Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Doação de órgãos não se faz apenas com campanhas

Na semana retrasada, dois assassinatos mais uma parte da infeliz da rotina em que se transformou a sociedade brasileira chamaram a atenção da mídia. A morte de um jovem e seus pais – a mãe morreu pouco depois de saber que havia perdido o marido e o filho, vítimas de um assalto – na cidade de Barueri, e de uma menina de oito anos em Rio Claro, duas cidades do interior de São Paulo. Chamou a atenção a intenção e a decisão das duas famílias de doar os órgãos das vitimas. Os dois casos, e muito provavelmente a decisão de doar, ocorreram no momento em que chegava ao final a competente série ‘Transplante – o dom da vida’, produzida pelo Fantástico, Rede Globo e apresentada pelo médico Dráuzio Varela.


A série, cujo foco central era a fila de transplantes – seus mecanismos e personagens – buscou, de uma forma muito competente, mostrar a realidade daqueles cujas vidas dependem diretamente de um transplante. Durante as cinco semanas em que foi ao ar, a série mostrou a rotina de três pacientes que, acompanhados por uma câmera portátil por seis meses, puderam registrar as dificuldades com as quais convivem as pessoas nas filas de transplantes Brasil afora. Experiências bem sucedidas na Espanha – que conseguiu reformular para melhor seu sistema de doações –, nos Estados Unidos – país que domina as grandes inovações nesta área – e na China, país recordista mundial em doações, onde foi feita a gravação de um transplante de fígado intervivos.


Momento emocionante


‘Transplante – o dom da vida’ conseguiu nos fazer entender que doação de órgãos não se faz apenas com campanhas de doação. Sensibilizar a sociedade não é o suficiente, se na grande maioria das vezes a boa vontade de doar esbarra na falta de preparo dos hospitais em efetivar um transplante. Atualmente, 50 mil pessoas estão nas filas de espera e, segundo o dr. Dráuzio e dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), a maioria morrerá sem fazer o transplante.


É possível pelo Sistema Único de Saúde (SUS) a realização de transplantes de coração, fígado, pulmões, pâncreas, rins e córneas. Dados indicam por ano cerca de 14.000 mortes cerebrais, mas destas apenas 1.300 se tornam doações efetivas. Contudo, não basta a boa vontade de das equipes médicas, nem de doadores: é preciso melhorar o sistema de captação de órgãos do país. Pesquisas apontam que em São Paulo, estado com o maior número de realizações de cirurgia de transplante do país, cerca de 70% das pessoas abordadas em uma pesquisa sobre o tema se identificaram como doadoras.


Mesmo com todo o profissionalismo com que foi produzida a série, falar de vida, sobretudo quando tão fragilizada, traz emoção. Um dos momentos mais emocionantes do programa ficou por conta do desfecho da espera da paciente Kelly Fernandez da Cunha, que depois de dois anos de espera recebeu transplante de pulmão. Nenhuma palavra poderia ser mais forte do que ver funcionar pela primeira vez o novo pulmão da paciente (vídeos disponíveis no site da série).


‘A decisão dela seria doar’


Números da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) indicam um aumento de 14,5% no número de potenciais doadores notificados no Brasil desde o início da série. Um mês antes ir ao ar, a média de doadores efetivos era de 103,9 e depois da estréia de ‘Transplante – o dom da vida’ este número subiu para 115,7.


Somente na semana passada, estes números foram engrossados com mais dois doadores: o motoboy Pablo Patrick da Silva, 21 anos, e Gabriela Nunes Araújo, de 8 anos. Pablo teve seu pedido de ser doador atendido pela irmã e única sobrevivente da violência que se abateu sobre sua família. No caso de Gabriela, a decisão foi tomada pelos pais.


Em uma demonstração da eficiência com que foi feita a série, a mãe da menina, em entrevista à equipe do próprio Fantástico, admitiu: ‘Eu tinha visto essas reportagens do Fantástico (é uma série sobre transplantes). Vi quantas mães estavam sofrendo. Muitos amigos queridos conversaram comigo e eu decidi tomar essa decisão. Tenho certeza de que, se ela tivesse viva e pudesse tomar essa decisão, a decisão dela seria essa. Ela doaria.’

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Crítica de televisão, Brasília, DF