A leitura contínua dos jornais e do noticiário multiforme da internet sobre o dito Estado Islâmico (EI) acaba gerando uma impressão desconcertante: o maior aliado do EI, além do evidente bloco financiador, parece ser a mídia internacional. A “notícia-choque”, essa destinada a impactar a consciência do público ocidental, é a moeda midiática favorável ao “câmbio” terrorista. Na internet, a última é o arremesso de homossexuais do alto de um edifício: segura pelos tornozelos, a vítima é obrigada a encarar o solo antes de encontrá-lo de cabeça.
Conhecem-se as modalidades anteriores: a decapitação em massa, o suicídio sistemático de homens-bombas, a sedução transnacional do martírio, as torturas de menores, as “mensagens” terminais. O EI pauta-se pelo isomorfismo entre o terror jihadista e o cinema de terror. Um episódio – apenas um – exemplar foi a recente explosão de um jovem saudita dentro de uma mesquita xiita na província de Qatif, no leste da Arábia Saudita, quando morreram 21 fiéis e cem ficaram feridos, em meio às preces da sexta-feira.
No Twitter, as fotos postadas mostraram o que restou do homem-bomba: a cabeça intacta, com barba e tudo, e um pouco dos ombros. É precisamente isso o que estamos chamando de “notícia-choque”. No Globo, dizia o texto: “Parecia uma cena de filme de terror. Dava para ver que era bem jovem, não passava dos 20 anos. E por que alguém tão jovem ia se matar de um jeito tão violento entre seus próprios compatriotas num lugar religioso e de reflexão espiritual?”
Apelo à consciência
A pergunta é um tanto cândida. Primeiro, porque se sabendo muito bem do ódio devotado pelos sunitas da Arábia Saudita aos xiitas de todos os quadrantes, era a mensagem “teológica” do EI: acabar com os “politeístas xiitas”. Segundo, o jovem-bomba suicidou-se para aparecer na mídia.
Há quem possa considerar exagerada ou simplificadora essa segunda interpretação. Alguns analistas empenham-se em mostrar como o terror do Estado Islâmico contém um lado racional, que se revela na restauração administrativa (abastecimento de água, energia elétrica etc.) de territórios antes abandonados pelo Estado regular em países como a Síria e o Iraque. Além disso, o autoproclamado califado do EI vem estimulando o casamento de combatentes islâmicos, inclusive financiando a lua-de-mel e o estabelecimento de famílias.
Segundo notícias recentes, “o EI criou um generoso sistema de bem-estar social, favorecendo assim a colonização de seus territórios por milhares de jihadistas, homens e mulheres, que saem de países diversos como EUA e os da Ásia Central”. Por incrível que pareça, o terrorismo alcança status de identidade profissional: “Além do salário normal, terroristas estrangeiros ganham U$ 500 para começar uma família. Com 28 anos, al-Homsi recebeu um valor maior porque sua mulher é médica e fala quatro línguas”. E cada criança nascida vale 400 dólares.
Dados concretos dessa natureza poderiam reforçar a argumentação dos que consideram um exagero o primado atribuído à mídia. Mas então outros dados também concretos fazem retomar a hipótese da influência midiática. Num vídeo dedicado aos que produzem a comunicação da jihad, um combatente afirma que os comunicadores (os porta-vozes) fazem “metade da batalha, se não ela inteira”. Por outro lado, nas transmissões da rádio al-Bayan, trombeteiam-se as vitórias militares do Estado Islâmico e convocam-se jovens ocidentais a se alistarem nas fileiras jihadistas.
Como em toda propaganda de guerra, o inimigo dos jihadistas é sempre declarado morto ou derrotado nas transmissões radiofônicas. Nos vídeos que se disseminam na internet, os combatentes poderiam figurar em anúncios publicitários europeus: são homens de olhos claros e faces juvenis, cuja presença na jihad representa um outro tipo de “bomba” para a consciência ocidental. De fato, essas imagens plasticamente próximas fazem explodir os estereótipos do terrorista como um ser remoto, de aparência monstruosa. A retórica da familiaridade facilita o recrutamento.
Espetáculo hipnótico
Como se pode inferir, a comunicação é arma de grande calibre na linha de frente do fundamentalismo mais retrógrado e feroz de que se tem notícia. É arma também para os fundamentalismos que vicejam entre nós, mas este é um assunto para tratamento posterior.
No tocante à jihad, a questão do observador da imprensa pode começar pelo porquê de tanto espaço concedido às notícias-choques. O embasbacamento midiático com o espetáculo da barbárie tem claro efeito viral: em março de 2015, um estudo da Brookings Institution mostrava que, num período de dois meses, havia mais de 46 mil contas do Twitter apoiando o Estado Islâmico. O real-histórico e a realidade virtual sustentam o califado do terror.
Mas não é só a internet, pois a grande mídia impressa e televisiva também ratifica a hipnose do espetáculo pela reprodução acrítica dos fatos chocantes. Isso é tão verdadeiro para a mídia euroamericana como para a brasileira. Um bom começo crítico consistiria em menos imagens de choque e maior esclarecimento do público sobre o financiamento do terror – seus interesses, seus canais, desde o começo até os dias de hoje. Talvez então se pudesse ter uma melhor ideia de como os monstrinhos criados pelos Estados Unidos (talibãs e seus desdobramentos) tornaram-se os monstros de agora.
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro