cumplicidade. O espanto do presidente foi tão grande que a melhor reação que lhe ocorreu foi anular o visto do correspondente do New York Times e chutá-lo para longe do país. É a atitude mais ignóbil da história do Brasil democrático. Lula agiu como a rainha de copas de Alice no País das Maravilhas, que manda cortar a cabeça de quem a contraria.

O presidente pode deportar quem ele quiser, mas isso não altera o fato de seu consumo de bebidas alcoólicas ser um tema político relevante. Em primeiro lugar, o gosto por uma cachacinha foi usado como peça de propaganda eleitoral, reforçando sua imagem popular, contraposta à do pedante Fernando Henrique Cardoso. Ou seja, rendeu-lhe votos. Em segundo lugar, coloca-o na mão dos políticos. Quem espalha aos jornalistas que o presidente bebeu nesta ou naquela reunião reservada são os deputados e senadores dos partidos aliados. Qual o motivo? Não seria para enfraquecer o governo e, dessa forma, forçar a liberação de emendas e a nomeação de seus apadrinhados para órgãos públicos? O copo de uísque do presidente, nesse caso, teria um preço elevado para o contribuinte.

O New York Times feriu o orgulho pátrio. Políticos e jornalistas saíram em defesa do presidente, condenando a reportagem. Os mesmos políticos e jornalistas que, em privado, trocam comentários maliciosos sobre o assunto. A vida pública nacional é uma mistura de hipocrisia, conchavo e acobertamento. Pior ainda é essa gente obtusa e truculenta que nos governa. Guido Mantega disse que o New York Times obedece a interesses econômicos estrangeiros. Luiz Gushiken alertou contra ameaças à soberania nacional. José Genoíno sugeriu expulsar o correspondente do jornal, idéia prontamente acatada pelo presidente. Como sempre, descambamos para o nacionalismo autoritário. Como sempre, caímos na bananice. Como sempre, erramos do começo ao fim.’

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‘‘Minhas fontes foram Folha, Estado e Globo’’, copyright Veja, 19/05/04

‘O governo me chamou de ‘fonte sem confiabilidade’. Foi o maior elogio que já recebi. Vou emoldurar e pendurar na parede. Imagine se eu fosse considerado um ‘homem de confiança’ do governo. Eu mudaria de profissão. O único problema é que não sou uma fonte do New York Times. O correspondente do jornal não falou comigo. Apenas citou um artigo que publiquei em VEJA cerca de dois meses atrás.

Nesse artigo, eu mencionava algumas ocasiões públicas em que Lula apareceu com um copo de bebida na mão. Colhi as informações nas páginas de Folha, Estado e Globo. Esses jornais foram minhas fontes. Conseqüentemente, foram também as fontes do New York Times.

Além de pouco confiável, fui retratado como agitador a soldo dos americanos. O Jornal Nacional mostrou vinhetas de Chico Caruso em que apareço na redação carioca do New York Times fabricando notícias contra Lula para acobertar as torturas de Bush dos prisioneiros no Iraque. Quando meus protetores americanos conquistarem o país, minha primeira providência será expulsar Chico Caruso.’



Sérgio Abranches

‘Limites imprecisos’, copyright Veja, 19/05/04

‘Era uma reportagem malfeita, tecnicamente falha, atacando a pessoa do presidente Luiz Inácio. Gerou indignação, por ser frágil e gratuita. O presidente recebeu a solidariedade geral. Mas, por causa dos limites imprecisos entre o particular e o público, entre o pessoal e o institucional, ele transformou-a num caso de abuso de poder.

Para se defender de um ataque primário, o presidente Luiz Inácio agrediu as instituições democráticas, abusou das prerrogativas do cargo de presidente da República e feriu a Constituição. Fez uso de uma invenção jurídica do regime autoritário. Tratou o jornalista Larry Rother como os militares trataram Chico Pinto, do PT da Bahia, por ter ofendido o ditador chileno Augusto Pinochet.

Os impulsos do governo são autoritários e seu compromisso institucional, difuso. Contrariado, o impulso é proibir, intervir, expulsar. Há sempre, subjacente às atitudes do governo, uma disjuntiva perigosa entre a ‘legalidade’ e a ‘legitimidade’ da regra. Isso porque está sempre indeciso entre ser movimento social e ser autoridade constituída.

Proíbe o bingo, num rompante, como resposta ao caso Waldomiro Diniz. Não como resultado de uma análise dos efeitos colaterais da proliferação e sofisticação do jogo, originalmente imaginado como fonte de financiamento para os esportes. Quando o Congresso cria uma comissão especial para examinar o salário mínimo, por omissão das lideranças governistas, inclina-se a atropelar a comissão regimental e levar a questão para o plenário, onde se julga mais forte para aprovar o que quer. O ministro das Cidades – título que revela certo desconcerto jurisdicional – assiste impassível, se não anuente, a uma assembléia decidir pela ocupação de prédios públicos. O chanceler justifica a expulsão do jornalista dizendo que ele feriu a ‘honra nacional’, e soma a imprecisão conceitual aos limites incertos entre o público e o privado. O próprio presidente disse que o artigo atingiu a ‘instituição da Presidência da República’. Não. Atacou a pessoa do presidente. A instituição passou ao largo, nos dois casos: do artigo e da reação governamental. O ataque foi à pessoa, não à Presidência. A resposta foi uma retaliação pessoal, usando os poderes institucionais do governo.

O porta-voz da Presidência, André Singer, escreveu na Folha de S.Paulo que ‘a liberdade de imprensa não pode servir de pretexto para ser leniente com quem difama, injuria e calunia’. Tem toda a razão. Por isso todo país democrático tem leis que permitem à vítima de ataque injurioso buscar reparação. Um bom jurista dos EUA saberia correlacionar as falhas técnicas do artigo com os preceitos jurídicos que permitiriam um processo por danos morais. Mas o dano moral é uma agressão à pessoa, não às instituições. Instituições são impessoais. Lesões institucionais não são moralmente reparáveis. O estrago institucional já foi feito e não será corrigido com a anulação da cassação do visto. Uma retratação do jornal repararia a ofensa moral.

O ataque pessoal injurioso não pode servir de pretexto para o exercício atrabiliário do poder presidencial nem para violar o princípio da liberdade de imprensa, não apenas com a expulsão arbitrária do jornalista mas, sobretudo, com a ameaça aos demais jornalistas, para que ‘não pensem que podem fazer igual, sem se preocupar com punições’. Não estão nas atribuições constitucionais da Presidência o direito e a autoridade de vigiar e punir.

Nas ditaduras, as autoridades têm mais liberdade e mais prerrogativas pessoais que os cidadãos. Nas democracias, o cidadão eleito para exercer o cargo de presidente da República deve abrir mão de uma série de liberdades, porque investido de poderes e deveres inerentes ao cargo. É uma investidura institucional. A Presidência da República – a autoridade pública – sofre constrangimentos maiores que o cidadão comum. Essas limitações são indissociáveis das prerrogativas institucionais. O presidente nunca encarna as instituições, ele se torna o seu máximo servidor. Um ataque moral ao presidente é sempre pessoal ou político. Nunca institucional. Uma tentativa de assassinato ou golpe é um ato contra as instituições, porque tenta anular, pela força, uma decisão da maioria da sociedade.

A democracia se define pelas liberdades que assegura aos cidadãos e pelos limites que impõe aos que exercem o poder de Estado. Se esses limites se tornam imprecisos, torna-se precária a garantia de que esses poderes não serão usados por capricho pessoal contra os cidadãos.’



Leandra Peres

‘Afasta de mim esse cálice’, copyright Veja, 19/05/04

‘Na semana passada, o governo conseguiu provar que é capaz de transformar até seus melhores momentos em crises de grandes proporções. Isso requer um certo esforço. Depois que o jornal The New York Times, o diário mais influente dos Estados Unidos, publicou reportagem de meia página, em sua edição de domingo 9, dizendo que o consumo de bebida alcoólica pelo presidente Lula virara ‘preocupação nacional’, o governo viveu um raro momento de unanimidade. Até os adversários se levantaram em defesa do presidente. ‘Conheço o Lula há trinta anos e não vejo nenhuma razão para o jornal fazer tal suposição’, afirmou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que classificou a reportagem de ‘leviana’. ‘O presidente tem nossa total solidariedade. A reportagem é injusta e maldosa’, disse o governador de São Paulo, o tucano Geraldo Alckmin. Na terça-feira, quando o interesse pelo assunto já estava minguando e quase ninguém mais parecia interessado no mexerico, o Palácio do Planalto anunciou a decisão de expulsar do país o autor da reportagem, o jornalista Larry Rohter, 54 anos, que trabalha no Brasil desde os anos 70.

Com a reação autoritária e exagerada, o governo virou o jogo contra si de forma espetacular. Até os aliados reagiram mal. ‘Não foi a melhor resposta’, disse o líder do governo no Senado, Aloizio Mercadante, que, junto com outros senadores, formou uma comitiva para apelar ao presidente para que retrocedesse. Em vão. Numa cena que só a esquizofrenia petista parece capaz de exibir, até o assessor de imprensa de Lula, o jornalista Ricardo Kotscho, deu entrevista dizendo que, por disciplina, acatava a decisão do governo, mas confessou abertamente que não concordava com ela. Os principais jornais do mundo ignoraram a peça de Rohter e não comentaram os hábitos etílicos do presidente. Por obra e graça da reação descabida do governo, o assunto acabou ganhando dimensão planetária. Na terça-feira, segundo um levantamento preparado pelo próprio Planalto, o assunto saíra sem muito destaque em apenas sete jornais, a maioria da América do Sul. Na quarta, após a decisão de expulsar o jornalista, a notícia estava em 26 jornais. Até no Khaleej Times, dos Emirados Árabes Unidos. No dia seguinte, aparecia em 38 títulos, inclusive na Xinhua, a agência de notícias da China, para onde Lula embarcará nos próximos dias. Em todas as reportagens estrangeiras ouvia-se o eco de uma indagação constrangedora – e ela não tinha nada a ver com a questão de quanto e com que freqüência Lula bebe. A indagação era bem pior: será que o Brasil retrocedera ao estágio de uma republiqueta latino-americana dirigida por um ditadorzinho caprichoso e impulsivo?

Sintomaticamente, nenhum ministro veio a público defender o governo. José Dirceu, que fala até do que não deve, silenciou. Antonio Palocci ficou calado com receio de trair em público sua convicção de que a medida foi absurda. O ministro Luiz Gushiken foi o mais empolgado defensor da expulsão por ver, delirantemente, na reportagem de Rohter a peça de uma vasta conspiração da Casa Branca contra o Brasil e Lula. A análise de Gushiken não é apenas lisérgica. Ela embute uma visão de mundo em que não parece existir lugar para a imprensa livre e independente. O New York Times seria o último jornal americano a fazer algum tipo de dobradinha com o governo de George Bush. O jornal faz oposição sistemática e declarada ao ocupante da Casa Branca. Nos últimos meses, em reportagens e artigos de seus colunistas, entre outros adjetivos pejorativos, descreveu George W. Bush como ‘iletrado’, ‘desorientado’, ‘maria-vai-com-as-outras’, ‘bélico’ e ‘o maior responsável pela onda de antiamericanismo que se espalha pelo mundo’. Gushiken insistia na quarta-feira: ‘No Japão, se um jornalista ofendesse o imperador também seria expulso’. Outro defensor da expulsão do jornalista foi o porta-voz da Presidência André Singer. Na quinta-feira, em artigo publicado pelo jornal Folha de S.Paulo, Singer teceu uma antologia de disparates e, como quem acredita em miragem, disse que o governo tinha de restaurar um ‘ambiente de responsabilidade’ no país.

O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, em viagem à Suíça, deu entrevista dizendo que só falaria do caso quando voltasse ao Brasil e tomasse pé dos detalhes. Era puro disfarce. Na verdade, desde o primeiro momento, o ministro empenhou-se nos bastidores em negociar uma saída honrosa para ambos os lados. Ao saber que o escritório de advocacia Pinheiro Neto fora contratado pelo New York Times para tratar do assunto, Thomaz Bastos entrou em ação. De Berna, na Suíça, ligou para seus velhos colegas do Pinheiro Neto e começou uma negociação que duraria três dias. De início, combinou-se que os advogados escreveriam uma petição ao Ministério da Justiça solicitando a reconsideração do cancelamento do visto do jornalista americano. A petição foi escrita em São Paulo, submetida aos advogados do jornal em Nova York e ao ministro em Berna. Nada menos que seis versões percorreram o circuito São Paulo-Nova York-Berna. Na última versão, o ponto que interessava ao governo era o item 7.

Nesse trecho, o jornalista Larry Rohter diz que ‘jamais teve a intenção de ofender a honra’ do presidente e reafirma seu ‘profundo respeito pelas instituições democráticas brasileiras, incluindo a Presidência da República’. Em seguida, a carta afirma que Rohter limitou-se a ‘veicular comentários’ e não fez ‘nenhum juízo de valor’ sobre os hábitos de Lula. Lamenta que a repercussão da reportagem tenha causado constrangimento ao presidente e, como costuma acontecer nesses entreveros internacionais, joga a culpa nos tradutores ao dizer que, na sua opinião, a versão do texto para o português não foi fidedigna – ‘o que pode ter causado a ampliação do mal-entendido’. Na noite de sexta-feira, Lula decidiu aceitar a carta do jornalista, concordou em rever sua decisão e deu o assunto como encerrado. O desfecho do episódio mostra que, felizmente, Lula não tem apenas assessores tresloucados a aconselhá-lo. Márcio Thomaz Bastos esforçou-se com sucesso para não manchar sua biografia de jurista e democrata com a nódoa do banimento de um jornalista. O último caso parecido ocorreu em 1970, no auge da ditadura, quando o general Emílio Garrastazu Médici expulsou um correspondente da agência de notícias France Presse que publicara no exterior a lista dos presos políticos que um grupo guerrilheiro queria libertar em troca da soltura do embaixador suíço seqüestrado. Até a semana passada, nunca um governo democrático no Brasil expulsara um jornalista.

A decisão de Lula de considerar o assunto página virada esvaziou o lado agudo da crise. Outras facetas do episódio, porém, permanecem inalteradas. A principal é a de que claramente os mecanismos de decisão do governo Lula têm vários parafusos soltos. O governo conseguiu armar uma tempestade em copo d’água a partir de uma questão que poderia ter sido resolvida com elegância e até um pouco de humor. Que tal terem convidado Rohter para tomar uns drinques na Granja do Torto? Se fosse o caso de ser ferino, os assessores do presidente poderiam ter dito ao correspondente americano que um de seus ex-colegas, o notório Jayson Blair, também seria bem-vindo. Como se sabe, Blair é o jornalista que durante anos publicou matérias fantasiosas e inteiramente inventadas no New York Times, o que o levou a ser demitido e o jornal à maior crise de credibilidade da sua história. O Planalto, porém, agiu como se a reportagem tivesse pinçado um nervo exposto ao sugerir que a bebida interfere no discernimento do presidente Lula e que isso é uma preocupação nacional. Que não é preocupação nacional é fato. Os brasileiros de maneira geral davam a esse tema o mesmo grau de preocupação que destinam à diminuição do tamanho dos biquínis nas praias. Na elite, entre políticos e empresários, o assunto sempre foi comentado em tom de mexerico, sem que aparecessem histórias factuais que sustentassem essa versão. Também não existe nenhuma evidência de que a bebida consumida por Lula interfira na sua atuação como presidente.

Lula chegou ao topo da carreira política sendo em todas as fases uma pessoa que os brasileiros definem como ‘bom de copo’. Para uma imensa parcela da população brasileira, isso equivale a um elogio tão formidável quanto ‘bom de cama’. Como presidente, Lula tem bebido menos do que sua média histórica, que, como todos os seus companheiros e amigos sabem, ultrapassa sensivelmente o que se convencionou chamar de ‘beber socialmente’. Além de beber bem menos agora, o presidente se preocupa com sua imagem. ‘Não sou nenhum alcoólatra, todos sabem que bebo prazerosamente. Bebo e fumo’, comentou Lula na quinta-feira, ao receber a comissão de senadores que lhe pediu para voltar atrás na vendeta contra o jornalista americano. Em seguida, Lula tocou no ponto central: ‘Ninguém pode dizer que tomei uma decisão de governo porque bebi ou não bebi’.

O álcool se transforma em vício quando a pessoa não consegue parar de beber no momento em que deseja. Quando quer, Lula passa meses sem beber. Em outras ocasiões, bebe com mais freqüência e intensidade. Há três meses, durante um jantar na casa do presidente da Câmara, o deputado João Paulo, onde foram comemorados o 24º aniversário do PT e a posse da nova liderança do partido, Lula bebeu com gosto diversas doses de uísque com gelo. ‘O presidente não estava ali para falar de política, e sim para tomar cachaça e brincar’, dizia o deputado Anselmo Abreu a quem perguntava se o presidente se excedeu na bebida. Na saída da festa, Lula foi fotografado dentro do Omega presidencial, já entregue ao sono, antes mesmo que o carro partisse rumo à residência oficial.

Um dos sintomas de que Lula ‘está dando um tempo’ na bebida, como ele próprio diz, é seu apego aos exercícios físicos, especialmente à esteira. Quando deixa de se exercitar, é sinal de que passou a beber um pouco mais que o habitual. Na longa viagem que fez a diversos países da Europa no ano passado, Lula passou quase todo o tempo sem beber. Nem vinho ele aceitava nas recepções oficiais. Em todas as escalas mandou colocar uma esteira no quarto. Levantava cedo para fazer suas corridas. A dois dias do término da viagem, na última escala, na Espanha, o presidente abandonou a esteira. Bebeu vinho e uísque e chegou a reclamar de ressaca. Um senador do Nordeste conta que, durante a campanha presidencial, viu Lula beber alegremente antes dos comícios. Em um deles, excedeu-se na bebida e no entusiasmo. Sempre que se aproximava demais da beirada do palanque, um dos seguranças o detinha pela parte de trás do cinto, de modo que ele não corresse o risco de cair. Diversas vezes, na campanha de 2002, depois de recepções noturnas na casa de correligionários, Lula voltava ao hotel alterado pela bebida. Em uma dessas ocasiões, ele tirou os sapatos e se deitou em um sofá no hall do hotel. ‘Hoje, o Lula bebe muito menos do que bebeu em toda a sua vida adulta. Mas não precisa de ninguém para vigiá-lo ou para lhe dizer que não se exceda nas doses. Ele tem autocontrole’, garante um dos mais antigos auxiliares do presidente.

A bebida nunca foi estranha à vida de Lula. Sua avó materna, dona Otília, tomava porres homéricos. Ficava quatro ou cinco meses sem colocar uma gota de álcool na boca, mas, de repente, punha-se a beber até cair. ‘Quantas vezes meus irmãos tiveram de pegar ela dormindo no meio do mato, na estrada, na beira do asfalto… Coitadinha. Não sei por que razão ela bebia. Mas bebia muito, muito’, contou Lula em depoimento à jornalista Denise Paraná, autora do livro Lula – O Filho do Brasil, um retrato magistral da trajetória política, pessoal e familiar do presidente. O pai de Lula, Aristides, era abstêmio enquanto vivia no sertão nordestino, mas depois que migrou para São Paulo passou a beber de forma descontrolada. Batia nos filhos quando estava alcoolizado. Em Lula – O Filho do Brasil, um irmão do presidente, Genival Inácio da Silva, o Vavá, diz o seguinte: ‘Meu pai bebia sempre. Tomava pinga. Depois passou para o conhaque, que era melhor. Depois passou para a cerveja, que era melhor. Se ele pudesse beber cinqüenta pingas, ele bebia. Ele não tinha controle. Chegava em casa de fogo’. Jaime, outro irmão de Lula, também teve problemas com alcoolismo.

Em sua militância em São Bernardo do Campo, como o próprio Lula já contou, a bebida também aparecia com freqüência. No sindicato dos metalúrgicos, costumava receber os amigos com ‘um cafezinho’ ou ‘uma cachacinha’. De tanto se falar em cachaça ou pinga, produziu-se o equívoco de que Lula gosta de aguardente. Não é verdade. Assim como o presidente Jacques Chirac, um francês que não gosta de vinho, Lula é um brasileiro que não é muito dado à cachaça. Prefere uísque. Da marca Logan. Por coincidência, a predileta do ex-presidente Fernando Collor. Quase todos os dias, quando chega ao Palácio da Alvorada depois do trabalho, Lula descarrega as tensões com uma ou duas doses de uísque. Nas ocasiões em que bebe um pouco mais que o habitual, o presidente fica mais emotivo do que em seu estado natural. Raramente, porém, se deixa vencer pela bebida. ‘Não fui eleito para santo’, disse, ao tomar café-da-manhã na quarta-feira com líderes da base aliada na Câmara. À noite, em jantar com políticos do PL, partido do vice-presidente José Alencar, bebericou uísque, mas não passou da primeira dose.

Não é de esperar que Lula tenha com a bebida a mesma conturbada relação que teve com a garrafa seu colega americano. George W. Bush foi alcoólatra. Recuperado, não belisca um copo há vinte anos. ‘Se tivesse continuado a beber, a essa hora estaria não aqui com vocês, no Salão Oval da Casa Branca, mas em algum bar do Texas sem saber o que fazer depois’, disse Bush a um grupo de deputados que o visitou no fim do ano passado. Lula teve mais sorte que Bush. Nunca foi alcoólatra e chegou ao Palácio do Planalto sem ter de se tornar abstêmio. O mais certo é que termine o mandato sem se ver forçado a abandonar suas doses de uísque e suas cigarrilhas holandesas que tanto conforto lhe dão. Que continue fazendo bom proveito.’



Tales Alvarenga

‘Álcool, sexo e tabaco’, copyright Veja, 19/05/04

‘Perguntava-se em Brasília, na semana passada, por que o jornal The New York Times teria publicado uma reportagem dizendo que o presidente Lula está bebendo demais. É simples. O autor da reportagem, o jornalista americano Larry Rohter, escreveu o artigo porque julgou o assunto interessante. E o New York Times publicou porque também julgou o tema interessante. Pode-se discutir se jornalista e jornal agiram de forma apropriada diante do tema. Mas não passa de delírio a suspeita de que os Estados Unidos estejam movendo uma conspiração contra Lula, como os petistas chegaram a afirmar.

Nesse e em vários outros episódios, a imprensa dos EUA e os cidadãos americanos exibem traços opostos do seu caráter nacional. Com sua herança puritana, tendem a um fundamentalismo moral contra os prazeres pecaminosos, o álcool entre eles, mas também o tabaco e o sexo. Na direção inversa, os americanos são fascinados pela devassidão.

Quanto à bebida, o bom senso nos informa que se devem temer mais os que nunca bebem. Adolf Hitler, além de abstêmio, era antitabagista e vegetariano. O terrorista Osama bin Laden, que também não bebe, mandou jogar dois jatos sobre o World Trade Center e um terceiro sobre o prédio do Pentágono. Seu adversário número 1, o presidente americano George Bush, conta que se curou do alcoolismo de anos atrás por intervenção de Deus. Curado, sem precisar de uma única dose para criar coragem, invadiu dois países, o Afeganistão e o Iraque.

Ao tempo em que escreveram sua admirável Constituição de sete artigos, que continua a mesma por mais de 200 anos, os fundadores da nação americana nada tinham contra um bom copo na hora certa. Eram cidadãos eruditos e respeitáveis, mas gostavam da vizinhança de um barril. O primeiro presidente, George Washington, apreciava uma mistura de rum, cerveja, ovos, creme e açúcar. Thomas Jefferson entornava três doses por dia. E o general Ulysses Grant ganhou a Guerra de Secessão auxiliado pelos pileques. Foi eleito presidente dos EUA. Entre 1920 e 1933, para acabar com o insulto ao fígado, o governo americano baixou uma proibição geral ao consumo de álcool. Era o traço puritano agindo. O lado libertino da nação se rebelou. Nunca se bebeu tanto nos EUA como durante a chamada Lei Seca. Em 1960, o charmoso John Kennedy se elegeu presidente tendo como pai um empresário que contrabandeara bebidas. Kennedy não tinha preconceito contra uísque e charutos e levava sua paixão pelo sexo a tal ponto que, além da caça diária a atrizes, secretárias e garçonetes, chegava a contratar prostitutas para situações de emergência.

Hoje, a vida anda áspera nos EUA. Fumar em Nova York dá multa. Beber, como diz Bush, é uma atividade que clama pela intervenção divina. O sexo ainda é permitido, mas o presidente Bill Clinton aprendeu que é preciso tomar cuidado. Por divertir-se com uma estagiária e um charuto no Salão Oval da Casa Branca, Clinton quase perdeu o emprego. Os franceses, os russos e os japoneses bebem, fumam e fazem sexo com mais naturalidade. Os ianomâmis e os esquimós também fazem. O problema do governo Lula não é um drinque a mais ou a menos, a não ser para os puritanos do New York Times. O problema está é na ressaca geral que se abateu sobre o governo petista quando teve de engolir tudo aquilo que pregou durante vinte anos. Foi um gesto heróico. Mas, agora, espera-se que a turma de Lula acorde desse porre ideológico. E comece a governar. Hoje.’