Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Do desvio de função à usurpação

‘O dia em que tudo mudou’: 1º de abril de 1964. Nesse dia, o panorama ainda era redações com profissionais oriundos de várias áreas, mas todos com alma de jornalista. O Arapuã se dividia entre sua coluna bem-humorada na Ultima Hora de São Paulo e a agência de publicidade Almac (ainda Alcantara Machado); assessoria de imprensa só em grandes empresas, e a função já estava se dividindo entre jornalistas e os primeiros RPs, que estavam se formando. José Magalhães Chaves, por exemplo, era chefe de reportagem de manhã e à tarde defendia outro salário na Volkswagen.

Faculdade de Jornalismo era a Casper Libero, a pioneira, e na USP davam-se os primeiros passos para instituir-se o curso, que depois se transformaria na Escola de Comunicação e Artes.

Uma constante no mercado

O jornalista se alimentava de um ideal político que casava com o exercício profissional. A ditadura tirou este ideal, ou melhor, passou este ideal para a ilegalidade, e procurou restringir o trabalho jornalístico em conteúdos de idéias superficiais e compatível com a filosofia do regime. Ninguém esperava naquele 1º de abril que o jornalista dos próximos anos fosse atraído para uma realização financeira-patrimonial, acima de tudo, e muitos destes, por estar num mercado restrito, cedessem aos atrativos ganhos que empresas ofereciam a assessores de imprensa. As empresas sempre deram preferência a jornalistas para seus serviços de ‘AI’, não só pela facilidade que este tem com o manuseio da informação, mas principalmente porque se sentem seguras quanto à influencia que o profissional deve ter nas redações.

Mas este desvio de função do jornalista se ampliou mesmo e se sistematizou a partir do momento em que as faculdades particulares se firmaram de vez no mercado e perceberam nos jovens o desejo de tornarem uma Maria Cristina Poli ou um Carlos Nascimento e estavam por isso prontos para serem atraídos. O ingresso tinha esta motivação, mas a saída para esta massa de novos jornalistas jogada no mercado todos os anos acabou sendo a assessoria de imprensa.

Desvio de função é uma constante em nosso mercado de trabalho. Quem não ouviu falar do ‘rábula’, que exerce a função de advogado, sem sê-lo?; o serviço público está cheio de desvios, tipo motorista que se torna recepcionista e até chefe de algum gabinete, mas neste caso exerce uma função e recebe pela outra, a verdadeira. Nas próprias redações, há muitos advogados, como o nosso querido Cesario Marques, que foi chefe de reportagem do Correio da Manhã, e outras formações para as quais o indivíduo não tinha a mesma afinidade que o trabalho jornalístico.

Redação de verdade

O caso do exercício da assessoria de imprensa por jornalistas, entretanto, acabou ultrapassando este conceito de desvio de função, passando a ser mesmo uma usurpação. Sim, pois o relações-públicas é o verdadeiro assessor. O jornalista, no máximo, pode ser o profissional do departamento encarregado de elaborar o jornal interno da empresa, não o porta-voz desta junto às redações. É incompatível assessoria de imprensa e jornalismo, pois se contradizem. Como já foi muito bem explanado pelo Delmar [Delmar Marques, ver remissão abaixo], o jornalista trabalha para o leitor e o assessor de imprensa para a empresa ou instituição que paga seu salário.

Nunca consegui entender a situação de um colega que desenvolveu brilhantemente seu trabalho na redação do Jornal da Tarde, em São Paulo, e depois passou a assessorar o político Paulo Maluf. Não acredito naquela máxima do professor da cadeira de ‘assessoria de imprensa’ do curso de Jornalismo: ‘Alunos entusiasmados em se tornarem assessores de imprensa’; na verdade, o sonho destes jovens continua sendo exercer o jornalismo numa grande redação e a assessoria é apenas a margarina da manteiga, ou seja, um sucedâneo que está à mão. Ana Paula Padrão, Rodolfo Gamberini ou Heraldo Pereira são alguns nomes que serviram de parâmetro para este jovens candidatos às faculdades de Jornalismo. Não é possível que mudem seu ideal, depois que ingressam, a não ser por falta de opção.

Além de promover cursos de extensão para estes profissionais que estão hoje na ‘assessoria de imprensa’, as faculdades deveriam preparar melhor a prática de reportagem e serviços de redação para os jovens futuros jornalistas: por que essas escolas não podem contratar muitos dos chefes de reportagem das grandes redações para pautar matéria e ensinar a estes alunos aquilo que eles nunca chegarão a conhecer mais de perto, que é o funcionamento de uma redação de verdade?

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Jornalista, São Paulo