Os militares e civis responsáveis por torturas, assassinatos e desaparecimentos entre 1964 e 1984, e os que com eles são solidários, têm razões de sobra para tentar evitar a todo custo que se instale a Comissão da Verdade criada pela Lei 12.528/2011, ou para tentar intimidar preventivamente os que vierem a integrá-la.
Talvez saibam, ou pressintam, que o andamento dos trabalhos da Comissão modificará o próprio quadro político-institucional vigente no momento de sua instalação.
Ocorre que o arcabouço jurídico interamericano, europeu e internacional dá às vítimas de violações de direitos humanos durante regime político que se tenha superado ou que se pretenda superar “o direito de acesso à informação relativa a graves violações de direitos humanos e, em especial, à informação sobre os desaparecimentos forçados de seus familiares”, segundo escreveu Catalina Botero Marino, relatora especial sobre Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), em “O Direito de Acesso à Informação Relativa a Violações em Massa de Direitos Humanos”, revista Acervo, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, v. 24, n. 1, jan/jul 2011.
Marino, que participou em novembro de 2010, no Rio de Janeiro, do I Seminário Internacional de Acesso à Informação e Direitos Humanos, mostra que os tribunais…
** não aceitam o argumento de que fornecer tais informações violaria a segurança nacional;
** consideram “a privação contínua da verdade sobre o destino de um desaparecido” uma “forma de tratamento cruel, desumano e degradante para os familiares próximos”, equivalente à tortura;
** consideram o direito de acesso à informação “fundamental para dissolver os enclaves autoritários que pretendem sobreviver à transição democrática”;
** entendem que o Estado tem a obrigação de “buscar por todos os meios possíveis“ as informações sobre violações em massa de direitos humanos cometidas no passado; esses meios incluem “a realização de audiências e interrogatórios com aqueles que possam saber onde se encontra ou quem pode reconstituir o ocorrido”.
Democracia cria novas exigências
Pode ter havido anistia plena e irrecorrível, mas não é aceitável, do ponto de vista jurídico, que informações sobre os fatos motivadores dessa medida político-institucional sejam sonegadas por quem delas disponha. Mais ainda: os governos são obrigados a “realizar, de boa fé, um esforço substancial e empregar todos os recursos necessários para reconstruir a informação que supostamente tenha sido destruída”.
A tradução política dessa jurisprudência é que a democracia reconquistada não pode ser refém da força que o regime precedente detinha. Ao contrário. Nos marcos da democracia, o Estado tem a obrigação legal de esclarecer o que a relatora denomina “violações em massa de direitos humanos”.
Mudanças de regime engendram, normalmente, dinâmicas próprias. No caso das violações de direitos humanos, imagine-se, esquematicamente, que os eleitos sob o novo regime sejam cobrados pelos eleitores a esclarecer e/ou punir crimes cometidos em nome da defesa do regime anterior. E que tal cobrança tenha força política superior aos arranjos feitos para garantir a transição. A quem responderão? A seus eleitores ou aos velhos adversários que tenham, antes do naufrágio, pulado fora do barco do regime vencido?
Um tema distante do povo
Não foi o que ocorreu na redemocratização brasileira recente. O povo não cobrou punição de torturadores e assassinos. A razão principal para isso foram a censura e a autocensura que vigoraram durante a ditadura, principalmente na televisão e no rádio. Aquele contingente que no Brasil se chama de povo não tinha uma noção muito clara da ignomínia cometida. E a lentidão da transição, desde o último ato de tortura política até a primeira eleição direta para presidente, algo como doze ou treze anos, fez com que muitos novos eleitores – agora se podia votar a partir dos 16 anos – de fato desconhecessem o assunto.
A passagem da monarquia para a república, em 1889, foi provavelmente um corte muito mais radical, embora, como se sabe, inúmeras taras do escravismo colonial e imperial tenham perdurado e suas consequências sociais e políticas se façam sentir até hoje.
O Brasil fez uma longa transição política antes que esses novos dispositivos jurídicos fossem dados como assentes. Deve-se levar em conta que desde a década de 1980 diferentes processos provocaram revisões de conceitos e procedimentos jurídico-institucionais. Entre eles, o fim de ditaduras em países da América Latina e do Caribe, o desaparecimento da União Soviética e, principalmente, as mudanças de regime nas antigas “democracias populares” do Leste Europeu.
O mundo girou. A anistia ficou anacrônica
Assim, aquilo que alguns chamam de “pacto social” propiciador da Anistia de 1979 tornou-se um anacronismo, uma aberração jurídica, por mais que a Constituição de 1988 tenha, e era compreensível que o fizesse, chancelado a manobra do regime que agonizava.
Miriam Leitão escreveu (O Globo, 3/3), que “o Brasil pode até decidir não olhar para trás, mas não pode mais permitir que isso seja resultado do veto das Forças Armadas”. É um raciocínio brilhante, mas não pode ser acatado.
Mesmo que os brasileiros quisessem, consensualmente, encerrar toda discussão sobre um passado criminoso que é motivo de vergonha, os avanços internacionais não o permitiriam. E isso é salutar, gostem ou não os que ontem tiveram poder de decretar extrajudicialmente a morte de compatriotas. Não estavam convencidos da justeza de seus atos? Aceitem agora que eles sejam avaliados – com todas as garantias à defesa e ao contraditório – para seu registro institucional na História.
É um bom tema para a imprensa.
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